São cada vez mais os artigos de jornal, os desabafos dos pais e as afirmações "soltas" que se insurgem contra o modo como as crianças vivem dependentes dos ecrãs. Os números afiançam que mais de 60% dos tablets das casas portuguesas já pertencem aos mais pequenos. E os especialistas vão recordando que as crianças que utilizam os tablets por um tempo superior a 30 minutos por dia podem vir a sofrer, futuramente, de dores nas costas e no pescoço e de outras sequelas posturais. Seja como for, enquanto que em muitas famílias os tablets são a babysitter favorita para entreter as crianças, o alarme geral das pessoas crescidas a propósito deste "vicio dos tempos modernos" cresce, todos os dias. Como se a elas - e, sobretudo, aos adolescentes - se fossem barricando numa multiplicidade de instrumentos tecnológicos com um ímpeto tal que, aparentemente, ninguém os conseguiria parar ou, mesmo, resgatar.
E, em resultado disso, parecessem ir ficando alheados do mundo à sua volta, fossem falando por monossílabos ou por murmúrios, e fugissem ao contacto e à relação. E, sobretudo, a qualquer programa familiar de fim de semana. E, ainda, parecessem tão "agarrados" aos ecrãs como um toxicodependente à substância da qual depende. Reconheço que esta "onda" me preocupa. Muito!
1.Em primeiro lugar, porque ela parece representar uma "versão século XXI" daquilo que todos escutámos, antes, a propósito dos desenhos animados. Porque a Heidi e o Marco "é que eram" histórias a valer". E porque os desenhos animados estariam a tornar-se "muito violentos" sendo, segundo muitos, os grandes responsáveis pela forma como muitas crianças estariam a "perder os valores". Etc. É claro que, enquanto as lamúrias iam acontecendo, para muitos jardins de infância, quando queriam que as crianças não corressem ou enquanto elas aguardavam a chegada dos pais, os desenhos animados estavam ali para as entreter. E quando os pais pretendiam que, entre os irmãos, a zaragata não escorregasse para níveis "assustadores" (antes do jantar, claro), ou quando queriam muito que os ímpetos madrugadores, ao sábado e ao domingo, não se transformassem em reivindicações estridentes do género: "Tenho fome!!", os desenhos animados já eram "amigos", estando ali entre o ansiolítico "levezinho" e os "aperitivos para o pequeno-almoço".
2.É claro que computadores, tablets e smartphones são "maquinões" poderosos. São sedutores. São amigos da atenção e da inteligência. Interpelam. Desafiam. E estimulam. Fazem, portanto, muito bem ao crescimento das crianças! Desde que não lhes sejam dados cedo demais. Não lhos disponibilizem por tudo e por nada. E não sejam deixados ao cuidado da "autorregulação" das crianças. Isto é, usados com sensatez, são vitamina do crescimento. Se bem que o seu abuso lhes estrague o crescimento saudável.
3.Como se compreende, a multiplicidade de desafios que os nossos filhos têm ao seu dispor faz com que eles apurem as suas competências para a escolha. Escolher representa reconhecer que não se pode ter tudo. Mas exige que se reflita, se pondere, se discorra, se sintetize, e que se hierarquizem prioridades. Por outras palavras, implica que se pense e se estude, se discuta, se discorra e se decida. Tudo o que a família e a escola deviam estimar muito mais vezes nas crianças. Ou seja: benditos "maquinões" que vão compensando os "défices de atenção" das muitas pessoas crescidas...
4.Seja como for, as crianças têm de compatibilizar as novas tecnologias e o "brincar tradicional". Têm de ligar corpo, imaginação, raciocínio hipotético-dedutivo e pensamento simbólico. Têm de construir e desconstruir. E têm de compatibilizar o singular e o plural. Não basta, pois, que as deixemos "acantonar" todos os seus recursos nas áreas onde os seus desempenhos acabam por ser vitoriosos. Até porque se, como educadores, ainda não descobrimos quais acabam por ser as suas "necessidades educativas especiais", é porque nos estará a faltar um bocadinho para conseguirmos ajudá-las a transformar em recursos as competências que, efetivamente, elas têm.
5.Neste contexto, fará sentido que uma escola que, tantas vezes, não deixa que as crianças vão do concreto para o abstrato - contando pelos dedos, por exemplo -, que não as leva (tanto como devia) da curiosidade até à descoberta, que não as deixa tocar, mexer, experimentar ou desmontar o conhecimento, as incentive a conhecer num registo que se vai tornando, cada vez mais, do género: "vá pelos seus dedos"? Não!
6.Mas, sendo assim, aquilo que faz toda a diferença é o modo como os pais se colocam, nesta relação entre os filhos e os ecrãs, como "entidade reguladora". Talvez não seja muito razoável que, imaginando que as crianças têm tempo para brincar e para descansar, todos os dias, que mais do que a tal meia hora de "ecrãs" (duas vezes ao dia, que seja...) se torne exagerada. Mesmo que, com isso, os pais tenham de definir um critério seu, ancorado em convicções que tenham tudo a ver com o bom senso. É claro que eu entendo que os pais não precisam de ser "à prova de água" sempre que definem regras. E, muito menos, que necessitem de as explicar, quase como quem espera que as crianças lhes deem o consentimento que, como filhos, não lhes podem dar. Porque não são os pais dos pais; são filhos! Daí que não seja razoável que os pais se coloquem diante deles quase a medo... Sejamos razoáveis: todos entendemos que os pais não queiram "marcar" os filhos com pequenos sofrimentos que os seus "nãos" lhes possam, presumivelmente, provocar. No entanto, não deixa de ser razoável que nos perguntemos o que é que, no nosso crescimento, nos terá "marcado" mais: os erros educativos que os nossos pais assumiram, à custa das convicções com que os levaram para a frente, ou aquilo que eles não fizeram (muitas vezes, por medo de errar)? Ou seja: se os pais têm, de forma intuitiva (mas com convicção) a ideia de que um determinado tempo de "ecrãs" será demais, não seria, então, de levarem por diante esse limite, todos os dias?
7.É claro que, às vezes, tenho receio que muitos pais tenham dois pesos e duas medias. Para efeitos de regras de bom senso para com os filhos, alarmam-se com a relação que as crianças e os adolescentes têm com os ecrãs. Para efeito dos bons exemplos que lhes trazem, todos os dias, não perdem uma oportunidade de estar ao telefone, durante o almoço, ou de "mergulharem num ecrã" em pleno momento de família. E muitos dos pais alarmados, mal entram num espetáculo, contribuam para a "epidemia de flashs" que faz com que mal ouçam uma música do princípio ao fim, preferindo fotografar e "postar", fotografar e "postar", numa azáfama entre o ecrã e o facebook, como se mais importante do que sentir ou viver os momentos fosse registá-los, sossegando os amigos com mais um "eu estive lá!". Mas, afinal, as regras em relação aos ecrãs, quando nascem, serão para todos?
8.Mas que mundo é este que vive “toxidependentemente” agarrado a um ecrã? Fornecido às crianças para que sejam sossegadinhas e caladas; tolerado nos adolescentes - mesmo que o utilizem numa "overdose" inquietante - para que troquem a sua interpelação palpitante por um estar sossegadinho e calado; e é, vezes de mais, alimentado pelas famílias, até à hora das refeições, como se a oportunidade das pessoas se tornarem mais e mais da família se pudesse trocar por uma atmosfera sossegadinha e calada?... E, no entanto, sempre que estão sossegadinhas e caladas as pessoas tornam-se doentes e transformam-se, umas às outras, em estranhos que se conhecem bem.
9.Se a educação judaico-cristã trouxe, entre ganhos incalculáveis, alguma repressão e censura exageradas e dispensáveis aos sentimentos e à sabedoria humanas, o mundo digital tem-lhes trazido solidão, silêncio e sossego. E tem vindo a produzir pessoas cada vez mais viradas sobre si, mais narcísicas e mais autistas, menos amigas da comunicação, mais solitárias, menos pensantes e muito menos cooperantes.
10.Em função de tudo isto, a vida na ponta dos dedos não será uma catástrofe, claro. Desde que o corpo, a imaginação e a "alma" não se tornem "bens em vias de extinção". E a relação, as palavras e o toque deixem de ser jurássicos... E desde que o "estar sempre ligado" das novas tecnologias se faça acompanhar pelo "estar sempre ligado" às pessoas, que não pode deixar de estar em primeiro lugar. Tudo num clima onde as pessoas crescidas não reajam com emulação a este "vicio dos tempos modernos" num registo de "olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço". E - sobre tudo o mais - desde que a vista na ponta dos dedos sirva não só para mexer num tablet, como, também, para "ver "os intestinos" às coisas, para mexer em tudo aquilo que pareça ora misterioso ora desafiante, para tocar num rosto, para guiar um abraço ou como forma delicada de dizer a alguém: "Repara como eu gosto de ti!!".
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