Será que algum dia nos aproximaremos da
dádiva genuína e desinteressada, da pura dádiva? E como é que isso se faz?
No frenesim de
consumo que atropela dezembro, nesse labirinto de excesso, euforia e solidão em
que a vida, como uma imposição, se torna, cada um de nós aprende, mesmo sem
dizê-lo, alguma coisa sobre a dádiva. Ora, talvez o que nos custe mais neste
insano tráfico pré-natalício seja, precisamente, a constatação dolorosa e
inconfessada de que não sabemos ou não conseguimos dar. Ainda que as mãos se
atulhem de embrulhos, sabemo-las no fundo vazias, atadas às suas posições
invisíveis, incapazes de dar não o inútil, mas o que seria preciso,
indisponíveis para a tarefa da reparação da vida, equivocadas em relação à
verdadeira carência ou ao diagnóstico que fazem da escassez e da lacuna.
Há uma
dor submersa, uma ferida que brota do confronto com esta nossa vulnerabilidade,
sobretudo quando desistimos de fazer um caminho com ela. O dom é efetivamente
mais complexo do que parece, e mais comprometedor do que, porventura, queremos.
A começar pelo incómodo da pergunta que, perante as suas contradições, a nossa
realidade no subsolo suscita: será que algum dia nos aproximaremos da dádiva
genuína e desinteressada, da pura dádiva? E como é que isso se faz?
O filósofo Jacques
Derrida, por exemplo, sobre a dádiva diz que ela, tal como a idealizamos, é
impossível. Descrevemo-la normalmente como manifestação de gratuitidade, oferta
de si aos outros por afeto e generosidade, sem pedir nada em troca, mas não
conseguimos chegar lá. E por uma razão: só há dádiva quando aquele que dá e
aquele que recebe não percebem que houve dádiva. Nós tendemos a condescender
numa espécie de circularidade virtuosa. Derrida põe-nos a desconfiar disso,
pois as expectativas egocêntricas de um retorno sob qualquer forma, material ou
simbólica, infiltram-se por toda a parte. A mercantilização da dádiva, num
“toma lá-dá cá” mais ou menos implícito, acaba por ser assim mais determinante
e transversal do que parece. A dádiva, porém, quando realmente existe, não
chega a ser reconhecida por nenhuma das partes como tal. Ela não é expressão de
reciprocidade: quem dá não a pode reconhecer como algo dado, quem recebe não a
pode reconhecer enquanto dádiva, e a própria oferta não pode surgir como se o
fosse. Talvez essa condição imaculada, esse estado puríssimo de desapego e amor
seja, de facto, inatingido a maior parte das vezes, mas não podemos negar-lhe
grandiosidade e beleza. E a verdade é que essa grandeza é-nos vitalmente necessária.
Temos de ter diante dos olhos verdades grandes, verdades sem prazo, horizontes
de sentido maiores para não nos perdermos depois na sucessão das coisas
pequenas que é a nossa missão, no humilde enredo despido de qualquer
espetacularidade que é o amor, nas relações biográficas sem história que
quotidianamente nos sustentam.
A exigência imensa da dádiva não deve paralisar-nos, mas
seria insensato ensaiar simplesmente uma fuga para a frente, tornando-nos
distribuidores de contrafação, enchendo as mãos dos outros e as nossas próprias
de coisas apenas, artefactos ruidosos de vazio, por mais ficcionados e
encantatórios que possam ser. As coisas são fracos substitutos para a nossa
fome de encontro e de amor. É essencial que os nossos presentes se avizinhem
daquilo que uma dádiva é, daquilo que ela pode ser em termos humanos como
expressão gráfica do amor, do cuidado, gentileza, alegria partilhada, atenção.
Persistirão, por certo, zonas de ambiguidade, mas podemos dar-lhes combate. As
palavras sugeridas por Francisco de Assis há tantos séculos podem desenhar-nos
um trilho: “Que eu procure mais consolar que ser consolado/ Compreender que ser
compreendido/ Amar que ser amado”.
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