Uma coisa é certa: a
dificuldade atual que temos com a esperança obriga-nos a purificar as
representações que fazemos. Tornou-se insuportável o discurso de uma
esperança isenta, empolgada, ligeira, fácil, imediata.
Se um pensamento
da esperança tem hoje pertinência é o de uma esperança que aceite a
prova de fogo da desesperança, e que a integre no seu próprio processo.
Uma esperança que não ignore o enigma e o absurdo de múltiplas situações
da história, e não se pretenda ainda triunfalista ou autorreferencial.
Como testemunha o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen: “As paredes
são brancas e suam de terror/ A sombra devagar suga o meu sangue/Tudo é
como eu fechado e interior/Não sei por onde o vento possa entrar”. A
palavra possível é, assim, sobre uma esperança humilde e depurada; uma
esperança quase apofática, que tenha a forma daquele “esperar contra
toda a esperança” (Rm 4,18), de que nos fala o apóstolo Paulo.
Um dia, um amigo fez a Franz Kafka a
seguinte pergunta: “Existe esperança?” Kafka terá respondido: “Sim,
existe esperança, e uma esperança infinita, mas não para nós.” Um outro
exemplo: um dos romances emblemáticos para um certo espírito militante
no século XX foi o de André Malraux, “L’espoir”. Publicado em dezembro
de 1937, “A Esperança” descreve o início do conturbado período de
conflito civil que dilacerou a Espanha entre 1936 e 1939. E fá-lo com as
cores do desencanto. No final, o protagonista está sozinho e estas são
as últimas palavras do volume: “Manuel escutava pela primeira vez a voz
do que é mais grave que o sangue dos homens, mais inquietante do que a
sua presença na terra: — a infinita possibilidade do seu destino; e
sentia nele essa presença misturada ao rumor dos regatos e ao passo dos
prisioneiros, permanente e profunda como as pancadas do seu coração.” A
esperança permanece e ela é profunda como as pancadas do coração. Mas
vivemos tempos, porventura, com maior dificuldade em ouvi-la. A crise
hodierna é também uma crise da esperança.
Um comentador improvável de São Paulo, o
filósofo Alain Badiou, ajuda-nos a ver que aquele “esperar contra toda a
esperança” é, no fundo, uma fidelidade provada; uma tenacidade que o
amor encontra na prova; uma espécie de fidelidade à fidelidade e não a
imediata representação do seu resultado ou de uma recompensa futura. É,
de facto, fundamental que a esperança não seja encarada como uma forma
de escapismo teológico, mas constitua um abraçar consequente da duração e
do devir, este duro “não sei por onde o vento possa entrar”.
Somos todos experiência do inacabado,
indagação no incompleto, dureza e opacidade da pedra. E a esperança não
nega ou contradiz isso. A esperança é uma gestação espiritual que ocorre
precisamente nessas circunstâncias. É a esperança que entreabre, que
faz ver, para lá das duras condições, possibilidades ainda escondidas. A
nossa existência, do princípio ao fim, é o resultado de uma
aprendizagem da esperança, e só ela é capaz de dialogar com o futuro e
de o aproximar. Tal como o mal-estar é um sintoma que é preciso colher,
que não se pode de modo algum negligenciar sob risco de ameaçar o
conjunto da vida, assim a esperança. Ela não é uma exalação imaginária,
uma ficção que nos separa do curso da existência. Pelo contrário, ela
está tatuada no presente mais escaldante e escarno, exercita-se na
tribulação, aprofunda-se na paciência, alarga-se na capacidade de
resistir ao mal e ao sem sentido.
O teólogo Jürgen Moltmann escreveu: “O
realismo ensina-nos o sentido da realidade. A esperança acorda o nosso
sentido do possível.”
[©Revista Expresso | 2342, 16 de setembro de 2017]
OBSERVADOR
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