Os grandes mestres da fé podem ser completamente
inesperados. Pense-se em Flannery O’Connor, que muitos têm como um dos nomes
fundamentais da literatura contemporânea, mas que se espantariam que dela se
dissesse o que também é indiscutível: que foi uma das grandes vozes espirituais
do século XX.
Em português estão editados os seus romances e contos, e apenas
um pequeno caderno espiritual intitulado “Diário de Preces”. Faz falta a
publicação dos seus ensaios e do volumoso conjunto de cartas, para termos uma
visão unitária do seu projeto. Esses textos demonstram como e porquê Flannery
explicou de si mesma: “Leio imensa teologia, porque isso torna as minhas
páginas mais audazes”. De facto, ela recenseou, ao longo dos anos, larguíssimas
dezenas de livros de teologia, de Karl Barth a Romano Guardini, de Yves Congar
a Henri Daniélou ou a Maritain, dialogando com o seu pensamento. Definiu-se
sempre como uma “tomista rural”, que precisava de ler Tomás de Aquino todos os
dias vinte minutos antes de ir para a cama. Numa carta de 1955, ela divertia o
seu correspondente imitando desta maneira o estilo da “Summa Theologica”: “Se a
minha mãe viesse ter comigo durante a leitura e pedisse, ‘Apaga a luz. É
tarde’, eu, com o dedo levantado e expressão beatífica, replicaria: ‘A luz
sendo eterna e ilimitada não pode ser apagada. Fecha tu os olhos’”.
Mas de beatífica, no sentido trivial, O’Connor tinha
pouco. Propôs-se nada menos do que contrariar a complacência sobre a questão
religiosa viesse ela donde viesse: tanto dos agnósticos, muitas vezes
instalados num pragmatismo facilitador, como o dos crentes que reduzem a fé a
uma asseguração para as suas necessidades. Em grande medida o engenho da sua
narrativa estava dirigido contra os mecanismos de defesa das nossas sociedades
secularizadas em relação a Deus. Quanto a isso, não alimentava ilusões e fazia
gala em tocar escancaradamente o ponto de dor: “A redenção não tem sentido, a
não ser que haja uma razão para ela na vida que vivemos. Ora, durante os
últimos séculos, a nossa cultura secular instalou a convicção de que tal razão
não existe”. Por isso, mediante o choque provocado pela distorção drástica do
grotesco, a literatura de Flannery visa desestabilizar a respeitável audiência
moderna que pensa que Deus está morto. Mas o mesmo se aplica aos crentes. Ela
desdenhava a linguagem piedosa e a obsessão do moralismo causava-lhe verdadeira
repulsa. A uma leitora católica que lhe escreveu manifestando o desagrado pela
falta de elevação dos seus contos macabros, ela respondeu: “Se você tivesse o
coração no sítio certo, os meus contos tê-la-iam elevado”.
Interessava a Flannery O’Connor ampliar a
autoconsciência do leitor, mesmo que fosse preciso dinamitar os lugares comuns
onde este se instala e arrancá-lo violentamente das suas falsas seguranças,
pois só desse modo poderia levá-lo a uma abertura à experiência religiosa. As
suas histórias, que muitos consideravam (e ainda consideram) brutais e duras
abordam a natureza conflitual do encontro com a Graça, em personagens que não
parecem dispostas a acolhê-la. Um dos seus contos mais famosos, “Um homem bom é
difícil de encontrar” — que foi inclusive o relato mais vezes lido pela autora
em apresentações públicas — termina com uma frase emblemática e terrível sobre
a personagem principal: “Teria sido uma boa mulher se estivesse estado lá
alguém em cada minuto da vida dela para a matar”. É cru, claro. Mas só quando
tombam as defesas, a fé irrompe no território inimigo que é o conformismo.
José Tolentino Mendonça
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