Aquele
lugar vazio dilatava o mundo.
Assegurava-nos, sem palavras, que a felicidade
existe.
É impossível
não ficar consternado quando, ao tornear o magnífico monte solitário, em vez de
uma enseada silenciosa e vazia nos deparamos com um aglomerado onde a
construção imobiliária se atropela, numa vertigem de dinheiro e ódio pela
paisagem natural. Dir-me-ão que não é exemplo único. Sim, infelizmente não é.
Mas aquela enseada teve como locatário único, durante séculos, apenas o vento.
O vento que naquela franja do litoral se fazia lento, rastejava mansamente
aplainando a areia, construía a caixa acústica para apurar as múltiplas
possibilidades do seu assobio, esculpia as rochas negras que entravam como
dóceis animais imóveis pelo mar adentro. O mar tinha o mesmo aspeto do cobre,
um verde fundo cheio de cambiantes líquidas e azuis, mas ali incrivelmente
límpido. Aquele lugar vazio — como dizê-lo? — dilatava o mundo. Assegurava-nos,
sem palavras, que a felicidade existe. Aquele lugar era belo como a dança de
uma cascata quando ninguém a contempla.
E pensar que a
sua destruição começou de forma quase inocente! Um casal passava por aquela
enseada num passeio de lua-de-mel. Aquele parecera-lhes o lugar mais belo que
tinham alcançado. Gostaram de tudo: da forma redonda da terra, do extenso
lençol de areia que a cobria refluindo em círculos, da maravilhosa geometria
dos fósseis calcários dispersos por toda a parte, da paisagem árida onde os
amarelos, os rosas e os laranjas dos afloramentos sobressaíam. Deixaram-se cair
de pura alegria e rebolaram pela encosta até pararem de braços abertos sentido
a frescura trazida pela linha d’água. E quando ele lhe agarrou a mão, ela
disse: “Quero viver aqui.”
Passaram-se
cinco anos. Durante esse tempo, por diversas vezes, ela sugeriu-lhe que
viajassem até àquele lugar, mas por uma razão ou por outra isso não tinha
acontecido. Agora havia sido ele a propor-lhe e ela aceitou e desejou muito o
reencontro com o sítio que para ela era o próprio movimento da vida. E pensava
consigo mesma: “Tem de continuar a existir um ponto assim para que a verdade se
possa sonhar.” Mas ao contornarem o monte, cinco anos depois, estava-lhes
reservada uma surpresa. Naquela enseada, sobre a caixa acústica do vento, sobre
os rochedos negros que subiam do mar alguém construíra uma mansão. Ficaram
boquiabertos. Ela comentou: “Mas é possível que esta zona natural não estivesse
protegida da construção?”, e nem chegou a ouvir uma desculpa qualquer que ele
arengou. Ele desafiou-a: “Vamo-nos aproximar.” Ela ainda murmurou “achas
mesmo?”, mas começou a segui-lo, como se ele soubesse o caminho e fosse ele o dono
daquela mansão. E de facto, talvez por isso, quando ele retirou uma chave do
bolso e abriu o portão pareceu-lhe verosímil. E quando ele rodou a fechadura da
entrada principal, como se tivesse sido ele a colocá-la no dia anterior, ela
nada perguntou. E ao entrar na mansão reconheceu as fotografias dos dois, os
quadros que ambos haviam comprado e que ela pensava em depósito na cidade onde
viviam, a cópia dos móveis que ela preferia, as porcelanas, os livros, as
lanternas que pareciam flamingos pousados em torno ao seu sonho tornado
realidade. Mas nessa noite, ela mandou chamar um táxi e tomou o primeiro avião
que a levasse para longe dali.
Quando recordo esta história que se passou na ilha da Madeira há umas décadas, penso no verbo sonhar. A verdadeira riqueza deste verbo está nessa espécie de mendicância que nos faz levantar os olhos e sentir o aberto como uma promessa maior do que nós. Hipotecar a possibilidade de sonhar é perder-se.
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