Uma das
grandes virtudes que precisamos de reencontrar é a arte do espanto, pois é
verdadeiramente por aí que tudo começa...
Lembro-me muitas vezes de um ensaio da escritora
italiana Natalia Ginzburg sobre aquilo que os pais transmitem aos filhos. E a
opinião dela é que os pais parecem esgotar o seu papel no ensinamento das
pequenas virtudes, e frequentemente se demitem de dizer uma palavra ou tomar
uma iniciativa sobre as grandes. É como se todo o nosso sistema de valores
educativos se restringisse à aprendizagem do que é o senso comum adquirido,
aquilo que de uma forma ou de outra se respira no ar, escolhendo assim a
estrada mais cómoda. O pior, porém, é o que, neste modelo educativo, se deixa a
descoberto em termos da aventura humana como aventura de construção do sentido.
E Natalia Ginzburg dá exemplos. A relação com o dinheiro é um deles. Os pais
sentem o cuidado de ensinar os filhos a poupar e a utilizar de forma
parcimoniosa os recursos financeiros, mas sentem menos, como tarefa, o
ensinamento da generosidade ou até da indiferença perante o dinheiro quando
está em causa aquilo que nenhum dinheiro compra.
Os pais investem na
transmissão da prudência, mas falam pouco da coragem ou do desprezo pelo perigo.
Relevam a astúcia e não tanto o amor pela verdade. A diplomacia no lugar do
abnegado amor ao próximo. O desejo de sucesso em vez do desejo de ser e de
saber. É evidente que este não é simplesmente um problema dos pais X ou Y, mas
tem que ver com os modelos de felicidade que a nossa sociedade maioritariamente
adota. Ora, não quer dizer que as pequenas virtudes não sejam ferramentas de
vida fundamentais. Não é essa a discussão. O ponto que precisaríamos de
refletir melhor é o do nosso esquecimento das grandes virtudes, deixadas à
geração espontânea e à música do acaso. Pode ser que um jovem chegue a elas por
um encontro, pelo alvoroço de uma grande alegria ou de um demolidor sofrimento
que, em arriscada contramão, lhes permitam fazer um caminho interior
inesperado. Porém, o que distingue hoje as nossas sociedades em relação a
outras, contemporâneas ou passadas, é que nesse caminho cada um estará muito
mais só do que se escolhesse fazer da sua inteira existência um quintal para
cultivar as pequenas e óbvias virtudes.
Uma das grandes virtudes que precisamos reencontrar é a arte do espanto,
pois é verdadeiramente por aí que tudo começa. Espanto deriva do latino expaventare que descreve a forte
impressão originada por uma coisa inesperada e repentina. Se procurarmos
sinónimos, encontramos assombro, admiração, surpresa. É o contacto (consciente,
fulgurante, desarmado, rendido) com a vida maior do que nós, a vida em aberto,
não predeterminada. No espanto, a nova e surpreendente expressão da vida prende
a nossa atenção à maneira de um relâmpago, de um rasgão imprevisível. Não a
conseguimos encaixar no nosso quadro habitual, pois o seu carácter inédito
torna inúteis todas as previsões, saberes, experiências, etiquetas, mapas,
preparações. Gosto muito da definição de espanto dada por Adorno: “Espanto é o
longo e inocente olhar sobre o objeto”. É, de facto, um ‘olhar longo’ e isso
talvez explique porque consideramos hoje tão pouco o espanto, num tempo que nos
programa para olhares breves, relances, observações fugidias e utilitárias,
cada vez mais simplificadas. E é um ‘olhar inocente’, isto é, aberto à
revelação do próprio objeto, ao que ele pretende de nós e não ao que
imediatamente pretendemos dele. O espanto obriga-nos a uma revisão do que
sabemos de nós próprios e do mundo. Obriga-nos a recomeçar, como se fosse um
nascer. Certamente que, no seu processo, o espanto desarruma e dói. Mas o amor,
o conhecimento, a poesia ou a santidade principiam com ele.
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