Crentes em qualquer coisa ou
não crentes em qualquer coisa, num mundo em que os verdadeiros ateus – amáveis
na sua angústia – já todos puseram termo à sua vida e em que predomina a
religião da onfalocêntrica autoadoração, todos os seres humanos são chamados,
não apenas nos momentos de psicológica consciência da relevância de seu ato,
mas em cada seu ato de cada dia, de cada momento, atos de que o seu ser – o seu
sendo – se vai construindo, a escolher.
A escolher.
E cada escolha é um absoluto
irredutível. Se a humanidade ainda se encontra presente em ato – e o sonho do
tirano é sempre anular tal humanidade em ato em cada ser humano que pretende
parasitar –, então, nenhuma desculpa, biológica, psicológica, histórica,
sociológica, de outro modo cultural, ética ou política é determinante: se eu
ainda for eu, podem encostar a pistola à minha cabeça para que eu denuncie o
judeu ou viole a criança, mas eu, isso que sou eu – e eu sou só isso –, pelo
preço da minha vida – que é tudo o que tenho ou posso vir a ter – não obedeço.
Não faço a vontade ao
tirano. E, assim, mesmo morto, venci o tirano, pois apenas se pode ser tirano
sobre seres humanos que obedeçam ao que o tirano quer: Midas nem chegou a ser
tirano, era simplesmente estúpido, incapaz de antecipar logicamente as
consequências necessárias do seu desejo.
O tirano não pode nascer sem
que alguém lhe obedeça. É a obediência do, assim tiranizado, que cria o tirano.
Ora, tirano pode ser
qualquer entidade humana ou humanamente analogável: por exemplo, eu ou o deus,
qualquer, que faço à minha imagem e semelhança – deus que é o comum, não esse
outro que me fez à sua imagem e semelhança, precisamente como criatura que pode
dizer «não» a tiranos.
Perante o mal, sobretudo
perante o mal como possibilidade, Deus não se pronuncia porque não pode, porque
não quer, porque há uma outra qualquer razão? As duas primeiras questões, se
respondidas afirmativamente, imediatamente eliminam o próprio Deus, anulado ou
pela sua impotência ou pela sua maldade
Muitas vezes, pergunta-se
como pode Deus, não o criado por mim, mas o que supostamente me criou – o Deus
de meu ato de fé –, perante certos acontecimentos, ficar em silêncio.
A questão surge
frequentemente de modo paradigmático a propósito do mal operado pelo nazismo,
simbolizado por Auschwitz e pelo «silêncio de Deus em Auschwitz». Voltaremos a
este ponto.
A questão matriz a formular
é, então: Deus tem sempre de se pronunciar? De facto, no início do Génesis, sem
que alguém lho peça, no fim de cada dia, pronuncia-se. Mas há que notar que se
pronuncia para manifestar o absoluto da beleza e bondade ontológica das
criaturas, mesmo da criatura humana. Este ponto é fundamental.
Parece, então, que Deus
gosta de «dizer coisas», pelo menos coisas boas. Então, insiste-se, por que
razão não se pronuncia quando certas coisas más acontecem?
Este lugar lógico de
questionamento é muito mais importante do que se possa pensar a uma primeira
vista: o que se põe em causa é a própria qualidade ontológica de Deus. Perante
o mal, sobretudo perante o mal como possibilidade, Deus não se pronuncia porque
não pode, porque não quer, porque há uma outra qualquer razão?
As duas primeiras questões,
se respondidas afirmativamente, imediatamente eliminam o próprio Deus, anulado
ou pela sua impotência ou pela sua maldade. É, assim, um «topos» terrível este
em que estamos.
Por mais duro que pareça a
um mundo afogado na confusão entre relações afetivas e amor, o silêncio dos
outros perante o absoluto da nossa decisão é o ato de amor que nos cria como
autores possíveis e reais de nós próprios
Mas que outra razão pode
haver, única que não anula Deus, isto é, para os amantes da metafísica, que não
anula a possibilidade de um sentido absoluto de bem, permitindo explicar como
pode haver ser e não nada?
Perante a possibilidade do
mal, o silêncio de Deus é o transcendental ético necessário que permite a
existência do ser humano.
Não caímos na tentação, que
é blasfema, de dizer que o mal como possibilidade e como atualidade é
oportunidade de bem. Não é: o mal é apenas e sempre oportunidade de mal, e do
mal nunca emerge bem algum, salvo ilusoriamente, se se estiver em ambiente
ontológico maniqueu. O mal é literalmente a total impotência em sentido
ontológico.
Ainda assim, repete-se a
questão: para que serve, neste contexto, o silêncio de Deus?
Há dois exemplos na Bíblia
que são fundamentais para perceber tal função transcendental do silêncio de
Deus: no AT [Antigo Testamento], a narrativa dedicada a Job, no NT [Novo
Testamento], a cena do cálice.
Com Job, a partir do momento
em que a provação deste começa, para Job não há uma palavra de Deus: Job sofre
em absoluta solidão – não pode haver solidão maior em sentido algum. Como pode
Deus ver Job sofrer e não agir, pelo menos não lhe dizer algo, até ao momento
em que, instado pelo sofredor, se manifesta?
No entanto, se se
manifestasse, evidentemente como consolador ou nada do que se tem vindo a dizer
faria sentido, como saber o que se queria saber acerca de Job, isto é, se era
fiel a Deus, no absoluto da tribulação?
Quanto à questão do silêncio
de Deus «perante Auschwitz», parece que a pergunta deve ser orientada para
aqueles que, seres humanos, poderiam ter falado e nada disseram. Ou competia a
Deus combater, só, os nazis? Compete a Deus ou a mim, combater o mal, fazendo o
bem?
Não é que Deus não possa
intervir, em sentido projetivo humano, mas, se o fizesse, eliminaria a grandeza
ontológica de Job, que passaria a nunca poder desmentir a suspeita que o Satã
sobre ele lançou: este, o Satã, é a besta que não sabe estar calada e que põe
em causa a justeza do justo. Ora, é sobre Satã e a sua loquacidade imbecil que
forjamos a crítica ao silêncio de Deus, não sobre o amor deste a Job e de Job a
este.
Para mais, quando pela
primeira vez Deus fala com Job só piora as coisas manifestando-se como um deus
tirânico. Quando, por fim, e tendo Job mostrado ser invencível em sua
fidelidade, Deus fala com ele, é para fazer dele amigo, algo de absolutamente
inédito na história da humanidade.
A palavra, que é sentido,
tem um lugar próprio, que não pode – logicamente, isto é, segundo o sentido –
matar aquilo que se proporia salvar. Quem não entender tal, pode perguntar ao
Satã, que se calou quando viu que não tinha mesmo razão.
O momento do cálice retoma o
sentido da absoluta solidão da escolha, de cada escolha: há um pedido que é
feito, a que se segue um absoluto silêncio.
Ninguém pode decidir beber o
cálice por Cristo senão o próprio Cristo. Este momento é especial, porque está
especialmente situado no trajeto de Cristo para a conclusão da sua missão. Mas
não é diferente formalmente de cada um de todos os outros momentos que
constituíram a sua vida como decisor de seus atos. Podemos pegar em cada um dos
momentos narrados nos Evangelhos e supor que Cristo tenha pedido o mesmo ao
Pai: se este acedesse a decidir na vez de Cristo, o resultado seria ter anulado
Cristo como pessoa.
Perceber-se-á que não é bem
um Deus companheiro que habitualmente se quer, mas um Deus-criado; não um amigo
que acompanha o meu ato, mas um escravo que me liberta de escrever o poema que
posso ser
Por mais duro que pareça a
um mundo afogado na confusão entre relações afetivas e amor, o silêncio dos
outros perante o absoluto da nossa decisão é o ato de amor que nos cria como
autores possíveis e reais de nós próprios.
Não confundir o silêncio de
Deus perante Cristo como falta de amor, pelo contrário, bastaria uma palavra
para relativizar o absoluto da posição de Cristo, assim o destruindo como ato
pessoal livre.
Assim para todos os atos,
assim para todas as relações entre pessoas. É o silêncio da não-interferência
que é o ato de amor que nos dá o ontológico espaço para que possamos ser.
Grande parte das palavras
que dizemos são atos tirânicos, que roubam o próprio irredutível da decisão que
ergue cada ser humano como propriamente humano.
Quanto à questão do silêncio
de Deus «perante Auschwitz», parece que a pergunta deve ser orientada para
aqueles que, seres humanos, poderiam ter falado e nada disseram. Ou competia a
Deus combater, só, os nazis? Compete a Deus ou a mim, combater o mal, fazendo o
bem?
O «pão nosso de cada dia»
que pedimos não é o ato mágico de um tratador de bichos de estimação que os
mantém gordos e satisfeitos para que o incensem, mas o dom de «estas mãos com
que possa fabricar o pão» que é possível a partir da criação.
Perceber-se-á que não é bem
um Deus companheiro que habitualmente se quer, mas um Deus-criado; não um amigo
que acompanha o meu ato, mas um escravo que me liberta de escrever o poema que
posso ser.
É no silêncio de Deus que se
encontra a sua melhor palavra: liberdade.
Publicado em 02.05.2017
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