Caríssimos
irmãos,
Hoje de
manhã tive o grato privilégio de celebrar a eucaristia com o presbitério da
Arquidiocese de Braga. Veio-me à memória e ao coração, diversas vezes, a
constituição conciliar Sacrosanctum concilium. Como sabem, foi o primeiro
documento a ser aprovado e exerceu grande influência nos restantes textos e no
novo modo de conceber a Igreja.
Diz a Sacrosanctum
concilium, no nr. 41, que a “principal manifestação da Igreja se faz numa
participação perfeita e activa de todo o Povo santo de Deus na mesma celebração
litúrgica, especialmente na mesma Eucaristia, numa única oração, ao redor do
único altar a que preside o Bispo rodeado pelo presbitério e pelos ministros”.
O altar, a oração e a eucaristia são a fonte da nossa vida espiritual mas
também o elo que a todos nos une. Dela nasce a fraternidade, a unidade e um
saudável espírito evangelizador. Aproveito, por isso, este momento para pedir a
vossa oração pelas vocações sacerdotais. Sem sacerdotes estaríamos, sem dúvida,
privados do mais belo dom que Jesus nos ofereceu.
A
eucaristia, memória da Páscoa de Jesus, encontra também no gesto do lava-pés
uma das verdades mais profundas: somos quotidianamente servos uns dos outros
porque o próprio Deus, em Jesus Cristo, fez-se nosso servo. Ser servo pode
significar, hoje, ser vigilante, um auxiliar ou companheiro de viagem. Na
linguagem do livro do Génesis, diríamos que somos “guardas dos nossos irmãos”.
Estamos atentos às suas necessidades (tantas vezes ocultas), antecipamos
carências, partilhamos alegrias e amparamos nas fraquezas. Colocar a toalha à
cintura é, neste sentido, o reconhecimento público de que todos somos
igualmente dignos e que o bem estar do outro é superior a qualquer convenção
social. Nesta eucaristia, recordamos que o amor é a nossa vocação. Sabemos que
tudo empurra para o individualismo e egoísmo. Sem amor não há cristianismo
credível. A Semana Santa conduz-nos, inadvertidamente, para uma presença nas
procissões e nas cerimónias religiosas. Não nego a importância destas
cerimónias. Só que tudo deveria levar-nos mais longe e a descobrir o Servo de
Deus que morre de amor pelo povo. A Semana Santa, mais do que procissões,
diz-nos “assim como eu fiz, fazei vós também”.
Olhando
para o nosso presente, o gesto do lava-pés parece-me ainda mais relevante. Não
será necessário um sério exame de consciência colectivo e percebermos quantas
vezes colocamos os nossos projectos à frente das necessidades das pessoas? Ou
quantas vezes ideologias partidárias, quedeveriam procurar benefício público,
se sobrepõem às reais necessidades e vontades do povo português? Como Jesus nos
ensinou, quanto maior a responsabilidade, maior deve ser a nossa humildade,
independência e desapegos pessoais para servirmos os outros. Se assim não for,
corremos o sério risco de instrumentalizar as pessoas. Sim, servimo-nos
daqueles que são irmãos e aproveitamo-nos deles em vez de sacrificar-se pelo
bem de todos e de cada um.
A segunda
coisa que o Evangelho nos mostra, para além da humildade, é a intensidade com
que Jesus nos amou. Diz o texto bíblico que “sabendo Jesus que chegara a sua
hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no
mundo, amou-os até ao fim”. Até ao fim é uma forma nobre para dizer que nos
amou até ao último instante da sua vida, do mesmo modo como nos amou na sua
máxima força. Deu-nos tudo o que tinha, entregou-se incondicionalmente e nada
pediu em troca. É o amor em estado puro que nos põe em questão sempre que
medimos até onde devemos ir. Dar tudo é o critério que nos identifica como
cristãos.
Olhemos,
também, agora, para Maria neste Ano Mariano. Ao longo dos tempos, os padres da
Igreja e o sentido da fé apresentaram-nos Maria como uma mulher que seguiu esta
via do amor incondicional, atento e generoso. Bastar-nos-ia recordar o episódio
das bodas de Canã em que disse “Fazei o que Ele vos disser”. Maria viu a
necessidade, previu o drama e revelou a identidade de Cristo. Sem nunca
instrumentalizar o seu filho, ensinou-nos que a Sua Palavra transforma a
realidade e abre caminhos de esperança onde não pareciam existir. Não se deteve
com bonitas considerações sobre o problema. Inventou a sua maneira original de
agir. E o problema resolveu-se.
É também de
esperança e de conforto que falamos quando nos lembramos que Maria, num outro
pormenor da sua vida, saiu apressadamente ao encontro de Isabel e ficou com
ela. Estar com as pessoas nos momentos de maior necessidade não será um
novo modo de colocar a toalha à cintura? Penso de modo particular nos doentes,
nos deprimidos, nos excluídos, nos acamados e nos mais idosos. Vemos alguns
sectores partidários preocupados com a despenalização do suicídio. Não seria o
caso de se preocuparem com o conforto humano e anímico de quem está vivo e quer
viver? Não seria o caso de cuidarem de quem grita pela vida? Gostaria de
repetir aquilo que disse anteriormente: a vida é irreferendável. Mas ela
necessita de muitas coisas, pequenas e grandes, para que se revista de tudo o
que é essencial.
Quero
recordar também que o primeiro lugar onde a vida deve ser cuidada é a família,
como casa onde Maria deve morar. Diz o sociólogo Ulrich Beck que diversas
formas de relação humana, entre as quais a vizinhança e a família, tornaram-se
categorias zombie. A família sofre, de modo particular, o drama da
desintegração e o afastamento, nem sempre intencional mas real, das relações
entre os esposos, pais e filhos e, particularmente, os idosos que são
marginalizados e colocados em ambiente de isolamento e solidão Quantos avós sem
uma visita e oferta de carinho! Reconheço que a Igreja, em primeiro lugar, deve
colocar a toalha à cintura e, humildemente, aproximar-se destes dramas humanos.
A exortação
apostólica Amoris laetitia foi um primeiro passo. Um passo, contudo, de gigante
e que a todos nós, em Igreja, nos deve questionar. Creio ter chegado o momento
de, em sede de arciprestado, se constituirem equipas de acolhimento e de
discernimento que acompanhem os casais divorciados recasados.
Sabemos que
não é fácil uma solução que respeite, ao mesmo tempo, a vontade de integração
do novo casal com os costumes e mentalidades seculares das comunidades cristãs.
É, contudo, um caminho que teremos de percorrer, com serenidade, em conjunto.
Nada há que justifique, neste caso, uma ruptura entre a comunidade e estas
situações familiares muito concretas e frequentes.
Que Maria,
a primeira entre os crentes, nos dê este olhar atento às necessidades humanas,
particularmente nos diferentes cenários da família. A atitude de serviço e de
vigilância poderá ser introduzida em diversas realidades humanas, mas se não
cuidarmos das nossas famílias, das nossas relações mais próximas, estaremos a
comprometer os futuros pilares da sociedade. Que Nossa Senhora, a mãe de Deus,
abençoe as nossas famílias.
† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz
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