"A menina agora volta para casa. Nós não."

 
Foi o desabafo do Cesário que me fez escrever qualquer coisa sobre o que vivi na última semana. Eram dez e pouco da noite, tinha acabado a vigília de homenagem às vítimas em Figueiró dos Vinhos e ele ainda tinha na mão um balão branco que àquela hora já só estava meio cheio. Era o último dia de uma longa e dura jornada de trabalho e estávamos a arrumar as coisas para no dia seguinte regressarmos a Lisboa.

Entre nós, queixávamo-nos do sono. Da fome. Do cansaço. Do cheiro a fumo das roupas e das malas. Eu comentei que devia ter bebido mais um café. O Cesário, no passo lento dos seus 80 e tal anos, passou por mim e perguntou "já vão embora, não é?" Respondi-lhe que sim.
"Pois, a menina agora volta para casa. Nós não. Já não temos". Podia ter dito isto com um ar carregado. Triste. Mas não. Disse-o com um sorriso desconcertante. O mesmo com que a seguir acrescentou "mas olhe, quando cá voltar da próxima vez já hei-de ter e ofereço-lhe um café. Daqueles de saco, gosta?"

Dois dias antes, tinha estado nas Várzeas. As ruas estavam desertas. Encontrei o Sr. João Henriques sentado à sombra de uma árvore no centro da aldeia. Disse-lhe que tinha o nome do meu irmão. Ele ajeitou os suspensórios, sorriu e falou-me do pomar que perdeu. Tinha pessegueiros, nespereiras, cerejeiras, abrunheiras, limoeiros, laranjeiras, oliveiras, vinhas... Falou-me de cada uma das árvores que plantou e que desapareceram. "Isto para quem não entende o amor que se põe nestas coisas... não é nada. Eu não fiquei sem casa. Não me morreu ninguém, graças a Deus. Mas era como se fossem os meus filhos, percebe?" Abriu o portão de casa e mostrou-me o que tinha sobrado. Nada.
Perguntei-lhe se não ia plantar outra vez. Disse-me que não." Agora já não vale a pena, porque depois já não estou cá para ver como ficam bonitas". Para já, não vai limpar nada. Vai deixar tudo como está até ao inverno. Depois arranja "tudo direitinho" e pode ser que alguma delas ainda renasça. É difícil. "Mas era bem feito para o fogo, não era?"
No dia seguinte, conheci o António em Moleiros. O fogo derreteu-lhe o carrossel com que ganhava a vida. "Tinha cavalos, motas, até daquelas chávenas que giram, sabe? Agora está tudo aqui derretido no chão como se fosse uma pintura daquelas estrambólicas que custam um dinheirão". Ri-me. Ele riu-se também. "Olhe menina, estou a rir-me mas não tenho vontade nenhuma de rir. Mas também já decidi que não choro mais. Não merecíamos isto, caramba. Desta vez, ganhou o fogo".
O vizinho do outro lado da rua chegou entretanto e juntou-se à conversa. "Deixa lá, vá. Ganhou, ganhou. Vamos limpar isto. Amanhã vai ficar tudo limpinho, não vai?"

Sabes que estás há muito tempo num sítio, quando começas a ver caras conhecidas em todo o lado. Nos últimos dias já não havia aldeia onde não conhecêssemos alguém. Já nos cumprimentavam como se vivêssemos ali.
Não vivemos. Não fazemos parte da história deles. Fomos para a ouvir e para a contar e não consegui descobrir forma fácil de o fazer. Não é por acaso que escolhi estas e não outras histórias para falar do que vi e ouvi.

Guardei o microfone sempre que me contaram que perderam os pais. Os filhos. Os irmãos. Os netos. São desabafos sem filtro. Genuínos. Doridos. Que fazem connosco, porque parámos para ouvir e eles precisam tanto de falar. Alguém tem de pôr um filtro por eles. Não é preciso mostrar fraturas expostas para dizer que dói.

Guardei comigo as histórias mais duras.
O cheiro a queimado que não me sai do nariz.
O negro da paisagem e das placas.
Mas não podia fazer mais sentido partilhar a força que encontrei naquela terra. Ainda agora perderam tudo e já estão a pôr-se de pé. Com um sorriso desconcertante.

E sim, gosto muito do café de saco, Cesário.
Sim, era bem feito para o fogo, João.
Pois não, não mereciam António.
Pois vai, Manel. Pois vai.


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