A
verdadeira viagem é aquela que dura tanto que já não se sabe porque se veio ou
porque se está
Nós somos duração (ou, pelo menos, “duro desejo de durar”, como Paul Éluard
defendia). Quer dizer, trazemos em nós a memória e a presença de tempos muito
diversos e isso, por muito que nos custe, é um dom. Conhecer-se é tomar
consciência desses tempos que coexistem em nós, mesmo no seu contraste.
Gostaríamos que a vida fosse mais linear e harmoniosa, não tivesse a marca
daquele solavanco ou daquela ferida, não tivesse atravessado aquele
estremecimento. É verdade, para bem e para mal, aquilo que Camus escreveu: “O
homem é o único animal que se recusa a ser o que é.” Mas em nós coexistirão
sempre o breu e a lâmpada, o tesouro e o barro, e a atitude não é mudar aquilo
que não podemos mudar, mas perceber que a ambivalência, em certo grau, também é
uma respiração que nos pertence.
Bem desejaríamos poder travar ou modificar o
tempo. Porém, o importante não é ser perfeito: o fundamental é ser inteiro.
Trata-se, assim, de integrar, na composição que fazemos da existência, a
diversidade, a fragmentação e o contraste. E os pequenos triunfos dão-nos
fortaleza para olhar as grandes humilhações, e as dificuldades vividas
oferecem-nos sabedoria para olhar de outra maneira para tudo o resto. As
experiências de liberdade ampliam a capacidade e a esperança para suportar os
momentos em que a perdemos; e as experiências em que nos sentimos aprisionados
consolidam a resistência, a força e até o sentido de humor para vivermos os
tempos de liberdade. Há, portanto, que afastar a tentação do cinismo e aceitar
que somos feitos efetivamente destes materiais tão diferentes e que tudo isso é
matéria de vida e de dádiva. Escreve Rainer Maria Rilke nesse mapa
indispensável que são as “Cartas a um Jovem Poeta”: “o tempo não é uma medida,
um ano não conta, dez anos não representam nada, ser pessoa não significa
contar, não se trata de contar o tempo: trata-se sim de crescer como a árvore
que não apressa a sua seiva e resiste serena.”
Normalmente, quando vamos de um lado para o outro conhecemos o motivo. Mas
— temos de reconhecê-lo — uma viagem assim é demasiado curta. A viagem que se
faz sabendo os motivos não é a viagem. A verdadeira viagem é aquela que dura
tanto que já não se sabe porque se veio ou porque se está. As perguntas sobre o
que fazemos já não interessam. Estamos, ponto final. Viemos. Não é o saber ou a
utilidade que definem a vida, mas o próprio ser, a expressão profunda de si.
Por
exemplo: olhamos para um jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos,
cerceamos e, de repente, temos um jardim obcecado por figuras geométricas,
recortado pela ânsia de alcançar formas reconhecíveis ou perfeitas. Contudo, é
bom saber que o nosso desejo de arrumação pode ser enganador, porque a vida é
viva, e nada se sobrepõe a essa verdade. Creio, por isso, que temos sim de
desejar os nossos canteiros bem ordenados e floridos, e neles a maturar a vida
que controlamos. Mas não podemos deixar de desejar, e de desejar ardentemente,
que flores selvagens, flores de que não conhecemos o nome, venham também florir
à nossa porta.
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