O que nos faz agir e transcender em cada dia é a esperança de que
alguma coisa se componha, de encontrar sentido para a vida, de evoluir,
de perceber mais. E temos esperança pela certeza do inesperado.
A esperança, neste mundo de guerras e conflitos, atentados contra
inocentes e tensões permanentes, é uma questão tramada, por assim dizer.
De que é feita a esperança? E serve para quê? Faz algum sentido
cultivar uma atitude de esperança quando tanta coisa à nossa volta
convoca à raiva, ao ódio e ressentimento ou, até, à desesperança? Não
será muito mais natural e, porventura saudável, detestar, retaliar e
vingar? De que adianta falar daquilo que menos temos, numa era de
pessimismo crónico?
“Quando falamos de esperança não podemos deixar de partir da
constatação do facto de que estamos numa condição de falta”, disse o
italiano Paolo Galardi este fim de semana, em Viseu, num encontro
internacional promovido pela CNAL – Conferência Nacional de Apostolado
dos Leigos, cujo tema era justamente “Este é o tempo para esperar contra
toda a esperança, para trabalhar pela justiça e pela paz”.
Paolo Galardi, artista, padre e conselheiro espiritual do atelier de
teologia do Centro Aletti – Instituto Pontifício Oriental, em Roma, fez
questão de sublinhar que “a esperança não é optimismo, não consiste em
viver confiando numa deusa da sorte que talvez faça girar as coisas a
nosso favor. É uma visão que vai além do presente, mas deve ser uma
visão real, para não ser ilusão”. E ilustrou esta visão realista, por
oposição a qualquer fantasia ilusionista, partilhando a sua experiência
recente com um grupo de reclusos da prisão de Rebibbia, em Roma, a quem
ensina a arte do mosaico.
“– Rapazes! (não são muito jovens, mas este é o jargão da
cadeia), posso fazer-vos uma pergunta? O que acham sobre a esperança? O
que é para vocês?
Fez-se um momento de silêncio. O primeiro a responder foi o Giuseppe: “eu acho que a esperança é a liberdade”.
Depois o Gianluca acrescentou: “para nós a esperança é o café de manhã, é o que nos faz andar para a frente”.
O Pasquale continuou: “a nossa esperança é reencontrar um dia aquilo
que deixámos”. E disse ainda: “a esperança para nós, presos, é que esta
experiência da prisão possa um dia fazer sentido. Que possamos um dia
dizer que serviu para alguma coisa!”.
Confesso que não esperava nada receber respostas tão profundas da
parte deles. Engoli as lágrimas enquanto eles falavam e tomei nota
dessas palavras numa folha. Estamos “presos” na cadeia da nossa
individualidade egoísta e se não tivéssemos cadeias nem sequer existiria
a esperança”.
Portanto, Paolo Galardi disse e repetiu: “quando falamos de esperança
não podemos não partir da constatação do facto de que estamos numa
condição de falta”.
É interessante perceber como a esperança frutifica na escassez e os
seus frutos, esses sim, abundantes, se colhem sempre no futuro. Nesta
lógica, poderíamos dizer que a esperança é o melhor exílio que podemos
encontrar para escapar ao presente. Como não há existência sem negativo
nem o mundo humano pode ser inteiramente ‘zen’, a esperança funciona
como “uma intuição sobre o futuro”.
A frase vem cheia de beleza, mas também carregada de sentido.
Voltando à partilha sobre as conversas com os seus amigos presos, Paolo
Galardi deteve-se no facto de um deles ter dito que a esperança era
encontrar alguma coisa que deixamos, mas nos pertence.
“Eles disseram uma coisa muito verdadeira. Trata-se na realidade
de um trabalho de memória mas não uma memória do passado. Recordar
eventos passados é uma coisa natural, mas nós, os cristãos, temos uma
memória do futuro, uma memória possível num tempo onde a fragmentação
pode ser curada.
Nós estamos habituados a pensar que o reino dos céus é o efeito da
forma como as coisas correm na terra, como se ele fosse o efeito dos
nossos esforços, mas esse reino não é a consequência, é antes a causa, é
a razão pela qual subsistem o tempo e o mundo. A verdade de cada ser
humano não está no passado: eu não sou o produto dos meus pais e da
minha história passada. A nossa verdade está no futuro, no futuro para o
qual está orientada.”
A perspectiva invertida que Galardi evocou dá que pensar. Citou
Evágrio Pôntico, monge do século IV, quando este escreveu: “Se queres
conhecer aquilo que és, não olhes o que foste, mas sim o ícone que Deus
tinha em mente ao criar-te”. Neste sentido, a esperança atira-nos para a
frente e faz-nos caminhar sem pré-determinismos para um futuro que tem o
duplo poder de resgatar presente e passado. Faz sentido, sobretudo
quando conhecemos pessoas concretas que durante muitos anos foram uma
coisa e, depois, passaram a ser outra, infinitamente melhor e maior.
Penso em pessoas como o Johnson Semedo, fundador da Academia do Johnson,
na Cova da Moura, também ele ex-recluso, que, depois de cumprir a sua
pena, foi capaz de converter todo o negativo da sua vida em positivo,
passando ele próprio a resgatar crianças e jovens da criminalidade,
evitando assim que percorressem os mesmos caminhos que ele percorreu.
Para quem não crê, nem se revê na terminologia cristã de Galardi e da
maioria dos presentes que se reuniram em Viseu (para cima de 500, mas
nem todos católicos), talvez faça sentido contrastar a esperança
imaginando um mundo sem ela. Imaginando um mundo anestesiado,
ensimesmado, desolado, demisso e sem qualquer expectativa de futuro.
Seria um inferno, certamente.
O que nos faz agir e transcender em cada dia é a esperança de que
alguma coisa se componha, de encontrar sentido para a vida, de evoluir,
de saber mais e perceber melhor, e por aí adiante. O que nos faz ter
esperança é a certeza do inesperado. Se esse inesperado ainda por cima
corresponde à surpresa de nos elevarmos à altura da imagem, do tal ícone
que Alguém (Deus para os cristãos, o Universo ou outra entidade
superior para quem tem outras crenças) tinha em mente quando nos criou,
então a esperança ganha ainda mais sentido e tem seguramente mais
impacto no quotidiano de cada um.
A esperança é muito contagiosa, mas precisa de ser injectada. Na
altura dos atentados de Paris alguém disse publicamente que “não podemos
ficar fechados no choque, no estado siderado, na atitude do aflito ou
no pavor dos que vivem cheios de medos”. Perder a esperança não pode ser
opção, porque nos arrasta para a beira da estrada. É saudável, sim,
odiar o mal e detestar a desumanidade, a barbárie, a destruição absurda e
a matança de inocentes.
Para que a esperança contagie muitos, muito depressa, é preciso
definir os valores que queremos defender, eleger as causas em que
queremos militar e ordenar as prioridades de cada dia.
Se calhar também é preciso fazer uma certa dieta de écrans ou, no
mínimo, fazer como se faz com os animais que temos em casa: domesticar
os hábitos de consumo de telemóveis, tablets, computadores e televisões,
para não nos toldarem nem intoxicarem, entupindo as veias por onde
corre esse soro salvífico da esperança. Afinal precisamos tanto dela
como do café da manhã para nos despertar e pôr a caminho.
Comentários
Enviar um comentário