José Tolentino Mendonça (19-04-2016)
O
discurso de Bergoglio ficará como um dos mais emblemáticos do seu corajoso
pontificado
O
escritor António Alçada Baptista citava muitas vezes a opinião de Denis de
Rougemont, que também era a dele, de que a crise do casamento começou quando os
casamentos começaram a ser feitos por amor. Era uma blague, claro, mas também o
princípio de uma reflexão séria sobre a complexa mutação em curso (alteração de
mentalidades, de padrões sociais, de regimes de existência, etc.). Podemos
sempre assentir, é verdade, e também a propósito do amor, que quem inventou o
barco inventou o naufrágio. Ora, a tentação poderia ser simplesmente voltar atrás,
procurando na restauração de um código ou de um modelo rígido a solução e
substituindo o amor por um fundamento menos problemático. A situação de
emergência que hoje se vive (só em Portugal, por exemplo, os números da Pordata
indicam que no ano de 2013 houve 70,4 divórcios por cada 100 casamentos) parece
dar-lhe razão. Graças a Deus, não é esse o entendimento do Papa Francisco. Na
importante exortação que agora publica, o amor aparece não só no título mas vem
nomeado mais de 300 vezes, tornando-se deliberadamente o centro da sua
detalhada reflexão. A apresentação oficial do documento, na Sala de Imprensa do
Vaticano, ficou a cargo do cardeal de Viena, o dominicano Christoph Schoenborn,
que reforçou com frontalidade este aspeto: “O Papa Francisco crê no amor, na
força atraente do amor, e por isso pode ser bastante desconfiado e crítico
relativamente à atitude de quem quer regular tudo com normas. ‘Não’, diz o
Papa, ‘isso não atrai; o que atrai é o amor’.” Dito isto, há que reconhecer que
o discurso de Bergoglio é tudo menos redutor ou escapista, tendo aqui um dos
momentos que ficará como um dos mais emblemáticos do seu corajoso pontificado.
De
um texto invulgarmente extenso (são nove capítulos e mais de três centenas de
parágrafos), o que já de si revela o extremo cuidado mas também a dificuldade
que o tratamento destas questões impõe, atrevemo-nos a sublinhar três tópicos
que se prendem com o método. Certamente que aquilo que o Papa diz é
fundamental, e o documento está aí para que uma ampla receção aconteça, mas o
modo como o diz marca também uma atitude e um programa.
1)
Uma inovação metodológica do Concílio Vaticano II, sobretudo dessa magna carta
do catolicismo contemporâneo chamada “Gaudium et Spes”, é a introdução de um
discernimento da realidade a dois tempos, falando não só das sombras mas também
das luzes que assinalam um progresso e uma positividade. Esta alteração passou
a vigorar nos documentos magisteriais posteriores e corresponde a um esforço de
leitura da vida na sua complexidade. Este esquema é mantido na “Amoris
Laetitia”, mas dá-se um passo em frente: a Igreja, pela voz autorizada do Papa,
promove não apenas uma análise crítica dos temas em debate mas desenvolve uma
honestíssima autocrítica em relação ao seu próprio contributo histórico.
2)
Uma chamada de atenção que tinha aparecido nos grupos de trabalho do sínodo,
reconhecendo que o modo de pensar da Igreja é, muitas vezes, demasiado estático
e tem pouco em conta a dimensão biográfica dos percursos crentes, é acolhida
com audácia neste documento. Francisco escreve: “É mesquinho deter-se a
considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma
geral.” E pede encarecidamente que nos lembremos de algo que ensina Tomás de
Aquino, o teólogo mais citado em toda a Exortação: “Quanto mais se desce ao
particular, mais aumenta a indeterminação.” A indeterminação não é, pois, um
acidente, mas um componente da vida com que se deve contar.
3)
O próprio documento é um ensaio de uma nova linguagem, privilegiando o modelo
narrativo e a ligação à experiência, ao tecido do vivido, ao quotidiano, em vez
de um discurso abstrato. Um sintoma curioso colhe-se nas citações que sondam
uma antropologia enunciada não só doutrinalmente mas por poetas (são citados
Jorge Luis Borges e Mario Benedetti), cineastas (é recuperado “O Festim de
Babette”, de Gabriel Axel) ou líderes espirituais não católicos (Martin Luther
King e Dietrich Bonhoeffer).
in http://www.imissio.net/v2/opiniao/amoris-laetitia:4375
in http://www.imissio.net/v2/opiniao/amoris-laetitia:4375
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