O sacerdote
jesuíta Vasco Pinto de Magalhães acompanhou jovens universitários em Lisboa ao
longo de vários anos. Também já foi mestre de noviços em Coimbra e responsável
pelo rigoroso discernimento vocacional que a Companhia de Jesus faz com os
jovens que desejam ser padres. Está agora no Porto a acompanhar jovens adultos
e casais com filhos pequenos.
Se, ao longo
da história, os jesuítas foram sempre enviados para realidades onde a proposta
cristã era desconhecida ou até mesmo adversa, o padre Vasco Pinto de Magalhães
garante que hoje “a linha da frente” da missão joga-se também nas novas
fronteiras da modernidade e na voragem das grandes cidades, onde falar de Deus
e de amor não é nada fácil. Pretextos para uma conversa com a Renascença sobre o
sentido da vida nos tempos actuais.
Cruza-se com
muita gente nova, com adultos jovens, conhece a realidade das grandes cidades.
É difícil falar de Deus hoje? Quais são os principais obstáculos?
Há um défice,
sobretudo nos mais novos, de pensamento crítico. Sinto que é um grande
problema.
Porque as
pessoas se abstêm de ajuizar?
Não, ajuízam
muito, mas ajuízam sem reflectir – têm opiniões! A cultura hoje é opinativa,
toda a gente acha e não quer que ninguém a contradiga, porque a sua opinião é
que vale, mas é tudo muito emotivo. Um emotivismo muito primário. A educação
hoje – cá e também na Europa – não é crítica, é muito informativa e pouco
formativa.
[Os jovens]
Vivem ligados ao computador, sabem tudo e não sabem nada, mas têm toda a informação
à mão e isso dá-lhes a sensação de que não precisam de pensar. Por isso, penso
que uma grande crise da Europa é a ausência de pensamento crítico. E, ainda por
cima, não têm tempo e têm tanta informação que não conseguem organizar, nem
codificar. Estou a identificar um défice que me parece muito forte e traz
também muitas consequências e mal-estar na vida porque lhes dá uma certa
sensação de auto-suficiência, mas que depois é muito vazia.
Falou numa
inquietação que existe, mesmo entre os mais empenhados, mas essa inquietação
também existe entre os que andam mais esquecidos do essencial, ou não?
Sim, a
inquietação é muito grande, só que o mundo hoje oferece muitas fugas
enganadoras: os spas, as férias aqui, as férias acolá, todo o espectáculo, toda
a sociedade de divertimento, há toda uma superocupação que é enganadora, porque
vai, vai, vai até bater. E depois, há muito sofrimento que atinge os limites. A
pessoa cansa-se rapidamente do trabalho, cansa-se das relações, cansa-se da
família, porque precisa de mais qualquer coisa, mas, como parece que, muitas
vezes, a vida não está interiorizada – está vivida na superfície, no
imediatismo, na emoção – isso tem consequências complicadas. Por um lado,
andamos a fugir do sofrimento, mas vamos bater nele com toda a força e sem base
para o enfrentar.
Como é que
saímos disto, como se desembrulha este novelo?
Não tenho uma
visão pessimista disto, acho que estas coisas são cíclicas e passageiras. Vejo
muita gente a reencontrar-se, a perceber onde está. Nestes grupos com que mais
lido, uma das coisas que faço com “imenso sucesso” [risos] são as catequeses de
adultos. Tenho todos os anos grupos enormes, este ano tenho mais de cem na
catequese de adultos.
“Aturar” uma
catequese quando se tem um programa atractivo, como ir um concerto, ao cinema
ou jantar com amigos… O que move esses adultos?
Acho que é
dar-se conta deste vazio.
É uma questão de
honestidade consigo próprio para conseguir sair desta ilusão da aparência de
que isto basta?
Sim, estou a
falar de um grupo específico, não posso generalizar. São pessoas que não entram
naquela crítica genérica que fiz antes – estas são exactamente aquelas pessoas
que abriram os olhos e querem preparar-se e formar-se até para ir ao encontro
dos outros. E é isso que me dá um certo optimismo: é que no meio desta grande
massa anónima e superficial, que vive à procura de se divertir e de ganhar
dinheiro e sem grande perspectiva de futuro – porque isso incomoda muito, pois
se começam a pensar no futuro entram em crise – no meio disso tudo, há
exactamente grupos muito atentos. Restos de Israel, digamos assim. Têm uma
inquietação missionária na educação dos filhos, naquilo que lêem, naquilo que
procuram…
E imagino que no
seu tempo de mestre de noviços também encontrou jovens normais, que poderiam
vir a ser “yuppies”, com carreiras de futuro, e que fizeram uma viragem
existencial, um caminho profundo para perceber as razões da vida, indo para
padres…
Sim, sim e
gente tão boa! Só que agora já não são em grandes quantidades como antigamente,
o que então nos dava uma sensação de segurança… Agora vive-se na corda bamba,
porque os números são muito pequenos, é tudo muito vulnerável, porque as
emoções e os impactos culturais entram com tanta força… Vemos isso, sobretudo,
nos mais miúdos. A quantidade de informação dada com muita intensidade
emocional faz com que haja muito pouca estabilidade de pensamento e de
segurança e isso introduz um sofrimento, uma inquietação muito frequente. E
depois, há refúgios…
O spa é um
deles. Há quem diga que significa “salvo pela água” e também há quem se ache
salvo pela cosmética, pelas coisas da moda. A salvação é desejada por todos,
mas é canalizada de maneira errada?
Sim, esta
cultura criou estes sucedâneos. Os sucedâneos não eram maus, porque eram
complementos, o problema é que se trocou a coisa de fundo pelo complemento. E o
complemento é um bocadinho enganador, porque é um paliativo. Durante um momento
satisfaz e a pessoa esquece, mas o problema de fundo não foi resolvido, não é?
E o problema de
fundo, qual é?
O problema de
fundo é exactamente viver com um sentido da vida, com perspectivas de
realização profunda e não andar a fugir dos problemas, mas ser capaz de os
enfrentar e de os superar.
Isso é uma
chamada de atenção a ser realista, a estar com os pés bem assentes na terra?
Mas a realidade dói!
A realidade
dói muito e, por isso, se foge. Dos quatro grandes critérios do Papa na
exortação “A Alegria do Evangelho”, um deles é exactamente isso: “a realidade é
mais importante do que a ideia”. Só que hoje não, a ideia passa à frente.
Estamos com essa enorme tentação de substituir a realidade pela ideologia.
Mas não é
consciente. As pessoas não param para decidir substituir a realidade, as
pessoas acham que vivem a sério.
Quase que
essa ideologia passou, para elas, a ser uma espécie de realidade, porque é
veiculada, é o que aprendem na escola, é a cultura, é o que a gente, de alguma
maneira, vê nos jornais. Custa-lhes, por exemplo, hoje serem críticos em
relação à ideologia de género, porque quando, depois, conseguem começar a
pensar começam a perceber que há ali muito engano, mas não querem olhar para a
antropologia, para o que é que está por detrás, para ter opiniões, sobretudo no
campo moral, no campo da ética. Os debates, como, agora, o da eutanásia, não
vão ao fundo da questão, ver que pessoas estão ali por detrás. Não, se for
preciso, dizemos que não há natureza, que há só acção e podemos mexer em tudo
e, portanto, o mundo é aquilo que a gente quiser que seja e não há uma base;
quase que prescindimos da antropologia, não é? E isso é uma doença do nosso
tempo que passa na cultura, passa nas aulas, passa nos jornais e é muito
perigoso porque acaba por ser muito destrutivo.
Como é que se
cura essa “doença”?
Cura-se
criando momentos em que seja possível pensar – e pensar criticamente, ajudando
a olhar para a realidade. Cura-se com a meditação, com a contemplação…
Mas também há
uma grande confusão sobre a meditação.
Pois, isso
sucede quando a meditação também é um refúgio e não um encontro. A meditação é
exactamente um encontro com a realidade tal como ela é, que me faz encontrar
também com o Deus criador e salvador. Mas isso supõe um encontro pessoal,
enquanto a outra é um bocado evasiva.
Mas nesse
encontro, a dificuldade, hoje em dia, não será reconhecer a presença de outro?
De um outro muito provavelmente maior do que eu? João Paulo II dizia
“escancarai o coração”, Bento XVI dizia “desejai, desejai muito”, mas, se
fizermos isso, ficamos mais vulneráveis porque percebemos que não conseguimos
preencher o desejo que nos constitui… É esse um dos problemas? Refugiamo-nos de
outra maneira para não escancarar o coração?
Sim, talvez.
As coisas são hoje bastante a prazo e, portanto, não há consistência no desejo.
Há muitos desejos, em vez de um grande desejo. Mas eu vejo que as pessoas têm
esse desejo, só que depois não encontram o ambiente favorável para essa
reflexão. A aceleração do tempo e toda esta rapidez… O Papa Francisco usa a
expressão “rapidismo”…
Francisco, seu
colega jesuíta, denuncia tantas destas “doenças” da modernidade. Ele fala na
indiferença, na alienação existencial, no fechar-se no seu mundo, na
auto-referencialidade…
A velocidade
que não dá tempo para interiorizar, não é? O não ir à realidade e ficar pelas
ideologias que parecem realidade, mas são construídas e vindas de fora; termos
trocado o cósmico pelo cosmético. Pintamos as coisas bem pintadinhas, parece,
mas depois há vazios muito angustiantes. Não é uma coisa tratável, é vazio
interior, é falta de sentido, é a sensação de não ser amado.
Como se recupera
o sentido para isso tudo, o sentido da vida, do sofrimento, da alegria no
dia-a-dia?
É tão
complexo, mas acho que uma das coisas importantes é recuperar a fé, a fé na
vida, a fé em nós próprios para ter uma fé em Deus… Mas entramos aqui noutra
doença que é o laicismo, e essa é fortíssima. Instilam-se nos miúdos mais
questões do que respostas. Para corrigir o mundo que estava todo pré-fabricado
e onde se davam respostas, agora só se dão questões. O laicismo de hoje, sob a
capa de ciência, tende a pôr muito em causa a questão de Deus. Montámos um
sistema onde é preciso muita coragem para a conversa sobre Deus, que é hoje
muito importante, mas que está um bocadinho vedada.
O dificuldade em
falar de Deus não deriva também muito da inabilidade da própria Igreja em saber
falar disso?
Sim, claro,
temos aí a grande questão pastoral: como é que se fala de Deus hoje? Vamos
encontrando espaços e casas de oração, ambientes de oração, onde é possível
falar de Deus, não só de uma maneira racional e teórica, nem só de uma maneira
intimista muito piedosa, mas verdadeiramente [de uma forma que permite]
reencontrar a relação profunda que nos liberta por dentro, a relação de
tu-a-tu. Porque podemos ficar num liturgismo exagerado ou numa piedadezinha
sentimental que é de curto prazo…
Ou num
activismo…
… num
activismo e nos voluntariados e tal. Mas, de novo, aquilo que nos salva – que é
a relação, o amar e ser amados – pode-se esvaziar rapidamente. Por isso, acho
que esse é o grande desafio da Igreja: como é que hoje se fala, verdadeiramente,
de Deus e do amor.
Ler e ouvir a entrevista aqui
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