Jurou que nunca cozinharia, até que um dia o filho a
alertou para a falta dessa forma de afeto
Teria então uns seis anos de idade. Naquele dia,
esteve perto da mãe na cozinha a preparar o jantar. A mãe dizia que ela
ajudava. E ajudava. Passava o feijão que estava de molho numa taça para uma
pequena panela vazia. Ia buscar alguma coisa que lhe era pedida ao frigorífico.
Fechava-o depois com mil cuidados. E isso era também ajudar, explicava-lhe a
mãe. Conversava. Cantarolava. E isso ajudava. E na cumplicidade delas a tarde
deslizava devagar. Sentia a mãe nervosa, mas também controlada e quase serena sempre
que lhe falava. Duas ou três vezes, porém, quando surpreendeu a mãe recolhida
no seu mundo, alarmou-se com a nuvem que viu pousada nos seus olhos grandes.
Mas depois a mãe falava-lhe, sorria para ela, e era como se nada se passasse.
Terminada a confeção do jantar, trataram de colocar a mesa e ficaram ainda
muito tempo juntas e abraçadas à espera do pai. O pai chegou tarde e
alcoolizado, como, há uns meses, ocorria. Sentaram-se à mesa. Primeiro em
silêncio. Depois a escutar o monólogo desarticulado do pai. A mãe perguntou ao
pai se queria mais sopa. Em resposta, ele puxou a toalha, com tudo o que estava
em cima, e as terrinas, os copos, os pratos, os talheres e o que restava da
alegria pareceram engolidos, de uma só vez, pelo chão. Haveria de tornar vezes
sem conta a esse dia. Mas tinha seis anos e resolveu a coisa como podia:
prometeu a si mesma que nunca na vida iria cozinhar, e faria tudo para não
precisar sequer de entrar numa cozinha.
E assim foi. Na altura em que se aprende a cozinhar,
por desejo ou por necessidade, ela protegeu-se bem de ambos e passou ao lado. E
arranjou as desculpas que foram precisas para não entrar em cozinhas, ignorando
propositadamente tudo o que lhes dissesse respeito. O tempo passava. Frequentou
a universidade e formou-se em gestão. E aconteceu isto: pelo efeito daquelas
estranhas arquiteturas simétricas em que é pródiga a irónica vida, o seu
primeiro trabalho foi a gestão de um importante restaurante da cidade onde
vivia. Primeiro experimentou receio, mas depressa percebeu que esse era o
disfarce perfeito. Precisamente por administrar um restaurante dispensava-se de
cozinhar, e tinha ainda o dever (agora também profissional) de frequentar
outros, de conhecer com detalhe a concorrência, de aprender. E foi o que se
passou. Em breve tempo ela tornou-se uma gestora disputada no campo da
restauração, com convites irresistíveis para trabalhar inclusive na capital.
Mas a experiência acumulada e o sentido de risco empurravam-na para outro lado.
Comprou um primeiro restaurante e outro e outro... Renovou-os. Criou uma marca.
Chegou a possuir mais de trinta, um pequeno império que atuava em rede agora
para lá das fronteiras do seu próprio distrito. Durante este tempo, casara-se
também, tivera um filho e divorciara-se. No entanto, o miúdo viveu sempre com
ela. E ela ensinou-lhe que a cozinha de casa era simplesmente uma espécie de
dispensa para a conservação dos alimentos: o fogão não se acendia, os alimentos
não se fabricavam naquele sítio, nunca haveria o cheiro da comida invadindo as outras
divisões da casa. Ela trazia de fora os pratos de que ele gostava e a maior
parte das vezes comiam até em restaurantes. Assim conseguia trabalhar e
mantê-lo perto de si. Assim estariam sempre juntos.
Houve um dia, como tantos outros, em que estavam a
comer fora. Um perante o outro. Os pratos na mesa. Mas o filho, com onze anos,
chorava. Ela pergunta-lhe muitas vezes o que se passa, o que é que ele tem. E,
por fim, ele responde: “As mães dos meus amigos cozinham para eles. Tu nunca
cozinhaste para mim”. Ela permanece diante do filho. Fica em silêncio por longo
tempo. O que quer que faça a seguir, será enfrentando um dom a que julgara ter
renunciado. De facto, há verbos humanos, aparentemente insignificantes, que
sustentam a possibilidade de nos sabermos amados. Cada um deles é parte de uma
coreografia que compõe, aos nossos olhos, uma imagem confiante da vida.
[José Tolentino
Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2277 | 18/06/16]
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