Agora
que não há dor que não possa ser dominada com cuidados paliativos adequados,
fica a dúvida se o que se pretende não será o “progresso” para uma sociedade
sem piedade para com os mais fracos.
Hialarion
era camponês, casado e, tudo indica, bom pai de família. Provavelmente era
natural da região de Oxirrinco, uma cidade do Médio Egito. Como falava grego é
possível que fosse descendente de colonos helenos, mas não é certo, porque após
três séculos de governo Ptolemaico o grego era língua franca no Egito. Podemos
supor que não tinha uma vida fácil porque a certa altura teve de ir trabalhar,
por uns tempos, para a longínqua Alexandria. De lá escreveu, ou pediu a um
escrivão que escrevesse, a seguinte carta para a sua mulher Alis:
[recto] De
Hilarion para Alis, sua irmã, saudações sinceras, e também para os meus caros
Berous e Apollonarion. Fica a saber que ainda estamos neste momento em
Alexandria. Não te preocupes se, quando os outros regressarem, eu permanecer em
Alexandria. Te imploro e suplico que cuides bem do menino. Assim que recebamos
o salário te o enviarei. Se deres à luz, felicidades!, e se for rapaz deixa-o
viver. Se for rapariga expõe-na [εκβαλε, literalmente: deita-a fora]. Disseste
[através de] Aphrodisias “Não me esqueças”. Como te poderei esquecer? Peço-te
portanto que não te preocupes.
Vigésimo nono ano de César [1 a.C.], Pauni 23 [verso]
Entregar a Alis da parte de Hilario [Oxyrhynchus Papyrus, 744]
Esta missiva demonstra que Hilarion era um amor de pessoa: trabalhador
esforçado e flexível, ternurento para com a mulher, pai preocupado pelo filho,
que não esquece de enviar saudações para os vizinhos. Apesar de ser excelente
pessoa, Hilarion era um homem do seu tempo: cortês e prestável para quem lhe é
útil, como a mulher que lhe cuida da casa, o filho que lhe cuidará do futuro, e
os vizinhos que lhe asseguram boa vizinhança, mas implacável para quem não lhe
serve para nada, como uma filha que só lhe traria despesa. Esta era a visão que
os homens tinham dos homens antes de serem influenciados pela doutrina de
Cristo: ou instrumentos ou empecilhos do seu bem-estar, que merecem viver, os
primeiros, e que podem ser descartados, ou morrer, os segundos. Também era esta
a visão que a sociedade tinha do Homem, e que se encontrava espelhada nas leis
e costumes um pouco por todo o mundo, na lei romana e nos códices egípcios, no
consuetudinário japonês e na legislação chinesa, e que permitiam o aborto, o
infanticídio, o golpe “de misericórdia”, a exposição de velhos e enfermos, a
exterminação dos homens “não-pessoas” ou “não-humanos” e, em não poucas
civilizações, o sacrifício humano.
Não sabemos se a destinatária deu à luz e se terá seguido as indicações
do marido. Mas depois de receber esta carta Alis deve tê-la deitado para o
lixo. Foi de facto numa lixeira do primeiro século da nossa era onde Bernard
Grenfell (1868—1926) e Arthur Hunt (1871—1934) a descobriram no final do século
dezanove, muito a tempo de ser endossada hoje à Assembleia da Republica, agora
que esta se prepara para debater a eliminação dos doentes terminais que,
inúteis produtivamente, são também um peso para o orçamento do Estado e um
transtorno para a família. Como a alegada compaixão por quem sofre atrozmente
não tolhe, agora que a medicina reclama que não há dor que não possa ser
dominada com cuidados paliativos adequados, fica a dúvida se o que se pretende
não será o “progresso” para uma sociedade sem piedade para com os mais fracos.
O propósito deste endosso é perguntar: senhores deputados, querem mesmo criar
uma sociedade mais solidária? E é através da eliminação dos mais fracos que o
querem fazer? Depois de legalizarem o aborto e, agora, o golpe “de
misericórdia”, o que virá a seguir, o infanticídio ou o sacrifício humano?
Querem mesmo impor, passo a passo, a crueza do pré-Cristianismo aos
portugueses?
Professor na AESE Business School
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