Se tivesse de dizer qual é para mim o lugar mais
inesquecível, não teria dúvidas: o lago de Tiberíades. Quando se compara este
pequeno mar da Galileia, como os antigos lhe chamavam, com Jerusalém, ele perde
em toda a linha.
Por isso, nem sei bem como justificar-me. Jerusalém tem uma
beleza que nos obriga a sucumbir. Entrando por qualquer uma das suas oito portas,
atravessando o seu desenho labiríntico, como se há muito fizéssemos parte dele,
podemos fechar os olhos e deixar que os sentidos nos guiem. Não há outro lugar
assim no mundo. O vozeio dos mercados, onde as especiarias se amontoam nas
lojas onde se trafica o ouro, se expõe no escuro a prata e a lenda, se empilham
livros, de viagens ou de orações (duas palavras sinónimas, afinal), que não só
descrevem o deserto mas que o conservam e ampliam dentro de si. O silêncio dos
pátios, a nudez dos terraços que depressa nos transforma em sentinelas de
mundos invisíveis, as esplanadas de pedra, as portas que se abrem para tempos
interiores que nunca são iguais. A pulsão nítida de uma prece ininterrupta na
malha desencontrada do mundo. Jerusalém é a cidade do Messias, e ali percebe-se
porquê. Não estranhem o que vou dizer: porque é a capital das lágrimas. O
filósofo E. M. Cioran, esse inesperado mestre contemporâneo dos caminhos da
alma, explicava que a maior dádiva da religião só pode ser essa: ensinar-nos a
chorar. As lágrimas dão um sentido de eternidade ao nosso devir. Elas guiam-nos
da orfandade ao êxtase. São as lágrimas a linha divisória que distingue os
seres que sabem tudo dos seres que não sabem nada. E se, por um absurdo, as
lágrimas se esgotassem, o nosso desejo e o nosso conhecimento de Deus
desapareceriam também. Cioran recorda, por exemplo, que, quando no final da
vida, São Francisco de Assis ficou quase cego, os médicos atribuíram o seu mal
a uma única causa: o excesso de lágrimas. A paradoxal e inapagável beleza de
Jerusalém é mergulhar-nos nesse excesso.
O lago de Tiberíades, ao pé disto, não é nada,
eu sei. É um lugar de fronteira, onde o território de Israel confina com o das
nações. Não tem uma monumentalidade distintiva. É um lago que no ponto mais
fundo chega apenas aos 43 metros e que se espraia discreto pelas margens de
pequenas pedras soltas e areão. As encostas têm uma flora selvagem, também ela
avulsa e rasteira, aqui e ali entrecortada por plantações de árvores de fruto
ou um fio de palmeiras. Desce por vezes sobre o lago uma nuvem húmida
esbranquiçada, mas ele é quase sempre descoberto como um pensamento
obstinadamente límpido. De todos os lugares da Terra onde se pode escutar o
silêncio, nenhum é como aquele. Quando nos metemos num barco até ao centro do
lago e, de repente, os motores se desligam, sentimo-nos a flutuar dentro de uma
ausência que é a mais incrível das presenças. Compreendemos então que nunca
antes havíamos escutado o silêncio nem visto como ele tem a forma de uma fenda
ou de um umbral. Gostaríamos de poder fixar essa impressão para sempre.
Sentimo-nos mergulhados nas águas maternais, no útero de Deus.
Que Jesus tenha dito, no final do Evangelho,
“voltai à Galileia, lá me vereis”, é ao mesmo tempo um intrincado enigma e a mais
pura das evidências. Experimentaremos uma coisa e outra. Mas quando do cimo da
colina ribeirinha, onde ele fez o seu programático discurso das
bem-aventuranças, nos colocamos a olhar fora e dentro de nós, colhemos
finalmente um sentido. E o estremecimento que nos percorre é este: a vida é a
possibilidade do milagre.
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