O ADVENTO E A INDÚSTRIA DOS CHOCOLATES

Os chocolates são uma coisa a brincar, claro, mas o Advento toca a estrutura do próprio tempo, é uma causa demasiado séria para as religiões judaica e cristã

Vi que uma conhecida marca de chocolates decidiu brindar-nos, no seu catálogo de Natal 2016/2017, com uma proposta de calendário de Advento, intitulando-a deste modo despojado, mas curioso: “A contagem regressiva para o Natal”. E criou para os potenciais consumidores dois modelos possíveis: não só na tradicional divisão entre chocolate negro e chocolate branco, mas também através de embrulho diferenciado (um de grafismo sóbrio em dourado ténue, outro coloridíssimo, com reproduções da exuberante decoração da época), embora mantendo uma mesma numeração, de 1 a 24. Poderíamos pensar que esta numeração estivesse então ligada à dita contagem regressiva (faltam vinte dias, dezanove dias, quinze, sete...),
mas tire-se daí o sentido. Naqueles calendários, os números são afinal progressivos (regressivos só mesmo os chocolates à medida que forem comidos) e declaram, de uma assentada, o seguinte: o advento passa a começar no dia 1 (destacando-se assim liberalmente da definição anual que a liturgia estabelece) e celebra-se apenas em 24 dias. Porquê? — perguntarão. A única evidência é serem 24 os chocolates que se arrumam tranquilamente na armação delicada.

Isto seria de todo irrelevante se Fernando Pessoa, pela voz do senhor Álvaro de Campos, não tivesse mandado uma certa pequena comer chocolates, garantindo-lhe que “não há mais metafísica no mundo senão chocolates” e que “as religiões todas não ensinam mais do que a confeitaria”. Descontando a colossal ironia que o poeta descarrega em cima da condição humana, talvez sobre ainda a noção de que a confeitaria deva ter qualquer coisa a ver com a verdade. Ou não, se dermos crédito às práticas da incerteza operadas pelo marketing chocolateiro.

Os chocolates são uma coisa a brincar, claro, mas o Advento toca a estrutura do próprio tempo, é uma causa demasiado séria para as religiões judaica e cristã e tem modelado incessantemente a história do pensamento. O Advento não é só este intervalo cronológico que a liturgia estabelece como preparação próxima do Natal: é sim o reconhecimento (e as implicações que brotam desse reconhecimento) da qualificação messiânica do viver, que deixa de ser mero somatório contabilístico de dias, e torna-se ativação da experiência escatológica. Na crença judaica, a expectativa esteve e está focada no futuro: um Messias ainda por vir. Os cristãos, por seu lado, acreditam que “Aquele que há de vir” é o Messias que já veio, aquele Jesus de Nazaré acreditado como “Jesus Cristo, o Filho de Deus” (Mc 1,1). O Advento para eles não é a forma de uma espera sem termo, mas o assumir progressivo de uma forma messiânica de viver o tempo. Isto é, de torná-lo mais decididamente o tempo real, o tempo entendido não enquanto dominium, mas enquanto usus, enquanto não possessão, já que a irrupção do Messias revoga a ordem do mundo, como indica são Paulo num dos textos mais radicais que se escreveram: “Eis o que vos digo, irmãos: o tempo contraiu-se. Doravante os que têm mulher, vivam como não tendo; e os que choram, como não chorando; os que se alegram, como não se alegrando; os que compram, como não possuindo; os que usam deste mundo, como não o usufruindo dele plenamente. Porque a figura deste mundo está a passar”(1 Cor 7,29-31). Vale a pena recordar a exegese que o filósofo Giorgio Agamben faz deste passo paulino. Diz ele: “Aquilo que interessa a Paulo não é o último dia, o instante no qual o tempo termina, mas sim o tempo que se contrai e que começa a acabar. Ou, se preferirmos, o tempo que resta entre o tempo e o seu fim.” Bom Advento.

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