Estes dias da oitava do Natal são algo de magnífico. Já
passou o rebuliço das consoadas e o ano novo ainda se vem aproximando de
mansinho. Se durante o Advento preparamos a chegada do Menino, na oitava
podemos e devemos celebrar a Alegria e Graça de sentirmos que Deus se fez
verdadeiro Homem, para melhor nos poder conduzir à salvação.
Desde pequeno que para mim os Natais não são verdadeiramente
Natal sem que na família se faça uma encenação e reprodução do presépio. Temos
a sorte de ser muitos primos, e de quase todos os anos haver um recém-nascido
convocado para representar o papel de Menino Jesus. Sempre rodeado de Maria e José,
de uma miríade de pastores (em regra os primos mais pequeninos) uma série de
anjos (os primos em torno dos sete anos) e no final os três reis magos (sempre
os primos que estão já a caminho da idade da ‘aborrecência’). Todos os anos a
algazarra é muita, com os papéis a rodarem, com algum amuo porque se achava que
nesse ano é que se era promovido de pastor a anjo, ou de anjo a rei mago, e com
todos a cuidarem de se paramentarem devidamente para o teatrinho de Natal.
Há medida que o tempo ia passando e eu ia crescendo, fui-me
entediando com a história e a narrativa, que era sempre a mesma, e eu até já
sabia quase todas as falas de cor... Foi-se tornando uma daquelas coisas que
tinham de ser, sem as quais um Natal não era Natal…
À medida que fui crescendo fui-me apartando do simbolismo,
ligando-me mais à forma e vivendo cada vez menos o espetacular conteúdo do
presépio. Só mais recentemente me reencontrei com o enorme significado de viver
o presépio, de o repetir e revisitar e de o deixar-se entranhar em mim.
O presépio narra-nos a história de uma família, que se
desloca para uma terra estranha, e que, batendo a todas as portas, as encontra
fechadas. Esta família, Sagrada pela Graça de Deus apenas encontra guarida num
pequeno estábulo que, abrigando por natureza animais, não seria o local mais
digno para pessoas pernoitarem. É aí que nasce o Menino, Deus feito Homem para
nos salvar, colocado sobre as palhinhas de uma manjedoura destinada aos mesmos
animais que o haviam de aquecer. Já os anjos cantam ‘Gloria in Excelsis Deo’, e
os pastores que se encontram nas redondezas lá se deslocam para, na sua
singeleza, adorar o Menino Salvador. Dias depois chegarão os reis magos,
guiados por uma estrela, vindos do Oriente com as suas ofertas de ouro, incenso
e mirra. O Presépio simboliza a festa que é a presença de Deus entre nós, e bem
à sua maneira, começa pequenino e humilde para crescer e se fazer arrebatador e
incontornável.
Ouvir e representar tantos anos seguidos na minha infância
esta história, transformou-me, percebo hoje, profundamente. Inculcou em mim as
raízes da minha fé, e representa talvez a minha primeira adesão e memória do
verdadeiro significado de acreditar. A narrativa do presépio fala-nos de
ocorrências bem tangíveis e palpáveis.
Todos compreendemos a desumanidade do fechar de portas a
Maria e José. Todas as semanas rezamos que ‘Não somos dignos de que entreis em
minha morada’, e pedimos que nos seja dita uma palavra para que sejamos salvos.
Mas por causa do presépio eu sempre me debati com esta questão: se Deus me
batesse à porta reconhecê-lo-ia? Abrir-lhe-ia a porta de minha casa? Da minha
intimidade? Seria eu capaz de o rejeitar por ‘ter a casa cheia?’.
Olhando para o caminho percorrido identifico vários momentos
em que apenas entreabri a porta e apenas balbuciei algo de ininteligível e
envergonhado, seguido de um cerrar da porta (outras tantas nem o trinco de
segurança tirei…).
Mas esta Família Sagrada persiste e continua a bater a
várias portas, e não se faz rogada em se recolher a um simples estábulo. Mesmo
sabendo que haveria de nascer o Deus Menino, não há um momento de soberba ou de
exigência, há apenas pedidos humildemente suplicantes e uma gratidão imensa
ante a oferta imprópria de tão humilde. É esta a imagem que para mim define a Sagrada
Família. Os três, naquele estábulo dando graças a Deus por tanto bem recebido
no meio de tanta atribulação. Ainda não chegou mais ninguém e São José conforta
e aconchega o melhor que pode Nossa Senhora, que nos seus braços embala aquele
que é bebé indefeso nascido pela Graça de Deus. É uma família envolta de
fragilidades, mas aquecida pela fé no Pai e pelo abandono à sua vontade (desde
o primeiro momento).
Há muitos outros episódios desta Família Sagrada que nos
ajudam a perceber a dimensão da sua entrega e disponibilidade, e durante as
próximas semanas estes serão narrados nos Evangelhos quotidianos, mas para mim
nenhum outro encerra tanta carga emocional e simbólica quanto a Sagrada Família
no presépio.
iMissio (29-12-2016)
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