Como é possível que, num mundo cheio de mortes por ideologias
fanáticas que pretendem um mundo limpo de infiéis, sem dignidade nem lugar,
estejamos nós a discutir como matar para eliminar o sofrimento
Gostava de perceber o que se entende por dignidade. Para os
defensores da eutanásia, esse tem sido um argumento. Mas dá vontade de
perguntar: uma pessoa sofrida, em grande sofrimento, por uma doença ou
situação “sem cura” perde a dignidade? A mãe a fazer o luto de um
filho, por exemplo, ou um deficiente profundo, um doente “terminal” ou o Papa
João Paulo II tremendo e babando-se nos seus últimos tempos, tornaram-se indignos?
Não seria melhor “ajudá-los a morrer” ou, talvez, “matá-los piedosamente”? A
resposta que me dão é que “faz muita impressão”, que “não há direito de deixar
ali a sofrer”, que “a sua vida já só é um peso para si mesmo e para os outros”
que “a sua vida acabou”, “que sentido tem?”; e por isso mais vale acabar mesmo…
e nós ajudamos; claro… se for esse o seu desejo pedido com liberdade.
Vale a pena comentar e responder a estas questões.
1) Então, a dignidade da morte viria desta ser a pedido,
consciente e livre! Mas… todos sabemos que a liberdade é sempre condicionada e,
de modo especial, ainda mais, no grande sofrimento ou na euforia. Um
mínimo de psicologia e de entendimento da linguagem sabe que não se pode tomar
à letra o que se ouve ou se lê. Quantas vezes atendo pessoas que mais
ou menos com insistência me dizem “não aguento mais”, “não sei o que ando cá a
fazer”, “isto não faz qualquer sentido”, “quero morrer, ajude-me”, etc. Então
começa a conversa, respeitando essa dor. Conte-me a história toda, vamos ver
por onde entra essa imensa solidão ou essa revolta, essa culpabilidade ou
experiência de desamor insuportável… vamos falar dessa infelicidade, desse medo
aterrador, desse sentimento de exclusão… E, tirando alguns casos de suicidas
obsessivos, sempre se encontra algum caminho, uma janela, que ajuda a ver a luz
(lá ao fundo), a descobrir uma aceitação possível. É preciso tempo, paciência e
acolhimento para que a pessoa se comece a sentir amada ou, pelo menos, a
admitir que pode ser reconhecido o seu valor. Tomo muito a sério a pessoa que
pede a morte, mas devo perguntar-me: quer morrer ou está a dizer-nos outra
coisa? Quer que aquele sofrimento morra, certamente. Mas a morte pela
eutanásia, não mata o sofrimento, mata a pessoa! Aliás o que a minha experiência
diz é que se eu, mais do que entender o seu sofrimento, também lhe mostro que
concordo com a eutanásia, o que lhe estou a comunicar é: “realmente, mais um
que acha que eu já não sirvo para nada”.
2) A desfiguração e o sofrimento psíquico ou físico não
tira dignidade à pessoa: esta, por maior que seja a limitação, não
deixa de ser pessoa, sempre digna de ser respeitada e amada. O que é
indigno na pessoa é a mentira, a corrupção, a inveja, a prepotência e a soberba que
exclui e escraviza. A eutanásia também não resolve essas doenças morais, nem dá
espaço para que sejam repensadas e superadas, eventualmente, com o
acompanhamento, com o perdão e o paliativo necessário. Se, em vez de acompanhar
a pessoa, para lhe dar dignidade a mato, não só não a compreendi como a
“coisifiquei”. Diz-se: faço-o por pena, para que não sofra! Mas bem dizia o
Prof. Daniel Serrão: “a morte por compaixão é a morte da compaixão”. Na
verdade o que acaba ali é a relação e o cuidado com o outro; e, por um acto não
médico, alivia-se a tensão: resolve-se, sim, o problema de quem acompanha e já
não sabe lidar com ele. Uma subtil tentação, nem sempre perceptível, sob a capa
de parecer que é um agir “pro vida”.
3) A morte a pedido manifesta a autonomia da pessoa e daí a sua
dignidade? Pode parecer, mas vejo aí uma confusão entre
autossuficiência e autonomia. Autonomia significa que se tem uma “lei
própria” e se tem consciência dela e se é coerente com ela, com todos os seus
condicionamentos. A pessoa vai-se tornando cada vez mais autónoma na medida em
que se vai tornando cada vez mais moralmente livre. E a liberdade,
que é uma aprendizagem difícil, é a capacidade de gerir os seus
condicionamentos e escolher o bem maior; isto é, decidir-se pelo que é
mais humano e mais nos humaniza como seres sociais. A autossuficiência é não
ter que dar contas a ninguém e fazer o que se entende por imaginar que se pode
dispor de si e dos outros “como se quiser”. Não somos autossuficientes. A morte
a pedido pode não parecer, mas é uma tentação de autossuficiência. Escolher
matar-se tal como matar, não é, certamente, escolher o bem maior – com
autonomia e liberdade. É mais um grito de socorro. E socorrer deve ser um acto
inteligente (o que se passa aqui? Qual é a dor?) e não uma cedência a um
impulso ingénuo e “piedoso”.
4) Se admitirmos que há um direito a querer morrer (e um
direito a que me matem?), isso não implica que alguém, um médico, por exemplo,
tenha o dever de o fazer. Terá o dever moral de ajudar quem faz tal
pedido, na medida das suas possibilidades, mas ninguém pode impor essa
obrigação de matar outro, mesmo que compreenda a sua dor e o seu pedido. Se se
chegasse a legalizar a eutanásia devíamos ter claras várias coisas importantes.
A primeira, que o que é legal não só não é necessariamente bom, como não é
necessariamente legítimo moralmente. A segunda, que os direitos de uns não
podem forçar os de outros; além do direito de discordar, tem-se o direito a que
se respeite, positivamente, a objeção de consciência. Por fim, cada um
deveria ter o direito de ter a lista toda dos médicos “eutanasistas”. Eu
não recorreria a um médico que pudesse olhar para mim e pensasse “este já está
a mais; não vai longe; a sua vida não é digna!” Aliás, nenhum parlamento tem
direito a avaliar e legislar sobre a vida. Isto é a determinar que há vidas que
se podem descartar ou que não são dignas; mesmo que se diga que é para
respeitar a autonomia e a liberdade.
5) A “solução” da eutanásia, no estádio actual da
medicina (do acompanhamento psicológico e espiritual, dos cuidados paliativos,
das possibilidades de enquadramento social, etc.), seria uma saída
completamente reacionária e violenta. Sim, num estádio anterior de
civilização, cultural e socialmente falando, talvez se pudesse entender os
defensores da “boa morte” ou até os “abafadores”. Mas, hoje, é difícil de
aceitar o matar como um bom caminho. É claro que é preciso compreender a dor de
quem acompanha a doença prolongada de uma pessoa querida sem ver saídas rápidas
e eficazes. Mas os cuidados paliativos também atendem e apoiam o contexto
familiar da pessoa em processo terminal, mais ou menos prolongado.
6) Há ainda um outro perigo ou tentação. A eutanásia
pode dar dinheiro! Poupar nos gastos com velhinhos ou deficientes, ter
mais facilmente espaço e camas para outros com mais possibilidades e mais
ricos, poderia ser um razoável negócio, dentro de uma cultura de morte
que elimine quem não é útil, quem não produz, ou quem é considerado um peso
demasiado. Nessa cultura, seriam os próprios infelizes, pobres e feios a pedir a
eutanásia, não encontrando lugar num “desejável mundo cosmeticamente limpinho”.
Os totalitarismos já fizeram essa experiência e não deu resultado. Como seria
“O admirável mundo novo” dos “eutanasistas”?
7) Morte assistida! Todas as mortes devem ser
acompanhadas com cuidado respeito e afeto: não assistidas como quem vê o
espectáculo, mas como quem vive solidário esse momento tão importante de cada
vida humana. Porquê trocar os nomes à realidade? Para enganar quem? Se estou a
facilitar e dar condições para que alguém se suicide, não é suicídio assistido,
é conivência e participação. Se estou a “eutanasiar” outra pessoa, ainda que
com todo o jeito e preparação, estou a matá-la. Mesmo que tenha sido a seu
pedido, não é assistência, é ser autor “responsável”. Para quê
branquear o acto de matar com o título de “morte assistida”? Se é
preciso perceber o que se quer dizer com “mata-me!”, também é preciso
desmascarar o que se quer dizer com “dou assistência à tua morte!”
Como é possível que, num mundo cheio de mortes por ideologias
fanáticas e doentes que pretendem um mundo limpo de infiéis, sem dignidade nem
lugar, estejamos, nós, a discutir como matar para eliminar o sofrimento! Que
atraso civilizacional!
Padre jesuíta
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