Virginia Woolf escreveu que “a felicidade é
ter um pequeno fio onde as coisas se prendem por si”. Por vezes, o riso tem na
vida a função desse pequeno fio que consegue o milagre de colar os fragmentos
distantes e desavindos da própria experiência. Parece mesmo que as coisas,
mesmo as mais difíceis, se prendem por si, convergem suavemente para uma
repentina espécie de encaixe, sem o esforço que sabemos necessário. O riso é um
instantâneo da graça, flagrante como uma iluminação. É uma resolução inesperada
que reorganiza o mundo.
Aquele meu amigo estava a principiar uma
análise. Como todos os que começam, não sabia bem o que estava a fazer ali,
deitado naquele divã. O psicanalista tentava movê-lo para algum sítio.
Sugeriu-lhe que, se sentia dificuldade em falar, pegasse num elemento do seu
campo visual. Foi então que ele reparou na estrelícia que estava na jarra. E
concentrou nela o seu desgosto profundo. Detestava estrelícias, confessou.
Quando era miúdo, mal saía da sua cidade, avistava uma sucessão de estufas de
estrelícias. Não era uma memória feliz. Ele dizia que eram flores com uniforme.
O verde monocórdico, as folhas com o seu quê de bélico, quase cortantes, a haste
esticada sem nenhum encanto e aquela flor, que os que amam estrelícias dizem
assemelhar-se a uma ave feérica, mas que ele arrumava na categoria dos
despropósitos da natureza. E depois a longevidade. Com isso também ele
implicava. As estrelícias duravam demasiado, não pareciam sequer flores. Numa
das sessões seguintes, estava ele, de novo, deitado no divã e dá-se uma
coincidência. De facto, as estrelícias duram muito, mas não são eternas.
Naquele preciso momento, a haste da flor perde firmeza e, tombando para um dos
lados, desequilibra a jarra que espalha toda a água que continha. E a sua
reação foi uma gargalhada. Riu-se um bom bocado, sem qualquer inibição, e só
depois pensou que poderia estar a ser indelicado para o analista. Pediu, por
isso, desculpa. Mas o psicanalista disse-lhe uma coisa que valeu pelo inteiro
percurso clínico: “Aprenda a não temer o seu riso. Ele provém da parte mais
saudável de si.”
No livro que estou a ler, “Os judeus e As
Palavras”, um ensaio em coautoria do romancista Amos Oz e da sua filha, a
historiadora Fania Oz-Salzberger, diz-se que nem as religiões devem temer o
riso. A família Oz informa que na teologia judaica há uma corrente chamada
chutzpá e que redunda numa reverência particularmente irreverente, juntando fé,
gosto pela discussão e muito, muito humor, do qual o próprio Deus não está
isento. E recordam aquela anedota da avozinha que caminha com o neto pela praia
quando, do nada, rebenta uma onda colossal que submerge completamente o miúdo.
“Caro Deus Todo Poderoso” — diz indisposta a avó — “como é que permites que me
aconteça tal desgraça! Sofri a vida inteira sem nunca ter posto em causa a
minha fé! Envergonha-te.” Não passa um minuto e a criança é reposta, a
salvamento, nos seus braços. Mas ela não se fica por aqui. “Caro Deus Todo
Poderoso, foi até aqui muito gentil da tua parte, não tenho dúvidas. Mas onde é
que está o chapéu que o meu neto trazia?” Se até com Deus podemos rir, o poder
terapêutico do riso não deve ser temido. É verdade que o humor pode ser
inconveniente, vulgar e grosseiro. Mas entre um humor, ainda que reles, e
qualquer fanatismo refinado, venha daí o humor. Há um antigo dito hassídico que
explica: “Mais do que qualquer outro pecado, devereis libertar-vos da tristeza.
A tristeza não é um pecado, mas nenhum pecado endurece tanto o coração como a
tristeza.”
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