Como chegamos a ser
o que somos? Por um trabalho longo e paciente, que decorre entre muita
incerteza. E vem-me à cabeça o exemplo de Cézanne. O seu pai, um próspero
banqueiro de província, opunha-se a que o filho seguisse a vocação de pintor,
pois considerava que isso colocaria em causa o seu futuro e o negócio familiar.
Diga-se que o próprio Cézanne hesitava também.
Perguntava-se a si mesmo se
teria o talento necessário. Valeria a pena arriscar tudo o que era naquele
caminho? Para satisfazer o pai, conclui o bacharelato e estuda Direito, mas sem
abandonar dentro de si o seu sonho. O romancista Émile Zola, um seu amigo de
infância, protesta com Cézanne contra tanta indecisão e pressiona-o para que vá
viver para Paris. Cézanne acaba por aceder e ir ao seu encontro. Mas ao fim de
uns meses é recusado na Escola de Belas Artes. Os académicos parisienses
acham-no um colorista exagerado e pouco promissor. A verdade é que não o
entendiam. Regressa então à Provença, devastado por aquela reviravolta, e
recomeça a trabalhar no banco do pai. Dá que pensar esta história, e a forma
contraditória que toma o caminho de um artista que revolucionou a pintura
moderna. Por alguma razão é com ele que a pintura deixa de ser histórica para
se tornar pessoal e íntima, centrada na batalha solitária do artista com a
própria obra.
Há aquela misteriosa
frase de T. S. Eliot: “Por vezes, ser um homem fracassado é em si mesmo uma
vocação”. Pensamos pouco nisto: que papel na vocação de cada um de nós está
reservado ao fracasso? Um dos livros mais extraordinários do cânone ocidental é
consensualmente “Moby Dick”, de Herman Melville. O escritor escreveu-o aos
trinta anos e foi um fracasso de tal ordem que ele se viu obrigado a pôr fim às
suas expectativas literárias. “Moby Dick” foi declarado ilegível. Tinha uma
arquitetura narrativa estranhíssima: tanto era uma aventura marítima, como um
relato científico sobre baleias ou um tratado metafísico transbordante de
pormenores e erudição. Mesmo para os leitores ingleses parecia uma floresta
impenetrável, pois descrevia com um vocabulário rigoroso, assumidamente
técnico, cada uma das partes de um barco e de toda a vida náutica. Não admira
que os leitores, exasperados, se afastassem. E, contudo, nessa imensa catedral
de palavras que é o romance “Moby Dick”, Melville reconfigurava a própria
existência da linguagem e construía uma radical demanda interior. Aconteceu com
ele o que frequentemente acontece connosco: a sua obra-prima começou por ser o
seu maior fracasso.
“Estás a ouvir? —
perguntou o principezinho. — Acordámos o poço e ele pôs-se a cantar…”. Não se
espera que existam poços num deserto. O pequeno herói de Saint-Exupéry garante,
porém, que “o que torna belo um deserto é que ele esconde um poço em algum
lugar”. Resmungamos com a vida. Falta-lhe alguma coisa, nunca nada é perfeito,
nada está acabado ou resolvido. É como se estivéssemos a jogar um jogo
insolúvel: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o
balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo
da nascente buscar a água que nos dessedente. “O Principezinho” declara que não
nos falta nada. Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar a
alegria. Não é um problema de conhecimento, é uma questão de olhar. Olharmos
para o que somos e para o que nos rodeia com um coração simples, capaz de
perceber o dom que nos habita. Pois, se encostarmos o ouvido até mesmo junto
das nossas maiores derrotas compreenderemos que a nossa vida canta!
José Tolentino
Mendonça, E, Expresso, 29.abril.2017
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