Nesse Natal sem caixas e embrulhos, elas aprenderiam algo que é cada vez mais difícil de ensinar: a gratidão.
Claro
que nunca terei coragem para a concretizar, mas a verdade é que ando
com esta ideia na cabeça há muito: não dar presentes às minhas filhas no
Natal seria um grande passo na sua educação.
Não estou a falar de uma moratória eterna contra os presentes em todos os Natais; esta intifada anti-consumista seria consumada num único Natal, num determinado ano; nesse Natal sem caixas e embrulhos, elas aprenderiam algo que é cada vez mais difícil de ensinar: a gratidão.
Julgo mesmo que estamos a criar uma geração ingrata. Os nossos filhos são ingratos por natureza, porque os presentes pingam ao longo do ano de uma forma natural. Para as minhas filhas, receber presentes é quase um acto da natureza, é tão natural e óbvio como a chuva. Aliás, neste momento, ver a chuva a cair é algo mais raro e maravilhoso do que receber presentes. A sensação de encantamento que vi nos seus olhos há dias durante uma rara chuvada devia estar presente no momento em que recebem um presente. Sucede que elas, à semelhança de milhares e milhares de miúdos por este país fora, recebem os presentes com um bocejo, brincam com eles durante umas horas ou dias e depois pedem novos brinquedos.
No meu tempo, um brinquedo tinha um prazo de validade eterno. Para as minhas filhas, tem o prazo de validade do iogurte. Confesso que não sei como lutar contra esta ingratidão. Parece-me algo estrutural no próprio ar do tempo.
Os preços do mercado são tão baixos que avós, tios, amigos e vizinhos acabam por lhes oferecer presentes numa base semanal, para não dizer diária. Ou são brinquedos, ou são roupas, ou são doces. Ou é a boneca, ou é o boneco, ou é uma colecção nova de cromos do Continente e Pingo Doce, ou é um par de meias do Frozen, ou é um par de pantufas do Mickey, ou é um caderno, ou é um estojo da Branca de Neve, ou é outro estojo do Frozen, ou é outro estojo da Patrulha Pata, ou é um puzzle do Canal Panda, ou é uma caixa de legos, ou é um chupa-chupa, ou é um chocolate, ou é um fato da Elsa, da Branca de Neve, da Rapunzel, da Minnie – é carnaval o ano todo.
Claro que as pessoas fazem isto por bem, querem mimá-las. Para muitos, esta generosidade até é uma forma de compensação: há cinquenta anos, tiveram infâncias miseráveis e agora gostam de oferecer coisas às miúdas num acto de amor, sem dúvida, mas também num acto de vingança contra essa miséria passada. Eu próprio sinto isso. Não me pretendo inocente, faço parte do problema. Adoro comprar-lhes coisas, sobretudo filmes, livros, legos. Não tive uma infância desafogada e, muitas vezes, era eu que inventava os meus próprios brinquedos. Lembro-me sobretudo dos canhões e blindados que fazia com caixas de fósforos.
Hoje, à beira dos quarenta, a ideia de entrar numa loja para comprar algo às minhas filhas dá-me uma sensação de conforto e, sim, de vingança contra esse passado em que queria ter a Estrela da Morte em lego ou o Barco dos Piratas da Playmobil. Queria, mas não podia; eram presentes para lá do perímetro financeiro dos meus pais.
A causa é luminosa, mas a consequência é negra. Ontem, a mais velha disse-me que “hoje ainda não recebi presentes”. Que escândalo: vinte e quatro horas sem presentes. Repare-se que esta é uma frase típica de Dezembro e Agosto, meses de maior contacto com familiares e amigos, meses que reforçam a chuva de presentes. Como é que vou lutar contra isto? Quando entro na Fnac, tenho de combater o impulso que me leva a procurar o novo filme da Pixar? E será que é legítimo proibir os familiares e os amigos de oferecer presentes às minhas filhas? Será que é legítimo pedirmos às pessoas que concentrem os presentes nos aniversários e no natal? Já pensei nisso, mas seria talvez um pedido demasiado brusco e até ofensivo. No entanto, não me parece ofensivo impor - num determinado ano - um Natal espartano, sem presentes e focado no presépio e não nas meias penduradas na chaminé ou na árvore de natal. Terei eu coragem?
Henrique Raposo
RENASCENÇA
Não estou a falar de uma moratória eterna contra os presentes em todos os Natais; esta intifada anti-consumista seria consumada num único Natal, num determinado ano; nesse Natal sem caixas e embrulhos, elas aprenderiam algo que é cada vez mais difícil de ensinar: a gratidão.
Julgo mesmo que estamos a criar uma geração ingrata. Os nossos filhos são ingratos por natureza, porque os presentes pingam ao longo do ano de uma forma natural. Para as minhas filhas, receber presentes é quase um acto da natureza, é tão natural e óbvio como a chuva. Aliás, neste momento, ver a chuva a cair é algo mais raro e maravilhoso do que receber presentes. A sensação de encantamento que vi nos seus olhos há dias durante uma rara chuvada devia estar presente no momento em que recebem um presente. Sucede que elas, à semelhança de milhares e milhares de miúdos por este país fora, recebem os presentes com um bocejo, brincam com eles durante umas horas ou dias e depois pedem novos brinquedos.
No meu tempo, um brinquedo tinha um prazo de validade eterno. Para as minhas filhas, tem o prazo de validade do iogurte. Confesso que não sei como lutar contra esta ingratidão. Parece-me algo estrutural no próprio ar do tempo.
Os preços do mercado são tão baixos que avós, tios, amigos e vizinhos acabam por lhes oferecer presentes numa base semanal, para não dizer diária. Ou são brinquedos, ou são roupas, ou são doces. Ou é a boneca, ou é o boneco, ou é uma colecção nova de cromos do Continente e Pingo Doce, ou é um par de meias do Frozen, ou é um par de pantufas do Mickey, ou é um caderno, ou é um estojo da Branca de Neve, ou é outro estojo do Frozen, ou é outro estojo da Patrulha Pata, ou é um puzzle do Canal Panda, ou é uma caixa de legos, ou é um chupa-chupa, ou é um chocolate, ou é um fato da Elsa, da Branca de Neve, da Rapunzel, da Minnie – é carnaval o ano todo.
Claro que as pessoas fazem isto por bem, querem mimá-las. Para muitos, esta generosidade até é uma forma de compensação: há cinquenta anos, tiveram infâncias miseráveis e agora gostam de oferecer coisas às miúdas num acto de amor, sem dúvida, mas também num acto de vingança contra essa miséria passada. Eu próprio sinto isso. Não me pretendo inocente, faço parte do problema. Adoro comprar-lhes coisas, sobretudo filmes, livros, legos. Não tive uma infância desafogada e, muitas vezes, era eu que inventava os meus próprios brinquedos. Lembro-me sobretudo dos canhões e blindados que fazia com caixas de fósforos.
Hoje, à beira dos quarenta, a ideia de entrar numa loja para comprar algo às minhas filhas dá-me uma sensação de conforto e, sim, de vingança contra esse passado em que queria ter a Estrela da Morte em lego ou o Barco dos Piratas da Playmobil. Queria, mas não podia; eram presentes para lá do perímetro financeiro dos meus pais.
A causa é luminosa, mas a consequência é negra. Ontem, a mais velha disse-me que “hoje ainda não recebi presentes”. Que escândalo: vinte e quatro horas sem presentes. Repare-se que esta é uma frase típica de Dezembro e Agosto, meses de maior contacto com familiares e amigos, meses que reforçam a chuva de presentes. Como é que vou lutar contra isto? Quando entro na Fnac, tenho de combater o impulso que me leva a procurar o novo filme da Pixar? E será que é legítimo proibir os familiares e os amigos de oferecer presentes às minhas filhas? Será que é legítimo pedirmos às pessoas que concentrem os presentes nos aniversários e no natal? Já pensei nisso, mas seria talvez um pedido demasiado brusco e até ofensivo. No entanto, não me parece ofensivo impor - num determinado ano - um Natal espartano, sem presentes e focado no presépio e não nas meias penduradas na chaminé ou na árvore de natal. Terei eu coragem?
Henrique Raposo
RENASCENÇA
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