Também nos acontece pensar que combinámos encontros e,
afinal — depois compreendemos —, eram desencontros o que empenhadamente
estávamos a organizar. Claro que há desencontros dececionantes e que lamentámos
por muito tempo, mas o mesmo se pode dizer de certos encontros.
Existe, porém,
no desencontro a possibilidade de uma comunicação a outro nível que não fica
coartada pela ausência. O vazio, por incómodo que seja, pode revelar-se um dom.
Idealizamos demasiado o contacto com a alteridade, enredamo-nos em
expectativas, projetamos tanto que a relação se torna um precipitado jogo de
sombras. O desencontro corrige muitos desses equívocos internos. Deixa-nos de
mãos vazias, é verdade, mas dessa maneira devolve-nos a nós e recoloca-nos, perante
o outro, mais conscientes da irredutível distância que nunca é vencida, mesmo
na intimidade. Fernando Pessoa escreveu que “falar é o modo mais simples de nos
tornarmos desconhecidos”, relativizando assim as ilusões imediatistas da viagem
entre o eu e o tu. O caminho para o outro é sempre uma longa estrada. Por isso,
à medida que os anos passam, aprendemos a agradecer não apenas o que os
encontros nos trouxeram — que foi quase tudo —, mas também o que nos chegou
através de desencontros.
Há um curioso entre Fernando Pessoa e Cecília
Meireles. Em finais de 1934, a poetisa veio pela primeira vez a Portugal e
marcou um encontro com Fernando Pessoa ao meio-dia na Brasileira do Chiado.
Passando já das duas, e sem que Pessoa aparecesse, Cecília Meireles levantou-se
e foi para o hotel. Ao chegar, tinha em seu nome, na receção, um exemplar
autografado da “Mensagem” e um bilhete com as desculpas de Pessoa. Este captara
vibrações mediúnicas e, tendo consultado o seu horóscopo, percebeu que os dois
não se deviam encontrar. Ela retorquiu com um cartão lacónico: “Cecília
Meireles — cumprimenta e agradece”. Mas o desencontro deles foi um encontro que
não acabou ali. De regresso ao Brasil, Cecília escreve um dos primeiros textos
críticos a respeito do universo pessoano na antologia “Poetas novos de
Portugal” (1944) e, duas décadas mais tarde, publica uma crónica no “Jornal do
Brasil” intitulada “Fernando Pessoa me ajudando” (1968), partindo das noções de
fingimento e de sinceridade.
Cada um de nós pode contar os seus desencontros
estimáveis. Por exemplo, estive em Belo Horizonte cinco vezes. Em cada visita,
e sem que eu o sugerisse, houve sempre alguém a oferecer-se para levar-me ao
encontro de Adélia Prado. Telefonaram para o filho, o marido, para ela própria
diante de mim. O gosto existia, mas nunca se efetivou: o dia em que eu podia ela não;
por minha parte, estava prisioneiro dos compromissos que me prendiam a Belo
Horizonte (ela mora numa cidade satélite, Divinópolis) e tinha pouca
flexibilidade de tempo; o melhor seria adiar. Mas também não estive quieto:
tentei trazer Adélia Prado a Portugal. Removi mundos e fundos: articulei o
projeto com a embaixada do Brasil, ela recebeu um convite do Ministério da
Cultura do seu país, participei na organização de uma antologia da obra dela
que a Assírio publicou. À última hora Adélia escreveu, depois de tudo acertado,
passagens reservadas inclusive, confessando uma impossibilidade de viajar. Não
fiquei menos feliz do que se ela tivesse desembarcado. Acho que percebi a grandeza
do desencontro.
Este mês de setembro voltei a Belo Horizonte. Sem
esperar, no final de uma conferência, uma pessoa que eu nunca vira veio
oferecer-se para promover um (des)encontro com Adélia Prado. E eu sorrindo
disse: “Mas ela não lhe contou que eu já a encontrei?”
José Tolentino Mendonça
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