"Estes fariseus mais depressa perdoariam um assassino do que um divorciado que ousa voltar à igreja para comungar".
O
meu desejo cristão para 2017? Que a igreja como um todo siga sem
resistências separatistas a “Amoris Laetitia” (“Alegria do Amor”) do
Papa Francisco sobre a situação dos divorciados recasados; é tempo de
diversos grupos dentro da igreja pararem com uma espécie de insurgência
alegadamente purista e salvadora da verdadeira doutrina.
Na verdade, esta atitude só revela a doença farisaica que
olha para a lei com olhos mortos, olhos legalistas de Javert. Ao ler e
ouvir a posição destas tribos que se julgam mais papistas do que o Papa,
fico sempre com uma estranha impressão: estas pessoas mais depressa
perdoariam um assassino do que um divorciado que ousa voltar à igreja
para comungar. Se a misericórdia do Senhor pode ser recebida por todos,
até pelo violador e pedófilo, porque é que continuam a ostracizar o
divorciado? Porque é que continuam a negar os mandamentos da
reconciliação e da eucaristia ao divorciado recasado? Onde é que está
escrito que o divórcio é único pecado sem acesso ao perdão?
Repare-se que a “Amoris Laetitia” não diz que o divórcio não
é um pecado objectivo. Não há ali relativismo moral. Sim, o divórcio é
sempre um pecado; é a consequência trágica de uma série de pecados
cometidos pelos dois conjugues. E o pecado maior talvez seja a presunção
de pensar que a culpa é sempre do outro lado, do ex-marido ou
ex-mulher. Portanto, aqueles que dizem que o Papa Francisco está a
despenalizar o divórcio estão a ser desonestos. O ponto é outro, o ponto
é dar o mandamento da reconciliação ao divorciado recasado que procura a
redenção.
O divórcio não pode ser um pecado à parte, não pode ser um
pecado diferente dos outros pecados, não pode ser colocado numa torre
inacessível à misericórdia de Deus.
O verbo cristão por excelência é “recomeçar”. Através do
arrependimento e do perdão, Cristo permite recomeçar. O divorciado não é
aqui um pária, também tem direito ao recomeço. O divorciado crente e
recasado não pode permanecer neste limbo entre os crentes sem macula, ó
santos!, e os ateus, como se fosse uma espécie de hermafrodita teológico
sem identidade ou poiso.
Quer isto dizer que todos os divorciados recasados devem ter
direito ao recomeço? Não. Aqueles que argumentam que o Papa Francisco
transforma a Igreja num albergue espanhol à vontade do freguês estão a
ser desonestos. “Alegria do Amor” diz que o regresso à igreja do
divorciado recasado é um processo lento que tem de ser acompanhado por
um padre. É esse pastor que gere a situação. Isto não tira poder à
Igreja. Pelo contrário: dá poder e vida a cada um dos seus pastores, que
não se podem limitar a aplicar a lei de forma cega e mecânica; têm de
exercer o seu juízo moral ancorado na misericórdia do evangelho numa
lógica de caso a caso.
Um padre não pode ser um mero burocrata de um direito
canónico aplicado de forma cega a toda a gente; um padre tem de ser um
intérprete vivo desse direito, até porque o direito canónico não é a voz
de Deus da mesma forma que o direito positivo (de um estado) não é a
voz do direito natural. Por outras palavras, é preciso ter em atenção
que o termo “situação irregular” esconde muitas injustiças cometidas
contra cristãos que querem regressar ou ingressar numa igreja que lhes
vira as costas em nome da norma farisaica. O legalismo farisaico afasta
milhares, se não milhões, da igreja.
Como escreveu Miguel Almeida sj. na revista “Brotéria”, está
aqui em jogo um duplo discernimento. Por um lado, o divorciado recasado
deve passar por um exame de consciência sobre o seu passado, sobre o
seu compromisso com o evangelho e com a ideia de família. Por outro
lado, o padre que o acompanha tem de vigiar e confirmar (ou infirmar)
este exame interno. Ora, se este exame de consciência for honesto, se a
pessoa quiser de facto crescer na caridade, se o padre virar o polegar
para cima, então não há qualquer razão para a igreja continuar a recusar
os sacramentos ao recasado. É isso que se espera de uma igreja dura com
o pecado mas misericordiosa com o pecador.
Por Henrique Raposo
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