Carta a um filho que está longe

Faz-me falta falar contigo!
 
Um dia, eu acho que te recordas, pedi-vos aos mais crescidos que escrevinhassem uma ideia qualquer sobre mim, o pai, para a badana de um livro de textos dispersos que, há muitos anos já, eu tinha escrito. Nessa altura - com espanto, para mim - tu escreveste: "Quando for grande, eu quero ser pai!" É verdade que fui apanhado pela surpresa. E é claro que me fiz... despercebido. (Convencionou-se que o pai é o distraído oficial de todas as famílias; não é?...) Mas, seja como for, tentei apanhar a tua intenção, solene e generosa, logo de seguida. Passei-te a mão pela cabeça. Sorrimos um para o outro. E, depois de um abraço de pai (daqueles que fazem com que um filho se debata e o empurre), corri para um caderno. Daqueles de capa preta onde sujava os dedos, com a tinta da caneta. Abri-lhe o elástico. Folheei-o a correr, para que o diabo da inspiração não fugisse de mim. Acariciei, depois, devidamente, a folha em branco. Medi forças com ela. Inspirei, pausadamente. E, quase como quem faz humor, tropecei no embaraço, e escrevi: "Pai?… Mas pai é, por acaso, profissão que se tenha?..." Não é, claro. Mas há dias assim.
A verdade é que um pai está preparado para sair sempre a ganhar, quando - bem chegadinho a um filho - vinca um pé descalço sobre a areia e desfruta, lá do alto, as diferenças dos dois pés. Como quem imagina que vai sempre estar vários passos à frente e, só por isso mesmo, será pai para sempre. A verdade é que um pai está preparado para dar o dedo indicador, para que um filho se agarre a ele, e o mundo, dessa forma, pareça ser, todo ele, da família. Está preparado para pôr um filho às cavalitas. Quase como quem o leva até ao pico do mundo, para que ele o veja de cima para baixo. Está preparado para que, a pedido de um filho, se pôr em bicos de pés. E, sobretudo, para se esticar de uma pontinha até à outra do seu corpo. E, desbarrigado e tudo, de braços bem levantados, corresponder a pedidos absolutamente "vulgares" (quase "irrisórios", mesmo) daqueles que, com naturalidade, dão a um pai uma aura de herói da Marvel. Mais ou menos assim: "Pai, se te esticares, chegas às nuvens?..." (É claro que sim, meu filho! Afinal, quem mais "arranha" céus, na tua vida?...) Mas, por mais que esteja preparado para quase tudo - pode ser teimosia, pode ser - nunca está preparado para que um filho queira ser pai.
Quando um filho quer ser pai, não é bem a aspiração de - num dia, mais ou menos longínquo - vir a ocupar o lugar do pai que o deixa de coração arrepiado e encolhido. Mas, mais, o calafrio de um filho poder vir a prescindir do seu dedo indicador. E passar bem sem andar às suas cavalitas, mesmo que, à custa disso, o mundo fique, aos olhos de um pai, todo ele atarracado. E deixar de ser imprescindível o furor (mágico!) de, enquanto a mãe faz de Deus na Terra, um pai o levar até às nuvens. Eu acho que um pai, vendo bem a sua preciosa função, passa a ser pai quando um filho o imita e desata a esculpir as nuvens. "- Já viste aquela, que parece uma bruxa?…" Porque, de repente, ele virou o nariz para o céu e, com os pés bem na Terra, começou a voar. E é aí que um pai se engasga todo e, como um órgão que teme não existir sem a sua função, se pergunta: pode um pai de alguém que voa ser pai sem estar sempre além do seu voar? Não devia poder! Porque para que um pai faça o seu número de arranha-céus, para sempre, os filhos deviam ser pequeninos sempre que o pai precise.
É claro que eu sempre soube que isso de se fazer de contas que se é grande é, digamos assim, o território das mães. Mas, parece-me a mim, sempre convivi bem com isso. Porque logo que o menino Jesus já não chegava como entidade reguladora para as asneiras que eu fazia, cresci com a minha a mãe a dizer que gostava de ser mosca. Dando a entender que há alturas que nem o sexto sentido resiste à aspiração de todas as mães de estarem em todos os lados ao mesmo tempo. Se há coisas que uma mãe não devia ter como expectativa de carreira é ser... mosca! (Pensei, muito mais tarde, ajustando as contas com aquilo que fui ouvindo...) Porque as moscas não são nem charmosas nem bonitas. Não têm critérios de qualidade por aí além quando se trata de escolher onde pousam. E fazem um zurzir sem graça nenhuma. Mas, se tudo isso quer dizer alguma coisa, é que foram precisos muitos anos para perceber que é, verdadeiramente, lisonjeante que a nossa mãe aceite ser mosca só para estar, quase sempre, ao pé de nós. Seja como for, entre uma mãe que queria ser mosca e um filho que queria ser pai há uma Arca de Noé de desafios que a vida nos coloca para esclarecermos de que forma o amor nos mete debaixo do braço e nos transforma. Mesmo que, à custa dele, de tão pequeninos nos sentirmos, nada nos tire da cabeça este desconforto do mundo parecer estar, vezes demais, com as voltas trocadas. Ou, doutro modo, como seria possível que, ao ser grande, um pai não se importar por aí além em ser... mosca?
Não, sempre que um pai não desiste de ser pai, um filho nunca está longe. Pode, até, doer-lhe até ao fundo de si não o tocar nos olhos, todos os dias. E haver um "Faz-me falta falar contigo" que, por mais que que se tagarele, nunca se resolva. E, pode, até, haver uma insubordinação ingovernável contra a ordem natural das coisas porque se Deus achasse que a telepatia de um pai fosse jurássica nascíamos todos equipados com Skype. E, mesmo em desespero, pode até não ter de lhe dizer, como quem recapitula a sua função (para que ela não se constipe nem entorpeça...): "Precisamos de ter uma conversa!...". Mesmo que, a seguir, se entaramele com as palavras para não dizer, a torto e a direito, "amo-te", "dá-me um abraço", "estás tão bonito!" e outras mãezices pouco dignas de um pai. Mas não, sempre que um pai não desiste de ser pai, um filho nunca está longe. E sempre que o longe parece longe é porque a distância o desculpa e ele se aconchega nela e, só para não querer ser mosca, vacila e desiste de o trazer, todos os dias, para o pé de si. Tenha um filho o tamanho que tiver. Tenha ido ele além de um arranha-céus. E, contra todas as previsões, tenha furado as nuvens (tudo muito para além dos números de magia de um pai) para estar onde estiver. Não, sempre que um pai não desiste de ser pai, um filho nunca está longe. Porque, esteja perto ou esteja longe, a sua casa somos nós.

EDUARDO SÁ
 *Texto em repositório com edição especial para a sua versão digital

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