A solidariedade é sentida como o primeiro e mais expressivo
dever de humanidade. Por isso se rebela a inteligência e o coração contra os
muros que se erguem e contra os mortos que ninguém chora.
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Uma só coisa é certa no debate da eutanásia: está em causa uma
fronteira civilizacional. Ultrapassá-la ou defendê-la, depende da perspetiva.
A questão de fundo é inelutável: a centralidade da autonomia, como
valor antropológico e jurídico.
É em nome da autonomia que se reclama o direito a decidir quando e em
que circunstâncias podemos pôr termo à própria vida; é em nome da autonomia que
se exige a assistência médica nesse momento singular; é em nome da autonomia
que se postula uma leitura dignificante, altruísta, humanizadora do que até há
bem poucos anos era sinal de barbárie… E é também em nome da autonomia que se
condena qualquer visão diferente, catalogada como intolerante e sem direito de
cidadania, porque, justamente, parece ameaçar a auto-determinação do sujeito.
Sucede, porém, que a autonomia é um mito: um novo dogma moderno com
pouco sustentação na realidade. Não, não somos autónomos! Não o é o bebé
recém-nascido, nem o idoso, nem o doente terminal. Nem sequer o adulto na plena
posse das suas faculdades. Talvez gostássemos de o ser. Talvez até estivéssemos
dispostos a queimar incenso no altar da velha Aytomatia grega… mas não somos
autónomos!
Pelo contrário: o que é próprio da nossa experiência humana é a
contingência, a fragilidade, a necessidade e a dependência face ao outro. Não
há segundo da nossa existência em que não estejamos nas mãos de alguém.
Essa vulnerabilidade genética que todos experimentamos, não é
aviltante. Pelo contrário: está associada ao que de mais belo e digno tem a
nossa condição humana. Somos tanto mais humanos quanto mais somos dos outros e
para os outros.
No mundo das ideologias, é possível conceber muitos sujeitos autónomos,
mas na realidade da vida – da nossa vida concreta de todos os dias – é
impossível encontrar uma única pessoa que o seja realmente.
Por isso, a solidariedade é sentida como um dever: o primeiro e mais
expressivo dever de humanidade. Por isso se rebela a inteligência e o coração
contra os muros que se erguem e contra os mortos que ninguém chora.
Ora, é justamente aqui que reside a falácia da eutanásia.
Ao reclamar uma plena autonomia para o sujeito, o que se está a fazer é
a negar a solidariedade como um dever irrenunciável. Quando aquele que depende
de mim pode morrer, que obrigação terei eu de lhe assegurar a vida?
Se a dependência é vista como um fardo, como um indignidade, o direito
a uma morte rápida e indolor transforma-se facilmente num dever de morrer
dignamente, de não ser pesado, de não onerar o outro com a minha existência.
Não tenhamos dúvidas: é isto o que está em debate na eutanásia. O
sofrimento do outro – por quem, infelizmente, poucos realmente se interessam –
é apenas um pretexto emocional para a discussão… tudo mais (menos cuidados
paliativos, mais consentimento informado, etc.) são minudências de uma
discussão que só não vê quem não quer.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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