"Novena de Natal"

Com texto de Rui Fernandes e ilustrações de Rui Aleixo, este novo livro da Editorial A.O. assume-se como uma «proposta de oração baseada em cada uma das personagens e em cada um dos lugares do Natal».

«Cada dia, somos levados a contemplar o presépio a partir de um protagonista diferente, através de algumas pistas de oração e de pequenas ilustrações, que ajudam a alimentar a imaginação e, sobretudo, o silêncio interior», na convicção de que «o Natal continua a acontecer hoje, no território familiar» da vida.
A primeira parte do livro abre o leitor à origem da novena, prática devocional que apesar de desconhecida em muitos meios católicos, continua a manter-se em Portugal e noutros países, especialmente em ocasiões significativas do ano litúrgico, como solenidades, o Advento e o Natal.
Remontando aos gregos e romanos, que ao nono dia de luto organizavam uma celebração evocativa em família, a novena tornou-se a prática de rezar durante nove dias consecutivos por uma intenção ou para obter uma “graça”.
Apresentamos um excerto das primeiras páginas do livro, que compreendem o percurso histórico da novena, seguindo-se o itinerário do primeiro dia.

Quanto às origens da novena
Não existia na tradição judaica este modelo de nove dias de celebração religiosa (fosse para comemorar uma festa, fosse para chorar uma perda). Esta prática seria no entanto comum entre gregos e romanos que, ao nono dia de luto, organizavam uma celebração evocativa em família.
Os testemunhos que temos dos santos e teólogos dos primeiros séculos de Cristianismo deixam-nos perceber o trabalho de discernimento e de apropriação de ritos e símbolos feito pelas comunidades. Com tempo, a celebração pelos defuntos ao terceiro, sétimo e nono dias impôs-se. Reis e príncipes, mas também bispos e cardeais, deixavam em testamento o pedido de que se celebrasse missa nos nove dias consecutivos após a sua morte. Finalmente, esta prática ficou reservada ao Papa, na chamada “Novena Papal”, já no século XVIII, com Bento XIV.
Para além desta forma de novena pelos defuntos, existem também novenas de preparação para uma festa litúrgica, como seja a Novena de Natal. Com origem provável em França, Espanha e Portugal, estes nove dias de oração fariam eco dos nove meses de gestação de Jesus no ventre de Maria. Surgem assim as antífonas do “ó” (o “ó” da exclamação face ao Mistério; o “ó” da alusão às formas da gravidez) seguidas da oração do Magnificat integradas na celebração da missa nos dias que antecediam o Natal. Na ilha da Madeira, assim como nas longínquas Filipinas, esta tradição permaneceu até hoje nas chamadas “missas do parto”, celebradas ao alvorecer de cada dia da novena.
Outra forma muito antiga de novena, a novena de intercessão, aparece documentada desde o ano 1000, sobretudo nas igrejas do norte da Europa. As pessoas acorriam às igrejas onde estavam sepultados certos santos (como santo Huberto) para pedirem a sua intercessão num momento de doença ou sofrimento.
Uma quarta forma de novena consiste na “novena para obter indulgência”, isto é, numa novena como meio para obter o perdão. O Papa Alexandre VII autorizou esta forma de novena por altura da comemoração da festa de S. Francisco Xavier, celebrada pela primeira vez em Lisboa (no século XVI).

Quanto ao seu valor
As novenas são uma expressão da chamada “religiosidade popular”. Ouve-se, de tempos a tempos, o eco de uma crítica típica do século XIX feita contra este tipo de expressão popular. «É superstição!», «É superficial!», «As pessoas nem sabem o que estão a fazer!». Segundo esta crítica, a religiosidade popular é pobre e mesmo perigosa, porque no fundo convida as pessoas a repetirem rituais como quem espera que algo aconteça magicamente, e fá-lo usando figuras e temas cristãos de uma maneira superficial, para não dizer ignorante. De acordo com esta perspetiva, uma boa “religiosidade” deveria ser racional e bem formada. Teríamos, portanto, de um lado uma religiosidade “do corpo e do sentimento” e, por outro, uma religiosidade “do cérebro e da razão”.
Felizmente, parece-nos cada vez mais claro que, respeitando-se sensibilidades, não pode haver uma sem a outra. Sem reflexão, os gestos correm de facto o risco de se tornarem mecânicos; sem gestos, a reflexão corre o risco de perder o contacto com a realidade, de se ficar pelas palavras e, pior, de não tocar as nossas vidas.
Olhando à sua história, a prática das novenas parece guardar um conjunto de intuições profundas. Em primeiro lugar, ela manifesta a convicção de que Deus é alguém acessível: Ele escuta-nos. Em segundo lugar, ela configura uma certa pedagogia e até uma certa delicadeza espirituais. As festas preparam-se “por dentro e por fora”. A preparação interior de uma festa passa por um trabalho interior de descoberta, de procura, mas também de desejo de acolher (Deus e os outros). Em terceiro lugar, ela conserva a ideia de que a fé nos põe em comunhão com as outras pessoas, vivas e mortas. A sensibilidade às alegrias e dores dos outros, assim como a esperança de que os outros estão disponíveis para nos apoiar, pertence a esse ambiente de comunhão e de compaixão que povoa a “morada dos santos”. Finalmente, o valor de uma novena, “a graça por excelência”, é o da relação íntima com Deus que nos encoraja em cada dia para abraçar a vida e os outros (os de aquém e os de além). É aí que se experimenta o amor – de/a Deus e do/ao próximo – que cura, salva, guarda, anima e dá luz.

Nascer? Para quê? (1.º dia)
Introdução
Escritos com mais de 2000 anos de diferença, o livro do Êxodo e o livro dos Exercícios Espirituais refletem a mesma intuição: a injustiça não deixa Deus indiferente. Deus não abandona a sua criação.

Começar por esta pequena oração
(Procura um lugar que te ajude a entrar em oração. Depois, repete esta pequena oração, procurando acima de tudo despertara vontade de estar com Deus.)


Senhor,
peço-Te que me dês a graça
de olhar o mundo
com os teus olhos
na esperança de que,
sentindo como Tu sentes,
aja como Tu ages.


Textos para imaginar
(Lê os textos uma primeira vez e sublinha as palavras/expressões que, hoje, “mexem” contigo.)

Moisés estava a apascentar o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madian. Conduziu o rebanho para além do deserto, e chegou à montanha de Deus, ao Horeb. O anjo do SENHOR apareceu-lhe numa chama de fogo, no meio da sarça. Ele olhou e viu, e eis que a sarça ardia no fogo mas não era devorada. Moisés disse: «Vou adentrar-me para ver esta grande visão: por que razão não se consome a sarça?». O SENHOR viu que ele se adentrava para ver; e Deus chamou-o do meio da sarça: «Moisés! Moisés!». Ele disse: «Eis-me aqui!». Ele disse: «Não te aproximes daqui; tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa». E continuou:
«Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob». Moisés escondeu o seu rosto, porque tinha medo de olhar para Deus. O SENHOR disse: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está o Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel, terra do cananeu, do hitita, do amorreu, do perizeu, do heveu e do jebuseu. E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e vi também a tirania que os egípcios exercem sobre eles. E agora, vai; Eu te envio ao faraó, e faz sair do Egito o meu povo, os filhos de Israel». (Do livro do Êxodo 3, 1-10)

Lembrar a história do que quero contemplar: como as Três Pessoas divinas olhavam toda a superfície do mundo, cheia de gente. Vendo como todos desciam ao inferno, determinam, em sua eternidade, que a Segunda Pessoa Se faça homem, para salvar o género humano. Assim, chegada a plenitude dos tempos, o anjo Gabriel foi enviado a Nossa Senhora. (Dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola, nº 102)

Pistas para ajudar a entrar nos textos
(Caso tenhas encontrado uma palavra/expressão que te tenha provocado, aproveita-a: tens aí “assunto” para aprofundar e para conversar com Deus. Caso precises de ideias, deixamos-te algumas pistas.)


1. Tira as sandálias dos pés
Há certos encontros que só são possíveis se abandonarmos as nossas defesas. Para se aproximar de Deus, Moisés teve de assumir a sua vulnerabilidade para se apresentar diante de Deus tal como ele era. Por vezes dói, andar descalço; mas só assim podemos sentir o mundo como ele é. Descalços tornamo-nos capazes de acolher a realidade: a realidade da nossa vida e da vida dos que nos rodeiam.
Quais são as tuas «sandálias»? O que é que te tem impedido de viver a vida de maneira autêntica? O que te impede, hoje, de entrar na intimidade com Deus e com os que te são próximos? Identifica essas sandálias, e pede ao Senhor que te ajude a descalçá-las.


2. Conheço, na verdade, os seus sofrimentos
O mal existe: todos o experimentamos (umas vezes como vítimas; outras, como autores; outras ainda como espectadores). A forma como cada um reage ao mal revela, de algum modo, o seu caráter.
Imagina este encontro entre Moisés e o Senhor. Ouve a voz de Deus e como fala do sofrimento do povo. O que é


3. Que a segunda pessoa se faça homem
Santo Inácio convida-nos a entrar na intimidade de Deus (o lugar sagrado por definição) e a imaginar como a Santíssima Trindade fala da humanidade.
Imagina esse diálogo entre Pai, Filho e Espírito Santo (se te ajudar, usa o ícone da Santíssima Trindade, de André Rublev). Como falam do mundo? O que sentem? Quais são as suas preocupações? E tu: como olhas e falas do mundo à tua volta? E como participas na sua história de salvação?


Para terminar, rezar com a tradição da Igreja
(Toma nota, num caderno, das frases/ideias/intenções que te chegaram durante o tempo de oração. Elas podem ajudar-te a identificar sinais da presença de Deus na tua vida. Depois repete esta antiga oração – uma das chamadas antífonas do ó – composta entre os séculos VII e VIII.)


Ó Adonai
guia da casa de Israel,
que aparecestes a Moisés
na chama do fogo
no meio da sarça ardente
e lhe deste a lei no Sinai
Vinde resgatar-nos pelo poder
do vosso braço.


Pai-Nosso. Ave-Maria. Glória.

Texto: Rui Fernandes
Publicado em 28.11.2017
SNPCULTURA

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