É preciso "desocultar" a realidade para que os cidadãos não vivam
num estado de medo e de incerteza, defende Rui Marques, um dos oradores do
Faith's Night Out, marcado para este sábado.
Rui Marques é formado em
Medicina e em Comunicação Social, participou em várias causas sociais,
nacionais e internacionais, com destaque para a Missão Paz em Timor – Lusitânia
Expresso. Foi alto-comissário para a Imigração e é coordenador da Plataforma de
Apoio aos Refugiados (PAR).
O seu tema no FNO é “Confiança, para que te cremos?”. A que se deve este
apelo à confiança?
O grande défice do nosso tempo é o défice da confiança. Sem confiança não
há sociedade nem há futuro. É fundamental olharmos para o tempo da desconfiança
que vivemos, para perceber que temos que a ultrapassar, porque a desconfiança
associada ao medo leva-nos a um comportamento irracional, à destruição dos
laços que nos unem enquanto sociedade e à total impossibilidade de construir
algo positivo. O tema da confiança é absolutamente vital para os nossos dias.
Disse em tempos que “todos gostaríamos que a Europa se definisse”. Todos
quem? E como?
Primeiro que tudo, os próprios europeus. Creio que temos, como nunca na história
da UE, um momento de uma crise gravíssima que é desde logo uma crise de
confiança no próprio projecto, no sentido e no futuro do próprio projecto.
Creio que os europeus, os mais de 500 milhões de pessoas que constituem as
diferentes nações que integram a UE, precisam de se definir e levantar a sua
voz na defesa do projecto fundador da UE.
Mas também precisamos que se definam as instituições, a nível europeu, mas
também as de cada estado-membro. Precisamos de reganhar a confiança no projecto
europeu, porque nos garantiu ao longo das últimas décadas um tempo único de
paz, de desenvolvimento, de solidariedade entre os diferentes países europeus.
Todas as limitações que possa ter, e seguramente terá muitas, são motivo para
melhorar esse projecto e não para o deixar cair.
Uma das grandes ameaças a este “ressuscitar” do projecto europeu é a imagem
do muçulmano terrorista, que assusta muitos cidadãos. Que trabalho falta fazer
para desconstruir esta imagem?
Ser fiel à matriz civilizacional do projecto europeu, que se baseia em
valores humanistas de respeito pela dignidade humana, e portanto de não
discriminação em função de religião etnia, género ou qualquer outra dimensão, e
sobretudo pelo respeito pela diversidade. O projecto europeu foi construído em
torno do lema “unidos na diversidade”. E esse deve ser e continuar a ser o
segredo do nosso sucesso.
Todo o discurso que procurar gerar e semear a desconfiança ou cultivar o
medo é evidentemente o discurso dos mesmos que procuram destruir o projecto
europeu.
E é óbvio que associar uma qualquer religião a terrorismo é injusto, não
faz nenhum sentido. Seria associar centenas de milhões de pessoas a um
comportamento que é de uma minoria ínfima de pessoas que se arrogam como
membro, mas que, na verdade, com as suas acções, contrariam em absoluto os
princípios dessa religião.
Como é que combatemos o nacionalismo fora do plano teórico, no dia-a-dia?
Sugiro três pistas de acção. A primeira é a memória da história,
percebermos que cada vez que os países europeus seguiram a via do nacionalismo
e o discurso de desumanização de algum grupo étnico ou religioso, o resultado
foi sempre catastrófico. Foi a guerra, foi o Holocausto, um preço elevadíssimo
a pagar.
Segundo, devemos cultivar a diversidade na prática, conhecendo-nos uns aos
outros e percebendo, por exemplo, que quando contactamos com pessoas que
consideramos diferentes rapidamente percebemos que no essencial somos
profundamente iguais. Mesmo dentro dos países europeus há sempre imensas
caricaturas quanto às diferenças entre os do Norte, os do Sul, os do Leste e os
do Ocidente, os cristãos e os ateus, Mas quando se encontram pessoas,
percebemos que fazemos parte da mesma família humana.
O terceiro e maior desafio é uma aposta no papel das novas gerações. Os
jovens podem assumir esta bandeira para o nosso tempo que é a causa da
fidelidade à dimensão humanista do projecto europeu, e isto quer dizer sermos
capazes de ser unidos na diversidade, no respeito pela dignidade humana, e de
lançar mãos à obra na construção desse futuro que é algo muito prático e é
exigido para o nosso tempo.
As pessoas tendem a ter medo do que não conhecem. Como dar às pessoas que
possam não ter os meios para isso a suficiente experiência do mundo para não se
alarmarem com o desconhecido?
Primeiro, desafiá-las a olharem a realidade de uma forma justa e
verdadeira. Não é por acaso que entrou no léxico comum o tema da “pós-verdade”,
que é um eufemismo para falar de mentira. Cada vez mais, os cidadãos informados
necessitam de ter espírito crítico e saberem estar bem informados.
É necessário desocultar a realidade porque há mais coisas boas a acontecer
do que más, só que as boas tipicamente não são notícia, não entram na agenda
mediática e na agenda pública, e os cidadãos não têm consciência delas.
Um dos grandes desafios do nosso tempo é desocultar a realidade para
descobrir as muitas coisas extraordinárias que acontecem todos dos dias no
anonimato de tantos heróis que não conhecemos, de tantas instituições que fazem
um trabalho quotidiano incansável para a promoção da justiça social e da
dignidade humana.
Outro dos participantes no FNO é Ricardo Araújo Pereira, cujo tema é “O que
o mundo espera dos crentes”. Em entrevista à Renascença, ele refere que é curioso que ele seja
identificado com o mundo, como se a religião estivesse fora do mundo. Como é
que vê esta dualidade entre a maneira como os cristãos vêem o mundo e como os
“outros” vêem os cristãos?
Por um lado deve-se retomar a ideia tão própria e tão conhecida dos
cristãos de que se está neste mundo e não se é deste mundo. Os crentes, e
concretamente os cristãos, os católicos, têm esse particular empenho na
construção do mundo. São cidadãos empenhados na construção de um mundo mais
justo, mais humano e mais digno.
Ao mesmo tempo, a segunda dimensão, os cristãos não são deste mundo. Neste
sentido, a perspectiva cristã vai muito para além do mundo em que vivemos, tem
uma dimensão de fé que ultrapassa a barreira do tempo e do espaço, que não se
limita a este mundo.
Hoje aos cristãos é pedido que sejam construtores de um mundo mais justo,
um mundo que se respeite verdadeiramente; construído nos valores da paz, do
diálogo e de vivermos juntos enquanto família humana. E isso exige estar no
mundo.
Como é que se enquadra neste mundo um cristão rodeado por não crentes, no
fundo, a experiência contrária à de Ricardo Araújo Pereira?
Com todo o respeito e todo o fascínio pela criação de Deus.
Deus ao ter-nos criado livres, ao ter-nos criado diferentes, com uma
individualidade própria, deu-nos um sinal muito importante. Somos chamados a
amar este tempo e este mundo em que vivemos, com toda a diversidade e todo o
respeito pelas opções de cada um, pelo exercício da liberdade.
Evangelizar, ter uma presença cristã no mundo, é acima de tudo um exercício
de abertura, de respeito, de amor ao tempo em que vivemos e nesse tempo
procurar ser um sinal de esperança, de confiança, ser capaz de construir esta
visão cristã que tanta falta faz ao mundo.
Se é verdade que hoje existe um número menor de
crentes do que noutras fases da história, no contexto português, por exemplo,
também é verdade que nunca foi tão urgente para o mundo a visão cristã
estruturada em torno do princípio fundamental do amor, do amor ao próximo e da
possibilidade de construirmos juntos um futuro no qual a diversidade seja um
dos dados, nomeadamente no diálogo entre crentes e não crentes.
Entrevista a Rui Marques
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