Respirar, viver não é apenas agarrar e
libertar o ar, mecanicamente: é existir com, é viver em estado de amor. E, do
mesmo modo, aderir ao mistério é entrar no singular, no afetivo. Deus é
cúmplice da afetividade: omnipotente e frágil; impassível e passível;
transcendente e amoroso; sobrenatural e sensível. A mais louca pretensão cristã
não está do lado das afirmações metafísicas: ela é simplesmente a fé na
ressurreição do corpo.
O amor é o verdadeiro despertador dos
sentidos. As diversas patologias dos sentidos que anteriormente revisitámos
mostram como, quando o amor está ausente, a nossa vitalidade hiberna. Uma das
crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor. A
mística dos sentidos, porém, busca aquela ciência que só se obtém amando.
Amar
significa abrir-se, romper o círculo do isolamento, habitar esse milagre que é
conseguirmos estar plenamente connosco e com o outro. O amor é o degelo.
Constrói-se como forma de hospitalidade (o poeta brasileiro Mário Quintana
escreve que «o amor é quando a gente mora um no outro»), mas pede aos que o
seguem uma desarmada exposição. Os que amam são, de certa maneira, mais
vulneráveis. Não podem fazer de conta. Se apetece cantar na rua, cantam. Se
lhes der para correr e rir debaixo de uma chuvada, fazem-no. Se tiverem
subitamente de dançar em plena rua, iniciam um lento rodopio, sem qualquer
embaraço, escutando uma música aos outros inaudíveis. E o amor expõe-nos também
com maior intensidade aos sofrimentos. Na renovação do interesse e da entrega à
vida que o amor em nós gera tocamos mais frequentemente a sua enigmática
dialética: a sua estupenda vitalidade e a sua letalidade terrível. Mas, como
dizia o romancista António Lobo Antunes, «há só uma maneira de não sofrer: é
não amar». Mas não é o sofrimento inevitável a todo o amor que impede a vida. O
obstáculo é, antes, o seu contrário: a apatia, a distração, o egoísmo, o
cinismo.
José Tolentino Mendonça, in 'A Mística
do Instante'
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