As obras de misericórdia como atos criadores da
família
O que
permite a Sua Santidade o Papa Francisco dizer algo de tão liminar e diamantinamente
importante como «A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia» (Misericordiae
vultus (MV), 10) é saber-se que este ato – divino por excelência – é isso «que
revela o mistério da Santíssima Trindade» (MV, 2). Mudemos um pouco a ordem dos
termos da citação para podermos entender melhor o que aqui está em causa: é a
misericórdia – qualquer seja, pois toda ela é Deus em ato – que nos permite
penetrar o que é penetrável no Mistério da Santíssima Trindade, único mistério
que existe verdadeiramente.
Ora, de esse
mistério, o que está ao nosso alcance é precisamente a misericórdia que se nos
revela através quer da Revelação tradicionalmente entendida quer através dessa
outra revelação divina que é a exata presença da misericórdia na ação humana.
Em que consiste pormenorizadamente todo o restante infinito da Santíssima
Trindade nunca se saberá. Mas que é um infinito e sempre atual ato de
misericórdia, isso sabe-se. Mas isso só se pode perceber o que seja, para além
do mero enunciado verbal, se se souber por experiência própria o que é a
misericórdia, isto é, apenas os que em ato experimentaram a misericórdia, os
misericordiosos, podem saber o que se pode entender por misericórdia divina no
seio da Santíssima Trindade.
E o que é
isso da misericórdia?
É, antes de
mais, um ato. Um ato que põe algo em ser. O primeiro ato de misericórdia é o
ato de absoluta inauguração do mundo, ao ser este criado por Deus. Assim, a
misericórdia é o ato que absolutamente põe a possibilidade de algo, neste caso,
do próprio mundo. É o ato de amor, de caridade por excelência. Pode mesmo
dizer-se que a misericórdia é o amor e a caridade enquanto puros atos: são a
própria atualidade da caridade. Se da caridade pode haver uma conceção
puramente teórica, da misericórdia, apenas uma conceção atualista faz sentido.
Na misericórdia, o conceito e o ato imediatamente recobrem-se.
Nenhum
cristão, se o é mesmo, pode duvidar do amor caritativo de Cristo antes do
momento do cálice. Mas, sem o momento do cálice, tudo seria puramente teórico:
é com a assunção do cálice, como ato de beber o seu conteúdo, que o amor se
transforma num verdadeiro ato de misericórdia.
O mesmo se
diga do sim de Maria ao pedido de Deus para ser Mãe do possível Emmanuel: Maria
amava Deus, mas o ato de misericórdia para com a humanidade, mas também para
com Deus – tal a força deste ato – dá-se com e apenas com o sim dito e
assumido.
Semelhantemente,
José, ao assumir constituir família com Maria e o Emmanuel em adveniência,
opera misericordiosamente.
A mesma misericórdia
se faz sentir quando, poupando ilógicas mediações, Deus chama a si a mesma
Maria que usou de tão bela misericórdia para com ele: cumprindo, deste modo, a
promessa de Cristo ao dizer que o ato nosso de cada dia é, já, a nossa
recompensa. Maria teve como recompensa a misericórdia que pôs na relação com
Deus; Deus teve apenas de deixar que a misericórdia posta por Maria atingisse a
sua plenitude. Assim com toda a misericórdia.
Assim com a
misericórdia divina, sempre perfeita, infinitamente perfeita em ato no seio da
Santíssima Trindade.
É esta
misericórdia que permite, então, dizer ao Papa Francisco que a trave mestra da
vida da Igreja é a misericórdia. Como não o ser?
Deste modo,
a Igreja não é uma coisa histórica, ou física, ou institucional, mas é, antes,
vida e vida que é misericórdia. Só no seio desta e como liturgia a esta vida de
misericórdia faz sentido a sua natureza de coisa também física, também
histórica, também institucional. Apenas esta vida de e em ato de misericórdia é
capaz de fazer da Igreja algo de credível (MV, 10) não apenas junto de crentes
em seu interior, de crentes em seu exterior, e de não crentes, mas, sobretudo,
junto do próprio Deus, que, sendo a plenitude da misericórdia, não tolera a
falta desta, como podemos ver em Job, com os falsos amigos, ou na triste
narrativa de Sodoma e Gomorra, cujo suicídio se deveu à sua absoluta falta de
misericórdia, contemplada e selada por Deus, que não salva através do uso da
violência.
Ora, como
diz o Papa em MV, 9, «o amor nunca poderia ser uma palavra abstrata.». Tal
implica que, para que a misericórdia exista, tenha de haver atos de
misericórdia em nós e connosco como na Santíssima Trindade, sendo que esta é
paradigma, mas, como tal, fim a que tender em aproximação infinita.
É, então, a
realidade concreta da misericórdia o lugar permanente das obras de
misericórdia, corporal e espiritual, isto é, viva, dado que, na vida humana, em
ato, não há distinção senão formal entre os dois âmbitos (sem o espírito, há um
cadáver; sem o corpo, nada, pois nós não somos anjos com corpo). São tais
obras:
1. Dar de
comer aos famintos;
2. Dar de beber aos sedentos;
3. Vestir os nus;
4. Acolher os peregrinos;
5. Dar assistência aos enfermos;
6. Visitar os presos;
7. Enterrar os mortos;
8. Aconselhar os indecisos,
9. Ensinar os ignorantes;
10. Admoestar os pecadores;
11. Consolar os aflitos;
12. Perdoar as ofensas;
13. Suportar com paciência as pessoas molestas;
14. Rezar a Deus pelos vivos e pelos defuntos.
2. Dar de beber aos sedentos;
3. Vestir os nus;
4. Acolher os peregrinos;
5. Dar assistência aos enfermos;
6. Visitar os presos;
7. Enterrar os mortos;
8. Aconselhar os indecisos,
9. Ensinar os ignorantes;
10. Admoestar os pecadores;
11. Consolar os aflitos;
12. Perdoar as ofensas;
13. Suportar com paciência as pessoas molestas;
14. Rezar a Deus pelos vivos e pelos defuntos.
O modelo
destas obras é o próprio Cristo, em cuja vida encontramos atos modelares
correspondentes a todos estes paradigmas, alguns deles de forma literal. Assim,
ser misericordioso é agir segundo a plena realização das ações que estas
catorze padronizações indicam. Se bem entendidas, cobrem todos os tipos
possíveis de atuação possível na e da nossa vida, não apenas como Igreja, mas
estendendo-se a toda a humanidade e definindo, deste modo, o caminho perfeito
para o Reino de Deus ou a Cidade de Deus, cidade da plenitude do bem possível,
designação que cobre não apenas a referência religiosa cristã, mas a humanidade
de sempre.
Podemos
entender, assim, como a misericórdia é não apenas uma «coisa» cristã ou
religiosa, na religião ou no cristianismo se esgotando, mas algo que está no
centro mais profundo da possibilidade da própria humanidade, algo sem o qual a
humanidade não tem futuro possível. A misericórdia, ainda que humanamente
entendida é (como a caridade ou o amor) o único ato que aguenta na perfeição o
crivo laico do famoso imperativo categórico de Kant.
Onde podemos
encontrar em termos cristãos esta misericórdia numa dimensão humana? Há um
modelo humano para tal? Este modelo é universalizável, sem o que a humanidade
está condenada a uma vã efemeridade mais ou menos longa no tempo, mas sempre
demasiado breve?
Pensamos que
sim.
O modelo
perfeito é a Sagrada Família; é um modelo universalizável precisamente em sua
essência e substância de ato de misericórdia; a sua universalização como ato de
misericórdia é o único modo de tornar a humanidade em algo mais do que um vão
sonho de Deus, sonho autodesprezado, autoaniquilado.
Maria, José
e Emmanuel são o paradigma quer da humana família quer da humana misericórdia
porque consubstanciam perfeitamente em sua relação o ato de pleno e indefetível
amor criador de possibilidade de bem em que consiste a misericórdia. Não há
família se não houver obras de misericórdia em ato. A plenitude da família
corresponde à plenitude da realização das obras de misericórdia, quando necessárias.
Não se trata de inventar obras desnecessárias, mas de as cumprir todas quando
necessárias; todas concomitantemente se todas forem necessárias num mesmo
momento.
A perfeita
mãe é quem as cumpre a todas segundo o modo necessário exposto; o mesmo acontece
quer com o perfeito pai quer com o perfeito filho.
É esta
perfeição atual que constitui a família: sem ela não há família; com ela há
sempre família. A naturalidade na e da família reside no ato de misericórdia,
não em qualquer estrutura física ou biológica: não há relação biológica entre
Emmanuel e José, nem por isso José deixa de ser o perfeito pai de Emmanuel e
este o perfeito filho de José.
A família
replica, assim, o ato criador de Deus, que não é um ato físico, embora instaure
a física, mas um ato espiritual, precisamente o ato do dom de misericórdia mais
grandioso que existe e que realiza a transformação do nada de nós no tudo da
nossa possibilidade através do amor criador. A família prolonga esta capacidade
criadora, prolongando também essa outra forma de misericórdia que é a
providência divina, na forma da humana dedicação amorosa, previdente e
providente, possibilitadora da manutenção terrena do ser humano na existência.
É um bem-agir que corresponde à operação ativa de um bem-querer, que é um querer
que o outro seja e seja bem. Ora esta é a ação criadora e providencial de Deus,
dada como possibilidade à criatura humana, isto é, a misericórdia divina dada
como possibilidade de misericórdia humana.
Misericórdia
é, assim, um ato de providência, divina ou humana, que permite que o absoluto
do que é seja. É a mesma definição do amor.
A
misericórdia divina é o sustentáculo de todo o ser criado e a porta aberta para
a salvação de toda a criatura, mormente da humana, que tem apenas de aceitar
beber o doce cálice da misericórdia humana. Uma universal libação com tal
cálice corresponderia à Cidade de Deus, universal família espiritual.
Américo
Pereira
Universidade
Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em
06.11.2015
In
http://www.snpcultura.org/familia_e_misericordia.html
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