1. «LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu
Senhor», cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos
que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a
existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: «Louvado sejas,
meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz
variados frutos com flores coloridas e verduras».[1]
2. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos
por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou.
Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a
saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado,
vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos
seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se
a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm 8,
22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é
constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua
água vivifica-nos e restaura-nos.
Nada deste mundo nos é indiferente
3. Mais de cinquenta anos atrás, quando o mundo
estava oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo Papa João
XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a
guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris a todo o mundo católico,
mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade. Agora, à vista da
deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita
neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da
Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda
pendente. Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos
acerca da nossa casa comum.
4. Oito anos depois da Pacem in terris, em 1971, o Beato Papa Paulo
VI referiu-se à problemática ecológica, apresentando-a como uma
crise que é «consequência dramática» da actividade descontrolada do ser humano:
«Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa
a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação».[2]
E, dirigindo-se à FAO, falou da possibilidade duma «catástrofe ecológica sob o
efeito da explosão da civilização industrial», sublinhando a «necessidade
urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade», porque «os
progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais
assombrosas, o desenvolvimento económico mais prodigioso, se não estiverem
unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o
homem».[3]
5. São João Paulo II debruçou-se, com interesse
sempre maior, sobre este tema. Na sua primeira encíclica, advertiu que o ser
humano parece «não dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural,
para além daqueles que servem somente para os fins de um uso ou consumo
imediatos».[4] Mais tarde, convidou a uma conversão ecológica global.[5]
Entretanto fazia notar o pouco empenho que se põe em «salvaguardar as condições
morais de uma autêntica ecologia humana».[6] A destruição do ambiente
humano é um facto muito grave, porque, por um lado, Deus confiou o mundo ao ser
humano e, por outro, a própria vida humana é um dom que deve ser protegido de
várias formas de degradação. Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer
mudanças profundas «nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo,
nas estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades».[7]
O progresso humano autêntico possui um carácter moral e pressupõe o pleno
respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao mundo natural e
«ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num
sistema ordenado».[8] Assim, a capacidade do ser humano transformar a
realidade deve desenvolver-se com base na doação originária das coisas por
parte de Deus.[9]
6. O meu predecessor, Bento XVI, renovou o convite a «eliminar as
causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de
crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente».[10]
Lembrou que o mundo não pode ser analisado concentrando-se apenas sobre um dos
seus aspectos, porque «o livro da natureza é uno e indivisível», incluindo,
entre outras coisas, o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações
sociais. É que «a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura
que molda a convivência humana».[11] O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o
ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento
irresponsável; o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas,
fundamentalmente, todas elas se ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de
que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a
liberdade humana não tem limites. Esquece-se que «o homem não é apenas uma
liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é
espírito e vontade, mas é também natureza».[12] Com paterna solicitude,
convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida «onde nós mesmos
somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e
onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa
onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos
unicamente a nós mesmos».[13]
Unidos por uma preocupação comum
7. Estas contribuições dos Papas recolhem a
reflexão de inúmeros cientistas, filósofos, teólogos e organizações sociais que
enriqueceram o pensamento da Igreja sobre estas questões. Mas não podemos
ignorar que, também fora da Igreja Católica, noutras Igrejas e Comunidades
cristãs – bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma profunda
preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas que a todos nos estão a
peito. Apenas para dar um exemplo particularmente significativo, quero retomar
brevemente parte da contribuição do amado Patriarca Ecuménico Bartolomeu, com
quem partilhamos a esperança da plena comunhão eclesial.
8. O Patriarca Bartolomeu tem-se referido
particularmente à necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de
maltratar o planeta, porque «todos, na medida em que causamos pequenos danos
ecológicos», somos chamados a reconhecer «a nossa contribuição – pequena ou
grande – para a desfiguração e destruição do ambiente».[14] Sobre este
ponto, ele pronunciou-se repetidamente, de maneira firme e encorajadora,
convidando-nos a reconhecer os pecados contra a criação: «Quando os seres
humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos
comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática,
desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas
húmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar... tudo isso
é pecado».[15] Porque «um crime contra a natureza é um crime contra nós
mesmos e um pecado contra Deus».[16]
9. Ao mesmo tempo Bartolomeu chamou a atenção para
as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos convidam a
encontrar soluções não só na técnica mas também numa mudança do ser humano;
caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas. Propôs-nos passar do
consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de
partilha, numa ascese que «significa aprender a dar, e não simplesmente
renunciar. É um modo de amar, de passar pouco a pouco do que eu quero àquilo de
que o mundo de Deus precisa. É libertação do medo, da avidez, da dependência».[17]
Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como sacramento de
comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo numa escala global.
É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe
da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do
nosso planeta».[18]
São Francisco de Assis
10. Não quero prosseguir esta encíclica sem
invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no
momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por
excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com
alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e
trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos.
Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e
abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o
seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade
e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo
mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza,
a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.
11. O seu testemunho mostra-nos também que uma
ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem
das ciências exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do
ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a
reacção de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos animais,
era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas. Entrava em
comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às flores
«convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão».[19]
A sua reacção ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um
cálculo económico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a
ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que
existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele, «enchendo-se da maior
ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as
criaturas – por mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos e
irmãs».[20] Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo
irracional, pois influi nas opções que determinam o nosso comportamento. Se nos
aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração
e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na
nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do
consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um
limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos
intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a
sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram
simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a
fazer da realidade um mero objecto de uso e domínio.
12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada
Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus
nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade: «Na grandeza e na beleza das
criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador» (Sab 13, 5) e «o que é
invisível n’Ele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à
inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras» (Rm 1, 20). Por isso,
Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por
cultivar para aí crescerem as ervas silvestres, a fim de que, quem as
admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a Deus, autor de tanta beleza.[21]
O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que
contemplamos na alegria e no louvor.
O meu apelo
13. O urgente desafio de proteger a nossa casa
comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um
desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar.
O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se
arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de
colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e
manifestar apreço a quantos, nos mais variados sectores da actividade humana,
estão a trabalhar para garantir a protecção da casa que partilhamos. Uma
especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as
dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do
mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode
pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e
nos sofrimentos dos excluídos.
14. Lanço um convite urgente a renovar o diálogo
sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um
debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas
raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. O movimento
ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo gerado numerosas
agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização. Infelizmente, muitos
esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com
frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse
dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os
crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à
confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade
universal. Como disseram os bispos da África do Sul, «são necessários os
talentos e o envolvimento de todos para reparar o dano causado pelos humanos
sobre a criação de Deus».[22] Todos podemos colaborar, como instrumentos
de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura, experiência,
iniciativas e capacidades.
15. Espero que esta carta encíclica, que se insere
no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e
a beleza do desafio que temos pela frente. Em primeiro lugar, farei uma breve
resenha dos vários aspectos da actual crise ecológica, com o objectivo de
assumir os melhores frutos da pesquisa científica actualmente disponível,
deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso
ético e espiritual seguido. A partir desta panorâmica, retomarei algumas
argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior
coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois procurarei chegar às
raízes da situação actual, de modo a individuar não apenas os seus sintomas,
mas também as causas mais profundas. Poderemos assim propor uma ecologia que,
nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa
neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia. À luz desta
reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes linhas de
diálogo e de acção que envolvem seja cada um de nós seja a política
internacional. Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem
necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei algumas linhas de
maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã.
16. Embora cada capítulo tenha a sua temática
própria e uma metodologia específica, o sucessivo retoma por sua vez, a partir
duma nova perspectiva, questões importantes abordadas nos capítulos anteriores.
Isto diz respeito especialmente a alguns eixos que atravessam a encíclica
inteira. Por exemplo: a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do
planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a
crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o
convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o
valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de
debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional
e local, a cultura do descarte e a proposta dum novo estilo de vida. Estes
temas nunca se dão por encerrados nem se abandonam, mas são constantemente
retomados e enriquecidos.
CAPÍTULO I
O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA
17. As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a
situação da humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem repetida e
vazia, se não forem apresentadas novamente a partir dum confronto com o contexto
actual no que este tem de inédito para a história da humanidade. Por isso,
antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e exigências face ao mundo
de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos brevemente a considerar o que
está a acontecer à nossa casa comum.
18. A contínua aceleração das mudanças na
humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e
trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora a mudança
faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem
as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. A
isto vem juntar-se o problema de que os objectivos desta mudança rápida e
constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um
desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas
torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da
qualidade de vida de grande parte da humanidade.
19. Depois dum tempo de confiança irracional no progresso
e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está a entrar numa etapa de
maior consciencialização. Nota-se uma crescente sensibilidade relativamente ao
meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida
preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta. Façamos uma resenha,
certamente incompleta, das questões que hoje nos causam inquietação e já não se
podem esconder debaixo do tapete. O objectivo não é recolher informações ou
satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar
transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim,
reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.
1. Poluição e mudanças climáticas
Poluição, resíduos e cultura do descarte
20. Existem formas de poluição que afectam
diariamente as pessoas. A exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta
gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, e provocam
milhões de mortes prematuras. Adoecem, por exemplo, por causa da inalação de
elevadas quantidades de fumo produzido pelos combustíveis utilizados para
cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a poluição que afecta a todos,
causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas descargas de
substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos
fertilizantes, insecticidas, fungicidas, pesticidas e agro-tóxicos em geral. Na
realidade a tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos
problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre
as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros.
21. Devemos considerar também a poluição produzida
pelos resíduos, incluindo os perigosos presentes em variados ambientes.
Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos
deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos de
demolições, resíduos clínicos, electrónicos e industriais, resíduos altamente
tóxicos e radioactivos. A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez
mais num imenso depósito de lixo. Em muitos lugares do planeta, os idosos
recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora vêem submersas de lixo.
Tanto os resíduos industriais como os produtos químicos utilizados nas cidades
e nos campos podem produzir um efeito de bioacumulação nos organismos dos
moradores nas áreas limítrofes, que se verifica mesmo quando é baixo o nível de
presença dum elemento tóxico num lugar. Muitas vezes só se adoptam medidas
quando já se produziram efeitos irreversíveis na saúde das pessoas.
22. Estes problemas estão intimamente ligados à
cultura do descarte, que afecta tanto os seres humanos excluídos como as coisas
que se convertem rapidamente em lixo. Note-se, por exemplo, como a maior parte
do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado. Custa-nos a reconhecer que
o funcionamento dos ecossistemas naturais é exemplar: as plantas sintetizam
substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros; estes, por sua vez,
alimentam os carnívoros que fornecem significativas quantidades de resíduos
orgânicos, que dão origem a uma nova geração de vegetais. Ao contrário, o
sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a
capacidade de absorver e reutilizar resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu
adoptar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para
as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos
não-renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu
aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. A resolução desta questão seria
uma maneira de contrastar a cultura do descarte que acaba por danificar o
planeta inteiro, mas nota-se que os progressos neste sentido são ainda muito
escassos.
O clima como bem comum
23. O clima é um bem comum, um bem de todos e para
todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem a ver com muitas
condições essenciais para a vida humana. Há um consenso científico muito
consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do
sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por
uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda
com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa
atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenómeno particular. A
humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos
de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo
menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros
factores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o
ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do
aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases
com efeito de estufa (anidrido carbónico, metano, óxido de azoto, e outros)
emitidos sobretudo por causa da actividade humana. A sua concentração na
atmosfera impede que o calor dos raios solares reflectidos pela terra se dilua
no espaço. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento
baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema
energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização
do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.
24. Por sua vez, o aquecimento influi sobre o
ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação e que
incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a
energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de
parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos
glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás
metano, e a decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda
mais a emissão de anidrido carbónico. Entretanto a perda das florestas
tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A
poluição produzida pelo anidrido carbónico aumenta a acidez dos oceanos e
compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência actual se mantiver, este
século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição
sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por
exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se
se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto
dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras.
25. As mudanças climáticas são um problema global
com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e
políticas, constituindo actualmente um dos principais desafios para a
humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas
décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em
lugares particularmente afectados por fenómenos relacionados com o aquecimento,
e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos
chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais.
Não possuem outras disponibilidades económicas nem outros recursos que lhes
permitam adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações
catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de protecção.
Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e
vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afecta os
recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com
grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o
aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental,
que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais,
carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa.
Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que
estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de
reacções diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do
sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda
toda a sociedade civil.
26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e
poder económico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os
problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns
impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais
efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos actuais de
produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento
de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido
carbónico e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por
exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia
renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis.
Mas ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação.
Entretanto, nalguns países, registaram-se avanços que começam a ser
significativos, embora estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve
também alguns investimentos em modalidades de produção e transporte que
consomem menos energia exigindo menor quantidade de matérias-primas, bem como
em modalidades de construção ou restruturação de edifícios para se melhorar a
sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe de se
tornar omnipresentes.
2. A questão da água
27. Outros indicadores da situação actual têm a
ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a impossibilidade
de sustentar o nível actual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos
sectores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora
atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos de
exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza.
28. A água potável e limpa constitui uma questão
de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para
sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes de água doce
fornecem os sectores sanitários, agro-pecuários e industriais. A disponibilidade
de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas agora, em
muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves consequências
a curto e longo prazo. Grandes cidades, que dependem de importantes reservas
hídricas, sofrem períodos de carência do recurso, que, nos momentos críticos,
nem sempre se administra com uma gestão adequada e com imparcialidade. A
pobreza da água pública verifica-se especialmente na África, onde grandes
sectores da população não têm acesso a água potável segura, ou sofrem secas que
tornam difícil a produção de alimento. Nalguns países, há regiões com
abundância de água, enquanto outras sofrem de grave escassez.
29. Um problema particularmente sério é o da
qualidade da água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas
vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças relacionadas com a água,
incluindo as causadas por microorganismos e substâncias químicas. A diarreia e
a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água inadequados,
constituem um factor significativo de sofrimento e mortalidade infantil. Em
muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida
por algumas actividades extractivas, agrícolas e industriais, sobretudo em
países desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não pensamos
apenas nas descargas provenientes das fábricas; os detergentes e produtos
químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo continuam a ser
derramados em rios, lagos e mares.
30. Enquanto a qualidade da água disponível piora
constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este
recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na
realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial,
fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e,
portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo
tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água
potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade
inalienável. Esta dívida é parcialmente saldada com maiores contribuições
económicas para prover de água limpa e saneamento as populações mais pobres.
Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas
também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto
mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural,
porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de
grande desigualdade.
31. Uma maior escassez de água provocará o aumento
do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns
estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de
poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais
poderiam afectar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o
controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das
principais fontes de conflitos deste século.[23]
3. Perda de biodiversidade
32. Os recursos da terra estão a ser depredados
também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a actividade
comercial e produtiva. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a
perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente
importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e
vários serviços. As diferentes espécies contêm genes que podem ser
recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou regular
algum problema ambiental.
33. Entretanto não basta pensar nas diferentes
espécies apenas como eventuais «recursos» exploráveis, esquecendo que possuem
um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e
animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver,
perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a
ver com alguma actividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não
darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua
própria mensagem. Não temos direito de o fazer.
34. Possivelmente perturba-nos saber da extinção
dum mamífero ou duma ave, pela sua maior visibilidade; mas, para o bom
funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos, as algas, os
vermes, os pequenos insectos, os répteis e a variedade inumerável de
microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam
despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o
equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano deve intervir quando um
geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de intervenção humana numa
realidade tão complexa como a natureza é tal, que os desastres constantes
causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção dele de modo que a
actividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos que isto implica.
Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção humana, para
resolver uma dificuldade, muitas vezes ainda agrava mais a situação. Por
exemplo, muitos pássaros e insectos, que desaparecem por causa dos agro-tóxicos
criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o seu
desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica que
possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às vezes,
admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos
problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de
que este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do
consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e
bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o
desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem
limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza
insuprível e irrecuperável por outra criada por nós.
35. Quando se analisa o impacto ambiental de
qualquer iniciativa económica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo,
na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo cuidadoso do impacto na
biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de grupos animais ou
vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os novos cultivos, as
reservas, as barragens e outras construções vão tomando posse dos habitats e,
por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as populações de animais já não
podem migrar nem mover-se livremente, pelo que algumas espécies correm o risco
de extinção. Existem alternativas que, pelo menos, mitigam o impacto destas
obras, como a criação de corredores biológicos, mas são poucos os países em que
se adverte este cuidado e prevenção. Quando se explora comercialmente algumas
espécies, nem sempre se estuda a sua modalidade de crescimento para evitar a sua
diminuição excessiva e consequente desequilíbrio do ecossistema.
36. O cuidado dos ecossistemas requer uma
perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca
apenas um ganho económico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a
sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é
muitíssimo maior do que o benefício económico que se possa obter. No caso da
perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de valores que excedem todo e
qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas
desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo
pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da
degradação ambiental.
37. Alguns países fizeram progressos na
conservação eficaz de certos lugares e áreas – na terra e nos oceanos –,
proibindo aí toda a intervenção humana que possa modificar a sua fisionomia ou
alterar a sua constituição original. No cuidado da biodiversidade, os especialistas
insistem na necessidade de prestar uma especial atenção às áreas mais ricas em
variedade de espécies, em espécies endémicas, raras ou com menor grau de
efectiva protecção. Há lugares que requerem um cuidado particular pela sua
enorme importância para o ecossistema mundial, ou que constituem significativas
reservas de água assegurando assim outras formas de vida.
38. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do
planeta repletos de biodiversidade que são a Amazónia e a bacia fluvial do
Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes
lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode
ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de
enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando
estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em
poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos
desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares, impõe-se um delicado
equilíbrio, porque não é possível ignorar também os enormes interesses
económicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra
as soberanias nacionais. Com efeito, há «propostas de internacionalização da
Amazónia que só servem aos interesses económicos das corporações
internacionais».[24] É louvável a tarefa de organismos internacionais e
organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de
forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para que
cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio
ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios
interesses locais ou internacionais.
39. Habitualmente também não se faz objecto de
adequada análise a substituição da flora silvestre por áreas florestais com
árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode afectar gravemente uma
biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se implantam.
Também as zonas húmidas, que são transformadas em terrenos agrícolas, perdem a
enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante, nalgumas áreas costeiras, o
desaparecimento dos ecossistemas constituídos por manguezais.
40. Os oceanos contêm não só a maior parte da água
do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos
deles ainda desconhecidos para nós e ameaçados por diversas causas. Além disso,
a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre grande parte da população
mundial, é afectada pela extracção descontrolada dos recursos ictíicos, que
provoca drásticas diminuições dalgumas espécies. E no entanto continuam a
desenvolver-se modalidades selectivas de pesca, que descartam grande parte das
espécies apanhadas. Particularmente ameaçados estão organismos marinhos que não
temos em consideração, como certas formas de plâncton que constituem um
componente muito importante da cadeia alimentar marinha e de que dependem, em
última instância, espécies que se utilizam para a alimentação humana.
41. Passando aos mares tropicais e subtropicais,
encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes florestas da terra
firme, porque abrigam cerca de um milhão de espécies, incluindo peixes,
caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos dos recifes de
coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo de declínio:
«Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos
despojados de vida e de cor?»[25] Este fenómeno deve-se, em grande
parte, à poluição que chega ao mar resultante do desflorestamento, das
monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de métodos de pesca
destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo
aumento da temperatura dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a compreender como
qualquer acção sobre a natureza pode ter consequências que não advertimos à
primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se obtêm à custa
duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos.
42. É preciso investir muito mais na pesquisa para
se entender melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as
diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do meio
ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido
com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados,
precisamos uns dos outros. Cada território detém uma parte de responsabilidade
no cuidado desta família, pelo que deve fazer um inventário cuidadoso das
espécies que alberga a fim de desenvolver programas e estratégias de protecção,
cuidando com particular solicitude das espécies em vias de extinção.
4. Deterioração da qualidade de vida humana e
degradação social
43. Tendo em conta que o ser humano também é uma
criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui
uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da
degradação ambiental, do modelo actual de desenvolvimento e da cultura do
descarte sobre a vida das pessoas.
44. Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento
desmedido e descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis
para viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas mas também
ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição visiva e acústica.
Muitas cidades são grandes estruturas que não funcionam, gastando energia e
água em excesso. Há bairros que, embora construídos recentemente, apresentam-se
congestionados e desordenados, sem espaços verdes suficientes. Não é
conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de
cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contacto físico com a natureza.
45. Nalguns lugares, rurais e urbanos, a
privatização dos espaços tornou difícil o acesso dos cidadãos a áreas de
especial beleza; noutros, criaram-se áreas residenciais «ecológicas» postas à
disposição só de poucos, procurando-se evitar que outros entrem a perturbar uma
tranquilidade artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e cheia de
espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas «seguras», mas não em áreas menos
visíveis, onde vivem os descartados da sociedade.
46. Entre os componentes sociais da mudança
global, incluem-se os efeitos laborais dalgumas inovações tecnológicas, a
exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo da energia e doutros
serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o aparecimento de
novas formas de agressividade social, o narcotráfico e o consumo crescente de
drogas entre os mais jovens, a perda de identidade. São alguns sinais, entre
outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois séculos não significou,
em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso integral e uma melhoria da
qualidade de vida. Alguns destes sinais são ao mesmo tempo sintomas duma
verdadeira degradação social, duma silenciosa ruptura dos vínculos de
integração e comunhão social.
47. A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos
mass-media e do mundo digital, que, quando se tornam omnipresentes, não
favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em
profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do
passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído
dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se
traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa
deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da
reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire
com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam
por saturar e confundir. Ao mesmo tempo tendem a substituir as relações reais
com os outros, com todos os desafios que implicam, por um tipo de comunicação
mediada pela internet. Isto permite seleccionar ou eliminar a nosso arbítrio as
relações e, deste modo, frequentemente gera-se um novo tipo de emoções
artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as
pessoas e a natureza. Os meios actuais permitem-nos comunicar e partilhar
conhecimentos e afectos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar contacto
directo com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade
da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o facto de, a
par da oferta sufocante destes produtos, ir crescendo uma profunda e
melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento.
5. Desigualdade planetária
48. O ambiente humano e o ambiente natural
degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação
ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação
humana e social. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade
afectam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a experiência comum
da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos
mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais
pobres».[26] Por exemplo, o esgotamento das reservas ictíicas prejudica
especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira
de a substituir, a poluição da água afecta particularmente os mais pobres que
não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do
mar afecta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para
onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios actuais manifesta-se também na
morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos
e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas
mundiais.[27]
49. Gostaria de assinalar que muitas vezes falta
uma consciência clara dos problemas que afectam particularmente os excluídos.
Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são
mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas com
frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma
questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não
são considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação
concreta, permanecem frequentemente no último lugar. Isto deve-se, em parte, ao
facto de que muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação
e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas,
sem ter contacto directo com os seus problemas. Vivem e reflectem a partir da
comodidade dum desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao alcance
da maioria da população mundial. Esta falta de contacto físico e de encontro,
às vezes favorecida pela fragmentação das nossas cidades, ajuda a cauterizar a
consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas. Isto, às
vezes, coexiste com um discurso «verde». Mas, hoje, não podemos deixar de
reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem
social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para
ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.
50. Em vez de resolver os problemas dos pobres e
pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da
natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países em vias de
desenvolvimento, que condicionam as ajudas económicas a determinadas políticas
de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual distribuição da
população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao
uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é
plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário».[28]
Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e selectivo de
alguns é uma forma de não enfrentar os problemas. Pretende-se, assim, legitimar
o modelo distributivo actual, no qual uma minoria se julga com o direito de
consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não
poderia sequer conter os resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se
desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e «a comida que
se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre».[29] Em todo o
caso, é verdade que devemos prestar atenção ao desequilíbrio na distribuição da
população pelo território, tanto a nível nacional como a nível mundial, porque
o aumento do consumo levaria a situações regionais complexas pelas combinações
de problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de
resíduos, à perda de recursos, à qualidade de vida.
51. A desigualdade não afecta apenas os indivíduos
mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais.
Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o Norte
e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito
ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efectuado
historicamente por alguns países. As exportações de algumas matérias-primas
para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais,
como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extracção minerária do ouro
ou com o dióxido de enxofre na do cobre. De modo especial é preciso calcular o
espaço ambiental de todo o planeta usado para depositar resíduos gasosos que se
foram acumulando ao longo de dois séculos e criaram uma situação que agora
afecta todos os países do mundo. O aquecimento causado pelo enorme consumo de
alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente
na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos
desastrosos no rendimento das cultivações. A isto acrescentam-se os danos
causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países
em vias de desenvolvimento e pela actividade poluente de empresas que fazem nos
países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o
capital: «Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são
multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países
desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas
actividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o
desemprego, aldeias sem vida, esgotamento dalgumas reservas naturais,
desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras,
colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode
sustentar».[30]
52. A dívida externa dos países pobres
transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida
ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde se
encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a alimentar o
progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro. A
terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o acesso à propriedade
de bens e recursos para satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por
um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso. É
necessário que os países desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida,
limitando significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo
recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de
desenvolvimento sustentável. As regiões e os países mais pobres têm menos
possibilidade de adoptar novos modelos de redução do impacto ambiental, porque
não têm a preparação para desenvolver os processos necessários nem podem cobrir
os seus custos. Por isso, deve-se manter claramente a consciência de que a
mudança climática tem responsabilidades diversificadas e, como disseram os
bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente sobre as
necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado
pelos interesses mais poderosos».[31] É preciso revigorar a consciência
de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras
políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há
espaço para a globalização da indiferença.
6. A fraqueza das reacções
53. Estas situações provocam os gemidos da irmã
terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que
reclama de nós outro rumo. Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como
nos últimos dois séculos. Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos de
Deus Pai para que o nosso planeta seja o que Ele sonhou ao criá-lo e
corresponda ao seu projecto de paz, beleza e plenitude. O problema é que não
dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há necessidade
de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às
necessidades das gerações actuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações
futuras. Torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua limites
invioláveis e assegure a protecção dos ecossistemas, antes que as novas formas
de poder derivadas do paradigma tecno-económico acabem por arrasá-los não só
com a política, mas também com a liberdade e a justiça.
54. Preocupa a fraqueza da reacção política
internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na
falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses
particulares e, com muita facilidade, o interesse económico chega a prevalecer
sobre o bem comum e manipular a informação para não ver afectados os seus
projectos. Nesta linha, o Documento de Aparecida pede que, «nas intervenções
sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos económicos
que arrasam irracionalmente as fontes da vida».[32] A aliança entre
economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos
seus interesses imediatos. Deste modo, poder-se-á esperar apenas algumas
proclamações superficiais, acções filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar
sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer
tentativa das organizações sociais para alterar as coisas será vista como um
distúrbio provocado por sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar.
55. Pouco a pouco alguns países podem mostrar
progressos significativos, o desenvolvimento de controles mais eficientes e uma
luta mais sincera contra a corrupção. Cresceu a sensibilidade ecológica das
populações, mas é ainda insuficiente para mudar os hábitos nocivos de consumo,
que não parecem diminuir; antes, expandem-se e desenvolvem-se. É o que acontece
– só para dar um exemplo simples – com o crescente aumento do uso e intensidade
dos condicionadores de ar: os mercados, apostando num ganho imediato, estimulam
ainda mais a procura. Se alguém observasse de fora a sociedade planetária,
maravilhar-se-ia com tal comportamento que às vezes parece suicida.
56. Entretanto os poderes económicos continuam a
justificar o sistema mundial actual, onde predomina uma especulação e uma busca
de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre
a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como estão
intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética.
Muitos dirão que não têm consciência de realizar acções imorais, porque a
constante distracção nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo
limitado e finito. Por isso, hoje, «qualquer realidade que seja frágil, como o
meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta».[33]
57. É previsível que, perante o esgotamento de
alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras,
disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao
meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se
pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, «não obstante
haver acordos internacionais que proíbem a guerra química, bacteriológica e
biológica, subsiste o facto de continuarem nos laboratórios as pesquisas para o
desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios
naturais».[34] Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e
resolver as causas que podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder,
ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal esforço, e os
projectos políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizonte. Para que se
quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de
intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?
58. Nalguns países, há exemplos positivos de
resultados na melhoria do ambiente, tais como o saneamento de alguns rios que
foram poluídos durante muitas décadas, a recuperação de florestas nativas, o
embelezamento de paisagens com obras de saneamento ambiental, projectos de
edifícios de grande valor estético, progressos na produção de energia limpa, na
melhoria dos transportes públicos. Estas acções não resolvem os problemas
globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma
positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam
inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo.
59. Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial
ou aparente que consolida um certo torpor e uma alegre irresponsabilidade. Como
frequentemente acontece em épocas de crises profundas, que exigem decisões
corajosas, somos tentados a pensar que aquilo que está a acontecer não é
verdade. Se nos detivermos na superfície, para além de alguns sinais visíveis
de poluição e degradação, parece que as coisas não estejam assim tão graves e
que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições actuais.
Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida,
de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar
todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer,
adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido.
7. Diversidade de opiniões
60. Finalmente reconhecemos, a propósito da
situação e das possíveis soluções, que se desenvolveram diferentes perspectivas
e linhas de pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito
do progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente
com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo.
No extremo oposto, outros pensam que o ser humano, com qualquer uma das suas
intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que
convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de
intervenção. Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis
cenários futuros, porque não existe só um caminho de solução. Isto deixaria
espaço para uma variedade de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim
de se chegar a respostas abrangentes.
61. Sobre muitas questões concretas, a Igreja não
tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende que deve escutar e
promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de
opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade, para ver que há uma
grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos a reconhecer
que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer
alguma coisa para resolver os problemas. Todavia parece notar-se sintomas dum
ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação,
que se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises
sociais ou mesmo financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se podem
analisar nem explicar de forma isolada. Há regiões que já se encontram
particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o
certo é que o actual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos
de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da acção humana: «Se o
olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a
humanidade frustrou a expectativa divina».[35]
CAPÍTULO II
O EVANGELHO DA CRIAÇÃO
62. Por que motivo incluir, neste documento
dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capítulo referido às convicções
de fé? Não ignoro que alguns, no campo da política e do pensamento, rejeitam
decididamente a ideia de um Criador ou consideram-na irrelevante, chegando ao
ponto de relegar para o reino do irracional a riqueza que as religiões possam
oferecer para uma ecologia integral e o pleno desenvolvimento do género humano;
outras vezes, supõe-se que elas constituam uma subcultura, que se deve
simplesmente tolerar. Todavia a ciência e a religião, que fornecem diferentes
abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para
ambas.
1. A luz que a fé oferece
63. Se tivermos presente a complexidade da crise
ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não
podem vir duma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É
necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à
poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade,
construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído,
então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser
transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria. Além
disso, a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o pensamento filosófico, o
que lhe permite produzir várias sínteses entre fé e razão. No que diz respeito
às questões sociais, pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento da
doutrina social da Igreja, chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos
novos desafios.
64. Por outro lado, embora esta encíclica se abra
a um diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de libertação, quero
mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em
parte, também a outros crentes – motivações altas para cuidar da natureza e dos
irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo simples facto de ser humanas, as pessoas
se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem parte, «os cristãos, em
particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em
relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua fé».[36] Por isso é
bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os
compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções.
2. A sabedoria das narrações bíblicas
65. Sem repropor aqui toda a teologia da Criação,
queremos saber o que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre a relação do
ser humano com o mundo. Na primeira narração da obra criadora, no livro do
Génesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da criação do
homem e da mulher, diz-se que «Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa»
(Gn 1, 31). A Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta afirmação mostra-nos a imensa
dignidade de cada pessoa humana, que «não é somente alguma coisa, mas alguém. É
capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão
com outras pessoas».[37] São João Paulo II recordou que o amor muito
especial que o Criador tem por cada ser humano «confere-lhe uma dignidade
infinita».[38] Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade
das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para tal
compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se
perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que
se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós: «Antes de te
haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jr 1, 5). Fomos concebidos
no coração de Deus e, por isso, «cada um de nós é o fruto de um pensamento de
Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário».[39]
66. As narrações da criação no livro do Génesis
contêm, na sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos profundos sobre a
existência humana e a sua realidade histórica. Estas narrações sugerem que a
existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente
ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia,
estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro
de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e
toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus,
recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este facto distorceu também
a natureza do mandato de «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e
guardar» (cf. Gn 2, 15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa
entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19).
Por isso, é significativo que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com
todas as criaturas tenha sido interpretada como uma sanação daquela ruptura.
Dizia São Boaventura que, através da reconciliação universal com todas as
criaturas, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original.[40]
Longe deste modelo, o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de
destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono
dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza.
67. Não somos Deus. A terra existe antes de nós e
foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o pensamento
judaico-cristão: foi dito que a narração do Génesis, que convida a «dominar» a
terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a exploração selvagem da natureza,
apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não
é uma interpretação correcta da Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade
que nós, cristãos, algumas vezes interpretámos de forma incorrecta as
Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do facto de ser criados à
imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto
sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto,
com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a «cultivar e guardar» o
jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). Enquanto «cultivar» quer dizer lavrar ou
trabalhar um terreno, «guardar» significa proteger, cuidar, preservar, velar.
Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a
natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que
necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e
garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras. Em última
análise, «ao Senhor pertence a terra» (Sl 24/23, 1), a Ele pertence «a terra e
tudo o que nela existe» (Dt 10, 14). Por isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão
de posse absoluta: «Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra
pertence-Me, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25, 23).
68. Esta responsabilidade perante uma terra que é
de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da
natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo, porque «Ele deu
uma ordem e tudo foi criado; Ele fixou tudo pelos séculos sem fim e estabeleceu
leis a que não se pode fugir!» (Sl 148, 5b-6). Consequentemente, a legislação
bíblica detém-se a propor ao ser humano várias normas relativas não só às
outras pessoas, mas também aos restantes seres vivos: «Se vires o jumento do
teu irmão ou o seu boi caídos no caminho, não te desvies deles, mas ajuda-os a
levantarem-se. (...) Se encontrares no caminho, em cima de uma árvore ou no
chão, um ninho de pássaros com filhotes, ou ovos cobertos pela mãe, não
apanharás a mãe com a ninhada» (Dt 22, 4.6). Nesta linha, o descanso do sétimo
dia não é proposto só para o ser humano, mas «para que descansem o teu boi e o
teu jumento» (Ex 23, 12). Assim nos damos conta de que a Bíblia não dá lugar a
um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas.
69. Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso
responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos
têm um valor próprio diante de Deus e, «pelo simples facto de existirem, eles O
bendizem e Lhe dão glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em suas
obras» (Sl 104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e por ser dotado
de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis
internas, já que «o Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3, 19). Hoje, a
Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas estão totalmente
subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e
fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos
da Alemanha – que, nas outras criaturas, «se poderia falar da prioridade do ser
sobre o ser úteis».[42] O Catecismo põe em questão, de forma muito
directa e insistente, um antropocentrismo desordenado: «Cada criatura possui a
sua bondade e perfeição próprias. (...) As diferentes criaturas, queridas pelo
seu próprio ser, reflectem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e
da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade
própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas».[43]
70. Na narração de Caim e Abel, vemos que a inveja
levou Caim a cometer a injustiça extrema contra o seu irmão. Isto, por sua vez,
provocou uma ruptura da relação entre Caim e Deus e entre Caim e a terra, da
qual foi exilado. Esta passagem aparece sintetizada no dramático colóquio de
Deus com Caim. Deus pergunta: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim responde que
não sabe, e Deus insiste com ele: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão
clama da terra até Mim. De futuro, serás amaldiçoado pela terra (…). Serás
vagabundo e fugitivo sobre a terra» (Gn 4, 9-12). O descuido no compromisso de
cultivar e manter um correcto relacionamento com o próximo, relativamente a
quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento
interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra. Quando todas
estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra,
a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo. Assim no-lo ensina a narração
de Noé, quando Deus ameaça acabar com a humanidade pela sua persistente
incapacidade de viver à altura das exigências da justiça e da paz: «O fim de
toda a humanidade chegou diante de Mim, pois ela encheu a terra de violência»
(Gn 6, 13). Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já
estava contida a convicção actual de que tudo está inter-relacionado e o
cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é
inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros.
71. Embora Deus reconhecesse que «a maldade dos
homens era grande na terra» (Gn 6, 5), «arrependendo-Se de ter criado o homem
sobre a terra» (Gn 6, 6), Ele decidiu abrir um caminho de salvação através de
Noé, que ainda se mantinha íntegro e justo. Assim deu à humanidade a
possibilidade de um novo início. Basta um homem bom para haver esperança! A
tradição bíblica estabelece claramente que esta reabilitação implica a
redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador.
Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia, Deus
descansou de todas as suas obras. Deus ordenou a Israel que cada sétimo dia
devia ser celebrado como um dia de descanso, um Shabbath (cf. Gn 2, 2-3; Ex 16,
23; 20, 10). Além disso, de sete em sete anos, instaurou-se também um ano
sabático para Israel e a sua terra (cf. Lv 25, 1-4), durante o qual se dava
descanso completo à terra, não se semeava e só se colhia o indispensável para
sobreviver e oferecer hospitalidade (cf. Lv 25, 4-6). Por fim, passadas sete
semanas de anos, ou seja quarenta e nove anos, celebrava-se o jubileu, um ano
de perdão universal, «proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a
habitam» (Lv 25, 10). O desenvolvimento desta legislação procurou assegurar o
equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os outros e com a terra
onde vivia e trabalhava. Mas, ao mesmo tempo, era um reconhecimento de que a
dádiva da terra com os seus frutos pertence a todo o povo. Aqueles que
cultivavam e guardavam o território deviam partilhar os seus frutos,
especialmente com os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros: «Quando
procederes à ceifa das vossas terras, não ceifarás as espigas até à extremidade
do campo, e não apanharás as espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha,
e não apanharás os bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o
estrangeiro» (Lv 19, 9-10).
72. Os Salmos convidam, frequentemente, o ser
humano a louvar a Deus criador: «Estendeu a terra sobre as águas, porque o seu
amor é eterno» (Sl 136/135, 6). E convidam também as outras criaturas a
louvá-Lo: «Louvai-O, sol e lua; louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas
dos céus e águas que estais acima dos céus! Louvem todos o nome do Senhor,
porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado» (Sl 148, 3-5). Existimos não só
pelo poder de Deus, mas também na sua presença e companhia. Por isso O
adoramos.
73. Os escritos dos profetas convidam a recuperar
forças, nos momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que criou o
universo. O poder infinito de Deus não nos leva a escapar da sua ternura
paterna, porque n’Ele se conjugam o carinho e a força. Na verdade, toda a sã
espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com
confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na Bíblia, o Deus que liberta e
salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de agir divino estão
íntima e inseparavelmente ligados: «Ah! Senhor Deus, foste Tu que fizeste o céu
e a terra com o teu grande poder e o teu braço estendido! Para Ti, nada é
impossível! (...) Tu fizeste sair do Egipto o teu povo, Israel, com prodígios e
milagres» (Jr 32, 17.21). «O Senhor é um Deus eterno, que criou os confins da
terra. Não se cansa nem perde as forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá
forças ao cansado e enche de vigor o fraco» (Is 40, 28b-29).
74. A experiência do cativeiro em Babilónia gerou
uma crise espiritual que levou a um aprofundamento da fé em Deus, explicitando
a sua omnipotência criadora, para animar o povo a recuperar a esperança no meio
da sua situação infeliz. Séculos mais tarde, noutro momento de prova e
perseguição, quando o Império Romano procurou impor um domínio absoluto, os
fiéis voltaram a encontrar consolação e esperança aumentando a sua confiança em
Deus omnipotente, e cantavam: «Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor
Deus todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos!» (Ap 15, 3). Se
Deus pôde criar o universo a partir do nada, também pode intervir neste mundo e
vencer qualquer forma de mal. Por isso, a injustiça não é invencível.
75. Não podemos defender uma espiritualidade que
esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros
poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão
de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de
colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador
absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do
mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade
as suas próprias leis e interesses.
3. O mistério do universo
76. Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é
mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projecto do amor de Deus,
onde cada criatura tem um valor e um significado. A natureza entende-se
habitualmente como um sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação
só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como
uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal.
77. «A palavra do Senhor criou os céus» (Sl 33/32,
6). Deste modo indica-se que o mundo procede, não do caos nem do acaso, mas
duma decisão, o que o exalta ainda mais. Há uma opção livre, expressa na
palavra criadora. O universo não apareceu como resultado duma omnipotência
arbitrária, duma demonstração de força ou dum desejo de auto-afirmação. A
criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão fundamental de toda
a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste;
pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11, 24). Então cada
criatura é objecto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a
vida efémera do ser mais insignificante é objecto do seu amor e, naqueles
poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho. Dizia São
Basílio Magno que o Criador é também «a bondade sem cálculos»,[44] e
Dante Alighieri falava do «amor que move o sol e as outras estrelas».[45]
Por isso, das obras criadas pode-se subir «à sua amorosa misericórdia».[46]
78. Ao mesmo tempo, o pensamento judaico-cristão
desmitificou a natureza. Sem deixar de a admirar pelo seu esplendor e
imensidão, já não lhe atribui um carácter divino. Deste modo, ressalta ainda
mais o nosso compromisso para com ela. Um regresso à natureza não pode ser
feito à custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é parte do
mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e
desenvolver as suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a fragilidade
da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades que o Criador nos deu, isto
permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um
mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo,
interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar,
cultivar e limitar o nosso poder.
79. Neste universo, composto por sistemas abertos
que entram em comunicação uns com os outros, podemos descobrir inumeráveis
formas de relação e participação. Isto leva-nos também a pensar o todo como aberto
à transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé permite-nos
interpretar o significado e a beleza misteriosa do que acontece. A liberdade
humana pode prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução positiva,
como pode também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento e
verdadeiros atrasos. Isto dá lugar à apaixonante e dramática história humana,
capaz de transformar-se num desabrochamento de libertação, engrandecimento,
salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua
destruição. Por isso a Igreja, com a sua acção, procura não só lembrar o dever
de cuidar da natureza, mas também e «sobretudo proteger o homem da destruição
de si mesmo».[47]
80. Apesar disso, Deus, que deseja actuar connosco
e contar com a nossa cooperação, é capaz também de tirar algo de bom dos males
que praticamos, porque «o Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria
da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas
mais complexas e impenetráveis».[48] De certa maneira, quis limitar-Se a
Si mesmo, criando um mundo necessitado de desenvolvimento, onde muitas coisas
que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem
parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador.[49]
Ele está presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da
sua criatura, e isto dá lugar também à legítima autonomia das realidades
terrenas.[50] Esta presença divina, que garante a permanência e o
desenvolvimento de cada ser, «é a continuação da acção criadora».[51] O
Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do
próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo: «A natureza nada
mais é do que a razão de certa arte – concretamente a arte divina – inscrita
nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado. Como
se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de
se mover a si mesma para tomar a forma da nave».[52]
81. Embora suponha também processos evolutivos, o
ser humano implica uma novidade que não se explica cabalmente pela evolução
doutros sistemas abertos. Cada um de nós tem em si uma identidade pessoal,
capaz de entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus. A capacidade de
reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a elaboração artística
e outras capacidades originais manifestam uma singularidade que transcende o
âmbito físico e biológico. A novidade qualitativa, implicada no aparecimento
dum ser pessoal dentro do universo material, pressupõe uma acção directa de
Deus, uma chamada peculiar à vida e à relação de um Tu com outro tu. A partir
dos textos bíblicos, consideramos o ser humano como sujeito, que nunca pode ser
reduzido à categoria de objecto.
82. Mas seria errado também pensar que os outros
seres vivos devam ser considerados como meros objectos submetidos ao domínio
arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente
como objecto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também
para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte favoreceu
imensas desigualdades, injustiças e violências para a maior parte da
humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou
de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. O ideal de harmonia, justiça,
fraternidade e paz que Jesus propõe situa-se nos antípodas de tal modelo, como
Ele mesmo Se expressou ao compará-lo com os poderes do seu tempo: «Sabeis que
os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem
sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre
vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20, 25-26).
83. A meta do caminho do universo situa-se na
plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da
maturação universal.[53] E assim juntamos mais um argumento para
rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre
as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas
todas avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta comum, que é
Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e
ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela
plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as criaturas ao seu Criador.
4. A mensagem de cada criatura na harmonia de toda
a criação
84. O facto de insistir na afirmação de que o ser
humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem
uma função e nenhuma é supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do
amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas:
tudo é carícia de Deus. A história da própria amizade com Deus desenrola-se
sempre num espaço geográfico que se torna um sinal muito pessoal, e cada um de
nós guarda na memória lugares cuja lembrança nos faz muito bem. Quem cresceu no
meio de montes, quem na infância se sentava junto do riacho a beber, ou quem
jogava numa praça do seu bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado
a recuperar a sua própria identidade.
85. Deus escreveu um livro estupendo, «cujas
letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo».[54]
E justamente afirmaram os bispos do Canadá que nenhuma criatura fica fora desta
manifestação de Deus: «Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais
frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e reverência. Trata-se
duma contínua revelação do divino».[55]Os bispos do Japão, por sua vez,
disseram algo muito sugestivo: «Sentir cada criatura que canta o hino da sua
existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na esperança».[56]
Esta contemplação da criação permite-nos descobrir qualquer ensinamento que
Deus nos quer transmitir através de cada coisa, porque, «para o crente,
contemplar a criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma voz
paradoxal e silenciosa».[57] Podemos afirmar que, «ao lado da revelação
propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina
no despontar do sol e no cair da noite».[58] Prestando atenção a esta
manifestação, o ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as
outras criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha
sacralidade decifrando a do mundo».[59]
86. O conjunto do universo, com as suas múltiplas
relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. São Tomás de Aquino
sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade «provêm da intenção
do primeiro agente», o Qual quis que «o que falta a cada coisa, para
representar a bondade divina, seja suprido pelas outras»,[60] pois a sua
bondade «não pode ser convenientemente representada por uma só criatura».[61]
Por isso, precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas
relações.[62] Assim, compreende-se melhor a importância e o significado
de qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus. Tal é o
ensinamento do Catecismo: «A interdependência das criaturas é querida por Deus.
O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espectáculo das
suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se
basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se
completarem mutuamente no serviço umas das outras».[63]
87. Quando nos damos conta do reflexo de Deus em
tudo o que existe, o coração experimenta o desejo de adorar o Senhor por todas
as suas criaturas e juntamente com elas, como se vê neste gracioso cântico de
São Francisco de Assis:
«Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64]
88. Os bispos do Brasil sublinharam que toda a
natureza, além de manifestar Deus, é lugar da sua presença. Em cada criatura,
habita o seu Espírito vivificante, que nos chama a um relacionamento com Ele.[65]
A descoberta desta presença estimula em nós o desenvolvimento das «virtudes
ecológicas».[66] Mas, quando dizemos isto, não esqueçamos que há também
uma distância infinita, pois as coisas deste mundo não possuem a plenitude de
Deus. Esquecê-lo, aliás, também não faria bem às criaturas, porque não
reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio, acabando por lhes exigir
indevidamente aquilo que, na sua pequenez, não nos podem dar.
5. Uma comunhão universal
89. As criaturas deste mundo não podem ser
consideradas um bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas a vida» (Sab
11, 26). Isto gera a convicção de que nós e todos os seres do universo, sendo
criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma
espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito
sagrado, amoroso e humilde. Quero lembrar que «Deus uniu-nos tão estreitamente
ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para
cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma
mutilação».[67]
90. Isto não significa igualar todos os seres
vivos e tirar ao ser humano aquele seu valor peculiar que, simultaneamente,
implica uma tremenda responsabilidade. Também não requer uma divinização da
terra, que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e proteger a sua
fragilidade. Estas concepções acabariam por criar novos desequilíbrios, na
tentativa de fugir da realidade que nos interpela.[68] Às vezes nota-se
a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma
luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de defender igual
dignidade entre os seres humanos. Devemos, certamente, ter a preocupação de que
os outros seres vivos não sejam tratados de forma irresponsável, mas deveriam
indignar-nos sobretudo as enormes desigualdades que existem entre nós, porque
continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos
de notar que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades
reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer que fazer ao que têm,
ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível
de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na
prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros,
como se tivessem nascido com maiores direitos.
91. Não pode ser autêntico um sentimento de união
íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração
ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência
de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica
completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos
pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta. Isto compromete o
sentido da luta pelo meio ambiente. Não é por acaso que São Francisco, no
cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o seguinte: «Louvado sejas,
meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por
isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos
seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade.
92. Além disso, quando o coração está
verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído
desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença ou a crueldade
com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por
repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração
é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a
manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra
qualquer criatura «é contrário à dignidade humana».[69] Não podemos
considerar-nos grandes amantes da realidade, se excluímos dos nossos interesses
alguma parte dela: «Paz, justiça e conservação da criação são três questões
absolutamente ligadas, que não se poderão separar, tratando-as individualmente
sob pena de cair novamente no reducionismo».[70] Tudo está relacionado,
e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa
peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das
suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã
lua, ao irmão rio e à mãe terra.
6. O destino comum dos bens
93. Hoje, crentes e não-crentes estão de acordo
que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar
a todos. Para os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao Criador,
porque Deus criou o mundo para todos. Por conseguinte, toda a abordagem
ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos
fundamentais dos mais desfavorecidos. O princípio da subordinação da
propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o
direito universal ao seu uso é uma «regra de ouro» do comportamento social e o
«primeiro princípio de toda a ordem ético-social».[71] A tradição cristã
nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e
salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. São João Paulo II lembrou esta doutrina, com
grande ênfase, dizendo que «Deus deu a terra a todo o género humano, para que
ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém».[72]
São palavras densas e fortes. Insistiu que «não seria verdadeiramente digno do
homem, um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e promovesse os direitos
humanos, pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das
nações e dos povos».[73]Com grande clareza, explicou que «a Igreja
defende, sim, o legítimo direito à propriedade privada, mas ensina, com não
menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca
social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu».[74]
Por isso, afirma que «não é segundo o desígnio de Deus gerir este dom de modo
tal que os seus benefícios aproveitem só a alguns poucos».[75] Isto põe
seriamente em discussão os hábitos injustos duma parte da humanidade.[76]
94. O rico e o pobre têm igual dignidade, porque
«quem os fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2); «Ele criou o pequeno e o grande»
(Sab 6, 7) e «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus» (Mt 5, 45).
Isto tem consequências práticas, como explicitaram os bispos do Paraguai: «Cada
camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa
estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de
segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu
exercício não seja ilusório mas real. Isto significa que, além do título de
propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos,
seguros e acesso ao mercado».[77]
95. O meio ambiente é um bem colectivo, património
de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é
apenas para a administrar em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos
na consciência o peso de negar a existência aos outros. Por isso, os bispos da
Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o mandamento «não
matarás», quando «uns vinte por cento da população mundial consomem recursos
numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de
que necessitam para sobreviver».[78]
7. O olhar de Jesus
96. Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e
destaca um dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt 11, 25). Em colóquio com os
seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a relação paterna que Deus tem
com todas as criaturas e recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma
delas era importante aos olhos d’Ele: «Não se vendem cinco pássaros por duas
pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc
12, 6). «Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros;
e o vosso Pai celeste alimenta-as» (Mt 6, 26).
97. O Senhor podia convidar os outros a estar
atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em contacto
permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e
admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se a
contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a
individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: «Levantai os olhos e vede os
campos que estão doirados para a ceifa» (Jo 4, 35). «O Reino dos Céus é
semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a
menor de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do
horto e transforma-se numa árvore» (Mt 13, 31-32).
98. Jesus vivia em plena harmonia com a criação,
com grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar
obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava como um asceta separado do mundo ou
inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo, declarou: «Veio o
Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um glutão e bebedor de
vinho”» (Mt 11, 19). Encontrava-Se longe das filosofias que desprezavam o
corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história,
estes dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores
cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos, entrando
diariamente em contacto com matéria criada por Deus para a moldar com a sua
capacidade de artesão. É digno de nota que a maior parte da sua existência
terrena tenha sido consagrada a esta tarefa, levando uma vida simples que não despertava
maravilha alguma: «Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria?» (Mc 6, 3). Assim
santificou o trabalho, atribuindo-lhe um valor peculiar para o nosso
amadurecimento. São João Paulo II ensinava que, «suportando o
que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem
colabora, de alguma forma, com o Filho de Deus na redenção da humanidade».[79]
99. Segundo a compreensão cristã da realidade, o
destino da criação inteira passa pelo mistério de Cristo, que nela está
presente desde a origem: «Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele» (Cl
1, 16).[80] O prólogo do Evangelho de João (1, 1-18) mostra a actividade
criadora de Cristo como Palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende
ao afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo 1, 14). Uma Pessoa da Santíssima
Trindade inseriu-Se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até
à cruz. Desde o início do mundo, mas de modo peculiar a partir da encarnação, o
mistério de Cristo opera veladamente no conjunto da realidade natural, sem com
isso afectar a sua autonomia.
100. O Novo Testamento não nos fala só de Jesus
terreno e da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo; mostra-no-Lo
também como ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação com o seu
domínio universal. «Foi n’Ele que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude
e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto as que estão na
terra como as que estão no céu» (Cl 1, 19-20). Isto lança-nos para o fim dos
tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as coisas «a fim de que Deus seja
tudo em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, as criaturas deste mundo já não nos
aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve
misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do
campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora
estão cheias da sua presença luminosa.
CAPÍTULO III
A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA
101. Para nada serviria descrever os sintomas, se
não reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo desordenado de
conceber a vida e a acção do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto
de a arruinar. Não poderemos deter-nos a pensar nisto mesmo? Proponho, pois,
que nos concentremos no paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa
nele o ser humano e a sua acção no mundo.
1. A tecnologia: criatividade e poder
102. A humanidade entrou numa nova era, em que o
poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos herdeiros de dois
séculos de ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a ferrovia, o
telégrafo, a electricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a
medicina moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a
robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É justo que nos alegremos com
estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos abrem
estas novidades incessantes, porque «a ciência e a tecnologia são um produto
estupendo da criatividade humana que Deus nos deu».[81] A transformação
da natureza para fins úteis é uma característica do género humano, desde os
seus primórdios; e assim a técnica «exprime a tensão do ânimo humano para uma
gradual superação de certos condicionamentos materiais».[82] A
tecnologia deu remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano.
Não podemos deixar de apreciar e agradecer os progressos alcançados
especialmente na medicina, engenharia e comunicações. Como não havemos de
reconhecer todos os esforços de tantos cientistas e técnicos que elaboraram
alternativas para um desenvolvimento sustentável?
103. A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas
realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os
objectos de uso doméstico até aos grandes meios de transporte, pontes,
edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir coisas belas e fazer o
ser humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para o âmbito da beleza.
Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns arranha-céus? Há obras
pictóricas e musicais de valor, obtidas com o recurso aos novos instrumentos
técnicos. Assim, no desejo de beleza do artífice e em quem contempla esta
beleza dá-se o salto para uma certa plenitude propriamente humana.
104. Não podemos, porém, ignorar que a energia
nuclear, a biotecnologia, a informática, o conhecimento do nosso próprio DNA e
outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder tremendo. Ou melhor:
dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder económico para o
desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do género humano e do
mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada
garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a
fazer. Basta lembrar as bombas atómicas lançadas em pleno século XX, bem como a
grande exibição de tecnologia ostentada pelo nazismo, o comunismo e outros
regimes totalitários e que serviu para o extermínio de milhões de pessoas, sem
esquecer que hoje a guerra dispõe de instrumentos cada vez mais mortíferos. Nas
mãos de quem está e pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente arriscado
que resida numa pequena parte da humanidade.
105. Tende-se a crer que «toda a aquisição de
poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de
bem-estar, de força vital, de plenitude de valores»[83], como se a
realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da
tecnologia e da economia. A verdade é que «o homem moderno não foi educado para
o recto uso do poder»,[84] porque o imenso crescimento tecnológico não
foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade,
aos valores, à consciência. Cada época tende a desenvolver uma reduzida
autoconsciência dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a
humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e
«cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder»
quando «não existem normas de liberdade, mas apenas pretensas necessidades de
utilidade e segurança».[85] O ser humano não é plenamente autónomo. A
sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das
necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele
está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter
os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais,
mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma
espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum
lúcido domínio de si.
2. A globalização do paradigma tecnocrático
106. Mas o problema fundamental é outro e ainda
mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu
desenvolvimento juntamente com um paradigma homogéneo e unidimensional. Neste
paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo
lógico-racional, compreende e assim se apropria do objecto que se encontra
fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua
experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e
transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe
totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do
ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de
acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas;
tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que
estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das
coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade
própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de
se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente
à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os
economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da
disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até ao
limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que «existe uma
quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua
regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações
da ordem natural podem ser facilmente absorvidos».[86]
107. Assim podemos afirmar que, na origem de
muitas dificuldades do mundo actual, está principalmente a tendência, nem
sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objectivos da tecnociência
segundo um paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o
funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a toda a
realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio ambiente, mas
isto é apenas um sinal do reducionismo que afecta a vida humana e a sociedade
em todas as suas dimensões. É preciso reconhecer que os produtos da técnica não
são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de
vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de
determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente
instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se
pretende desenvolver.
108. Não se consegue pensar que seja possível
sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero
instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é
muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os
seus recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se anticultural a
escolha dum estilo de vida, cujos objectivos possam ser, pelo menos em parte,
independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e
massificador. Com efeito, a técnica tem tendência a fazer com que nada fique
fora da sua lógica férrea, e «o homem que é o seu protagonista sabe que, em
última análise, não se trata de utilidade nem de bem-estar, mas de domínio;
domínio no sentido extremo da palavra».[87] Por isso, «procura controlar
os elementos da natureza e, conjuntamente, os da existência humana».[88]
Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço
para a criatividade alternativa dos indivíduos.
109. O paradigma tecnocrático tende a exercer o
seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o
desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais
consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia real.
Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, muito lentamente, se
aprende a lição do deterioramento ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a
economia actual e a tecnologia resolverão todos os problemas ambientais, do
mesmo modo que se afirma, com linguagens não académicas, que os problemas da
fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do
mercado. Não é uma questão de teorias económicas, que hoje talvez já ninguém se
atreva a defender, mas da sua instalação no desenvolvimento concreto da
economia. Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os factos,
quando parece não preocupar-se com o justo nível da produção, uma melhor
distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio ambiente ou os direitos
das gerações futuras. Com os seus comportamentos, afirmam que é suficiente o
objectivo da maximização dos ganhos. Mas o mercado, por si mesmo, não garante o
desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.[89] Entretanto
temos um «superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo
inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora»,[90]
mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições económicas e
programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos
recursos básicos. Não temos suficiente consciência de quais sejam as raízes
mais profundas dos desequilíbrios actuais: estes têm a ver com a orientação, os
fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico e económico.
110. A especialização própria da tecnologia
comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto. A
fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações
concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das
relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se
torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos adequados para resolver
os problemas mais complexos do mundo actual, sobretudo os do meio ambiente e
dos pobres, que não se podem enfrentar a partir duma única perspectiva nem dum
único tipo de interesses. Uma ciência, que pretenda oferecer soluções para os
grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o
conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética
social. Mas este é actualmente um procedimento difícil de seguir. Por isso
também não se consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de referência.
A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica,
entendida como o recurso principal para interpretar a existência. Na realidade
concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que mostram o erro, tais
como a degradação ambiental, a ansiedade, a perda do sentido da vida e da
convivência social. Assim se demonstra uma vez mais que «a realidade é superior
à ideia».[91]
111. A cultura ecológica não se pode reduzir a uma
série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à
volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da
poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um
programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham
resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as
melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica
globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que
aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os
problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial.
112. Todavia é possível voltar a ampliar o olhar,
e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao
serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais
integral. De facto verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático nalgumas
ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de pequenos produtores optam por
sistemas de produção menos poluentes, defendendo um modelo não-consumista de
vida, alegria e convivência. Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente
resolver os problemas concretos dos outros, com o compromisso de os ajudar a
viver com mais dignidade e menor sofrimento. E ainda quando a busca criadora do
belo e a sua contemplação conseguem superar o poder objectivador numa espécie
de salvação que acontece na beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade
autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar no meio da
civilização tecnológica de forma quase imperceptível, como a neblina que filtra
por baixo da porta fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de tudo,
desbrocha como uma obstinada resistência daquilo que é autêntico?
113. Além disso, as pessoas parecem já não
acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a partir das
condições actuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que
o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e
da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro feliz são
outros. Apesar disso, também não se imaginam renunciando às possibilidades que
oferece a tecnologia. A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de
constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa
única direcção. Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da
vida. Se a arquitectura reflecte o espírito duma época, as mega-estruturas e as
casas em série expressam o espírito da técnica globalizada, onde a permanente
novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isto
nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário,
apenas legitimaremos o estado de facto e precisaremos de mais sucedâneos para
suportar o vazio.
114. O que está a acontecer põe-nos perante a
urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. A ciência e a tecnologia
não são neutrais, mas podem, desde o início até ao fim dum processo, envolver
diferentes intenções e possibilidades que se podem configurar de várias
maneiras. Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável
abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher os avanços
positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes
objectivos arrasados por um desenfreamento megalómano.
3. Crise do antropocentrismo moderno e suas
consequências
115. O antropocentrismo moderno acabou,
paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser
humano «já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente.
Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objectivamente, como espaço e matéria onde
realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que
possa suceder a ela».[92] Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo.
Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a
si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade. «Não só a terra foi
dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de
bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus,
devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi dotado».[93]
116. Nos tempos modernos, verificou-se um notável
excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a
referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais.
Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção à realidade com os limites
que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade dum
desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma apresentação
inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da
relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho
prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado
da natureza fosse actividade de fracos. Mas a interpretação correcta do
conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de
administrador responsável.[94]
117. A falta de preocupação por medir os danos à
natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do
desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas
próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a
importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para
dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria
natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da
realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua
existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na
obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a
revolta da natureza».[95]
118. Esta situação leva-nos a uma esquizofrenia
permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que não reconhece aos
outros seres um valor próprio, até à reacção de negar qualquer valor peculiar
ao ser humano. Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não haverá uma
nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada
antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre
outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico, «corre o risco
de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade».[96] Um
antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um
«biocentrismo», porque isto implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não
só não resolverá os problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se pode
exigir do ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se
reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade,
liberdade e responsabilidade.
119. A crítica do antropocentrismo desordenado não
deveria deixar em segundo plano também o valor das relações entre as pessoas.
Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise
ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a
nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações
humanas fundamentais. Quando o pensamento cristão reivindica, para o ser
humano, um valor peculiar acima das outras criaturas, suscita a valorização de
cada pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento do outro. A abertura a
um «tu» capaz de conhecer, amar e dialogar continua a ser a grande nobreza da
pessoa humana. Por isso, para uma relação adequada com o mundo criado, não é
necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão
transcendente, a sua abertura ao «Tu» divino. Com efeito, não se pode propor
uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com
Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um
confinamento asfixiante na imanência.
120. Uma vez que tudo está relacionado, também não
é compatível a defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece
viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e
que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá protecção a um embrião
humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e dificuldades: «Se se
perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham
também outras formas de acolhimento úteis à vida social».[97]
121. Espera-se ainda o desenvolvimento duma nova
síntese, que ultrapasse as falsas dialécticas dos últimos séculos. O próprio
cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao tesouro de verdade que
recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e reformular em diálogo com
as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a sua eterna
novidade.[98]
O relativismo prático
122. Um antropocentrismo desordenado gera um
estilo de vida desordenado. Na exortação apostólica Evangelii gaudium, referi-me ao relativismo
prático que caracteriza a nossa época e que é «ainda mais perigoso que o
doutrinal».[99] Quando o ser humano se coloca no centro, acaba por dar
prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e tudo o mais se torna
relativo. Por isso, não deveria surpreender que, juntamente com a omnipresença
do paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem limites, se
desenvolva nos indivíduos este relativismo no qual tudo o que não serve os
próprios interesses imediatos se torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que
permite compreender como se alimentam mutuamente diferentes atitudes, que
provocam ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação social.
123. A cultura do relativismo é a mesma patologia
que impele uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto,
obrigando-a a trabalhos forçados, ou reduzindo-a à escravidão por causa duma
dívida. É a mesma lógica que leva à exploração sexual das crianças, ou ao
abandono dos idosos que não servem os interesses próprios. É também a lógica
interna daqueles que dizem: «Deixemos que as forças invisíveis do mercado
regulem a economia, porque os seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são
danos inevitáveis». Se não há verdades objectivas nem princípios estáveis, fora
da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites
pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o
narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em
vias de extinção? Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra de
órgãos dos pobres com a finalidade de os vender ou utilizar para
experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao desejo de
seus pais? É a mesma lógica do «usa e joga fora» que produz tantos resíduos, só
pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade.
Portanto, não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam
suficientes para evitar os comportamentos que afectam o meio ambiente, porque,
quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade
objectiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão
entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar.
A necessidade de defender o trabalho
124. Em qualquer abordagem de ecologia integral
que não exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor do trabalho, tão
sabiamente desenvolvido por São João Paulo II na sua encíclica Laborem excercens. Recordemos que, segundo
a narração bíblica da criação, Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado
(cf. Gn2, 15), não só para cuidar do existente (guardar), mas também para
trabalhar nele a fim de que produzisse frutos (cultivar). Assim, os operários e
os artesãos «asseguram uma criação perpétua» (Sir 38, 34). Na realidade, a
intervenção humana que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma
mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se como instrumento de Deus
para ajudar a fazer desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas
coisas: «O Senhor produziu da terra os medicamentos; e o homem sensato não os
desprezará» (Sir 38, 4).
125. Se procurarmos pensar quais possam ser as
relações adequadas do ser humano com o mundo que o rodeia, surge a necessidade
duma concepção correcta do trabalho, porque, falando da relação do ser humano
com as coisas, impõe-se-nos a questão relativa ao sentido e finalidade da acção
humana sobre a realidade. Não falamos apenas do trabalho manual ou do trabalho
da terra, mas de qualquer actividade que implique alguma transformação do
existente, desde a elaboração dum balanço social até ao projecto dum progresso
tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma concepção sobre a relação
que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo. A
espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que
encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma rica e sadia
compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato
Carlos de Foucauld e seus discípulos.
126. Algo se pode recolher também da longa
tradição monástica. Nos primórdios, esta favorecia de certo modo a fuga do
mundo, procurando afastar-se da decadência urbana. Por isso, os monges buscavam
o deserto, convencidos de que fosse o lugar adequado para reconhecer a presença
de Deus. Mais tarde, São Bento de Núrsia quis que os seus monges vivessem em
comunidade, unindo oração e estudo com o trabalho manual («Ora et labora»).
Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido espiritual revelou-se
revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a santificação na
compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta maneira de viver o
trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio ambiente,
impregnando de sadia sobriedade a nossa relação com o mundo.
127. Afirmamos que «o homem é o protagonista, o
centro e o fim de toda a vida económico-social».[100] Apesar disso,
quando no ser humano se deteriora a capacidade de contemplar e respeitar,
criam-se as condições para se desfigurar o sentido do trabalho.[101]
Convém recordar sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio, ser o
agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento
espiritual».[102] O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme
desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a
criatividade, a projectação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a
exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração.
Por isso, a realidade social do munda actual exige que, acima dos limitados
interesses das empresas e duma discutível racionalidade económica, «se continue
a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos».[103]
128. Somos chamados ao trabalho desde a nossa
criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez
mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si
mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra,
é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste
sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio provisório
para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre
consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a orientação da economia
favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos
de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos
por máquinas. É mais um exemplo de como a acção do homem se pode voltar contra
si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho «tem também um impacto negativo
no plano económico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é,
daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das
regras, indispensável em qualquer convivência civil».[104] Em suma, «os
custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas
acarretam sempre também custos humanos».[105]Renunciar a investir nas
pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a
sociedade.
129. Para se conseguir continuar a dar emprego, é
indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a
criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de sistemas
alimentares rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior parte da
população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e
produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer
na caça e recolha de produtos silvestres, quer na pesca artesanal. As economias
de larga escala, especialmente no sector agrícola, acabam por forçar os
pequenos agricultores a vender as suas terras ou a abandonar as suas culturas
tradicionais. As tentativas feitas por alguns deles no sentido de desenvolverem
outras formas de produção, mais diversificadas, resultam inúteis por causa da
dificuldade de ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque a
infra-estrutura de venda e transporte está ao serviço das grandes empresas. As
autoridades têm o direito e a responsabilidade de adoptar medidas de apoio
claro e firme aos pequenos produtores e à diversificação da produção. Às vezes,
para que haja uma liberdade económica da qual todos realmente beneficiem, pode
ser necessário pôr limites àqueles que detêm maiores recursos e poder
financeiro. A simples proclamação da liberdade económica, enquanto as condições
reaisimpedem que muitos possam efectivamente ter acesso a ela e, ao mesmo
tempo, se reduz o acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que
desonra a política. A actividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada
para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito
fecunda de promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se
pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço
ao bem comum.
A inovação biológica a partir da pesquisa
130. Na visão filosófica e teológica do ser humano
e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a
peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um factor externo que deva
ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no
mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre
os animais só são legítimas «desde que não ultrapassem os limites do razoável e
contribuam para curar ou poupar vidas humanas».[106] Recorda, com
firmeza, que o poder humano tem limites e que «é contrário à dignidade humana
fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas
vidas».[107] Todo o uso e experimentação «exige um respeito religioso
pela integridade da criação».[108]
131. Quero recolher aqui a posição equilibrada de
São João Paulo II, pondo em destaque os
benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que «manifestam quanto é
nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na acção criadora
de Deus», mas ao mesmo tempo recordava que «toda e qualquer intervenção numa
área determinada do ecossistema não pode prescindir da consideração das suas
consequências noutras áreas».[109] Afirmava que a Igreja aprecia a
contribuição «do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por
outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura
e na indústria»,[110] embora dissesse também que isto não deve levar a
uma «indiscriminada manipulação genética»[111] que ignore os efeitos
negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se
não se pode proibir a um artista que exprima a sua capacidade criativa, também
não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para o progresso científico
e tecnológico, cujas capacidades foram dadas por Deus para o serviço dos
outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar os objectivos, os
efeitos, o contexto e os limites éticos de tal actividade humana que é uma
forma de poder com grandes riscos.
132. Neste quadro, deveria situar-se toda e qualquer
reflexão acerca da intervenção humana sobre o mundo vegetal e animal que
implique hoje mutações genéticas geradas pela biotecnologia, a fim de
aproveitar as possibilidades presentes na realidade material. O respeito da fé
pela razão pede para se prestar atenção àquilo que a própria ciência biológica,
desenvolvida independentemente dos interesses económicos, possa ensinar a
propósito das estruturas biológicas e das suas possibilidades e mutações. Em
todo o caso, é legítima uma intervenção que actue sobre a natureza «para a
ajudar a desenvolver-se na sua própria linha, a da criação, querida por Deus».[112]
133. É difícil emitir um juízo geral sobre o
desenvolvimento de organismos modificados geneticamente (OMG), vegetais ou
animais, para fins medicinais ou agro-pecuários, porque podem ser muito
diferentes entre si e requerer distintas considerações. Além disso, os riscos
nem sempre se devem atribuir à própria técnica, mas à sua aplicação inadequada
ou excessiva. Na realidade, muitas vezes as mutações genéticas foram e
continuam a ser produzidas pela própria natureza. E mesmo as provocadas pelo
ser humano não são um fenómeno moderno. A domesticação de animais, o cruzamento
de espécies e outras práticas antigas e universalmente seguidas podem
incluir-se nestas considerações. É oportuno recordar que o início dos
progressos científicos sobre cereais transgénicos foi a observação de bactérias
que, de forma natural e espontânea, produziam uma modificação no genoma dum
vegetal. Mas, na natureza, estes processos têm um ritmo lento, que não se
compara com a velocidade imposta pelos avanços tecnológicos actuais, mesmo
quando estes avanços se baseiam num desenvolvimento científico de vários
séculos.
134. Embora não disponhamos de provas definitivas
acerca do dano que poderiam causar os cereais transgénicos aos seres humanos e
apesar de, nalgumas regiões, a sua utilização ter produzido um crescimento
económico que contribuiu para resolver determinados problemas, há dificuldades
importantes que não devem ser minimizadas. Em muitos lugares, na sequência da
introdução destas culturas, constata-se uma concentração de terras produtivas
nas mãos de poucos, devido ao «progressivo desaparecimento de pequenos
produtores, que, em consequência da perda das terras cultivadas, se viram
obrigados a retirar-se da produção directa».[113] Os mais frágeis deles
tornam-se trabalhadores precários, e muitos assalariados agrícolas acabam por
emigrar para miseráveis aglomerados das cidades. A expansão destas culturas
destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a diversidade na produção e
afecta o presente ou o futuro das economias regionais. Em vários países,
nota-se uma tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de
sementes e outros produtos necessários para o cultivo, e a dependência
agrava-se quando se pensa na produção de sementes estéreis que acabam por
obrigar os agricultores a comprá-las às empresas produtoras.
135. Sem dúvida, há necessidade duma atenção
constante, que tenha em consideração todos os aspectos éticos implicados. Para
isso, é preciso assegurar um debate científico e social que seja responsável e
amplo, capaz de considerar toda a informação disponível e chamar as coisas pelo
seu nome. Às vezes não se coloca sobre a mesa a informação completa, mas é seleccionada
de acordo com os próprios interesses, sejam eles políticos, económicos ou
ideológicos. Isto torna difícil elaborar um juízo equilibrado e prudente sobre
as várias questões, tendo presente todas as variáveis em jogo. É necessário
dispor de espaços de debate, onde todos aqueles que poderiam de algum modo
ver-se, directa ou indirectamente, afectados (agricultores, consumidores,
autoridades, cientistas, produtores de sementes, populações vizinhas dos campos
tratados e outros) tenham possibilidade de expor as suas problemáticas ou ter
acesso a uma informação ampla e fidedigna para adoptar decisões tendentes ao
bem comum presente e futuro. A questão dos OMG é uma questão de carácter
complexo, que requer ser abordada com um olhar abrangente de todos os aspectos;
isto exigiria pelo menos um maior esforço para financiar distintas linhas de
pesquisa autónoma e interdisciplinar que possam trazer nova luz.
136. Além disso, é preocupante constatar que
alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio ambiente e, com
razão, reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas
não aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes justifica-se
que se ultrapassem todos os limites, quando se faz experiências com embriões
humanos vivos. Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é independente
do seu grau de desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os grandes
princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática. Como vimos
neste capítulo, a técnica separada da ética dificilmente será capaz de
autolimitar o seu poder.
CAPÍTULO IV
UMA ECOLOGIA INTEGRAL
137. Dado que tudo está intimamente relacionado e
que os problemas actuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos
da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a reflectir sobre os
diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões
humanas e sociais.
1. Ecologia ambiental, económica e social
138. A ecologia estuda as relações entre os
organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige sentar-se
a pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma
sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento,
produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo
e o espaço não são independentes entre si; nem os próprios átomos ou as
partículas subatómicas se podem considerar separadamente. Assim como os vários
componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos – estão relacionados entre
si, assim também as espécies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de
individuar e compreender. Boa parte da nossa informação genética é partilhada
com muitos seres vivos. Por isso, os conhecimentos fragmentários e isolados
podem tornar-se uma forma de ignorância, quando resistem a integrar-se numa
visão mais ampla da realidade.
139. Quando falamos de «meio ambiente», fazemos
referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a
sociedade que a habita. Isto impede-nos de considerar a natureza como algo
separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela,
somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se
contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia,
do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a
amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e
independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções
integrais que considerem as interacções dos sistemas naturais entre si e com os
sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social;
mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As directrizes para a solução
requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade
aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza.
140. Devido à quantidade e variedade de elementos
a ter em conta na hora de determinar o impacto ambiental dum empreendimento
concreto, torna-se indispensável dar aos pesquisadores um papel preponderante e
facilitar a sua interacção com uma ampla liberdade académica. Esta pesquisa
constante deveria permitir reconhecer também como as diferentes criaturas se
relacionam, formando aquelas unidades maiores que hoje chamamos «ecossistemas».
Temo-los em conta não só para determinar qual é o seu uso razoável, mas também
porque possuem um valor intrínseco, independente de tal uso. Assim como cada
organismo é bom e admirável em si mesmo pelo facto de ser uma criatura de Deus,
o mesmo se pode dizer do conjunto harmónico de organismos num determinado
espaço, funcionando como um sistema. Embora não tenhamos consciência disso,
dependemos desse conjunto para a nossa própria existência. Convém recordar que
os ecossistemas intervêm na retenção do anidrido carbónico, na purificação da
água, na contraposição a doenças e pragas, na composição do solo, na
decomposição dos resíduos, e muitíssimos outros serviços que esquecemos ou
ignoramos. Quando se dão conta disto, muitas pessoas voltam a tomar consciência
de que vivemos e agimos a partir duma realidade que nos foi previamente dada,
que é anterior às nossas capacidades e à nossa existência. Por isso, quando se
fala de «uso sustentável», é preciso incluir sempre uma consideração sobre a
capacidade regenerativa de cada ecossistema nos seus diversos sectores e
aspectos.
141. Além disso, o crescimento económico tende a
gerar automatismos e a homogeneizar, a fim de simplificar os processos e
reduzir os custos. Por isso, é necessária uma ecologia económica, capaz de
induzir a considerar a realidade de forma mais ampla. Com efeito, «a protecção
do meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo de
desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente».[114] Mas, ao
mesmo tempo, torna-se actual a necessidade imperiosa do humanismo, que faz
apelo aos distintos saberes, incluindo o económico, para uma visão mais
integral e integradora. Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável
da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação
de cada pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com
os outros e com o meio ambiente. Há uma interacção entre os ecossistemas e
entre os diferentes mundos de referência social e, assim, se demonstra mais uma
vez que «o todo é superior à parte».[115]
142. Se tudo está relacionado, também o estado de
saúde das instituições duma sociedade tem consequências no ambiente e na
qualidade de vida humana: «toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica
provoca danos ambientais».[116] Neste sentido, a ecologia social é
necessariamente institucional e progressivamente alcança as diferentes
dimensões, que vão desde o grupo social primário, a família, até à vida
internacional, passando pela comunidade local e a nação. Dentro de cada um dos
níveis sociais e entre eles, desenvolvem-se as instituições que regulam as
relações humanas. Tudo o que as danifica comporta efeitos nocivos, como a perda
da liberdade, a injustiça e a violência. Vários países são governados por um
sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo e para benefício
daqueles que lucram com este estado de coisas. Tanto dentro da administração do
Estado, como nas diferentes expressões da sociedade civil, ou nas relações dos
habitantes entre si, registam-se, com demasiada frequência, comportamentos
ilegais. As leis podem estar redigidas de forma correcta, mas muitas vezes
permanecem letra morta. Poder-se-á, assim, esperar que a legislação e as
normativas relativas ao meio ambiente sejam realmente eficazes? Sabemos, por
exemplo, que países dotados duma legislação clara sobre a protecção das
florestas continuam a ser testemunhas mudas da sua frequente violação. Além
disso, o que acontece numa região influi, directa ou indirectamente, nas outras
regiões. Assim, por exemplo, o consumo de drogas nas sociedades opulentas
provoca uma constante ou crescente procura de produtos que provêm de regiões
empobrecidas, onde se corrompem comportamentos, se destroem vidas e se acaba
por degradar o meio ambiente.
2. Ecologia cultural
143. A par do património natural, encontra-se
igualmente ameaçado um património histórico, artístico e cultural. Faz parte da
identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade
habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais
ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a
história, a cultura e a arquitectura dum lugar, salvaguardando a sua identidade
original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais
da humanidade, no seu sentido mais amplo. Mais directamente, pede que se preste
atenção às culturas locais, quando se analisam questões relacionadas com o meio
ambiente, fazendo dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem
popular. É a cultura – entendida não só como os monumentos do passado, mas
especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode
excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente.
144. A visão consumista do ser humano, incentivada
pelos mecanismos da economia globalizada actual, tende a homogeneizar as
culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da
humanidade. Por isso, pretender resolver todas as dificuldades através de
normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a negligenciar a
complexidade das problemáticas locais, que requerem a participação activa dos
habitantes. Os novos processos em gestação nem sempre se podem integrar dentro
de modelos estabelecidos do exterior, mas hão-de ser provenientes da própria
cultura local. Assim como a vida e o mundo são dinâmicos, assim também o
cuidado do mundo deve ser flexível e dinâmico. As soluções meramente técnicas
correm o risco de tomar em consideração sintomas que não correspondem às problemáticas
mais profundas. É preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das
culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento dum grupo
social supõe um processo histórico no âmbito dum contexto cultural e requer
constantemente o protagonismo dos actores sociais locais a partir da sua
própria cultura. Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve
ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo
humano.
145. Muitas formas de intensa exploração e
degradação do meio ambiente podem esgotar não só os meios locais de
subsistência, mas também os recursos sociais que consentiram um modo de viver
que sustentou, durante longo tempo, uma identidade cultural e um sentido da
existência e da convivência social. O desaparecimento duma cultura pode ser
tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou vegetal. A
imposição dum estilo hegemónico de vida ligado a um modo de produção pode ser
tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.
146. Neste sentido, é indispensável prestar uma
atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não
são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais
interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projectos que
afectam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem económico,
mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço
sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus
valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os
cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objecto de pressões para que
abandonem suas terras e as deixem livres para projectos extractivos e
agro-pecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.
3. Ecologia da vida quotidiana
147. Para se poder falar de autêntico progresso,
será preciso verificar que se produza uma melhoria global na qualidade de vida
humana; isto implica analisar o espaço onde as pessoas transcorrem a sua
existência. Os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa maneira de ver a
vida, sentir e agir. Ao mesmo tempo, no nosso quarto, na nossa casa, no nosso
lugar de trabalho e no nosso bairro, usamos o ambiente para exprimir a nossa
identidade. Esforçamo-nos por nos adaptar ao ambiente e, quando este aparece
desordenado, caótico ou cheio de poluição visiva e acústica, o excesso de
estímulos põe à prova as nossas tentativas de desenvolver uma identidade
integrada e feliz.
148. Admirável é a criatividade e generosidade de
pessoas e grupos que são capazes de dar a volta às limitações do ambiente,
modificando os efeitos adversos dos condicionalismos e aprendendo a orientar a
sua existência no meio da desordem e precariedade. Por exemplo, nalguns lugares
onde as fachadas dos edifícios estão muito deterioradas, há pessoas que cuidam
com muita dignidade o interior das suas habitações, ou que se sentem bem pela
cordialidade e amizade das pessoas. A vida social positiva e benfazeja dos
habitantes enche de luz um ambiente à primeira vista inabitável. É louvável a
ecologia humana que os pobres conseguem desenvolver, no meio de tantas
limitações. A sensação de sufocamento, produzida pelos aglomerados residenciais
e pelos espaços com alta densidade populacional, é contrastada se se
desenvolvem calorosas relações humanas de vizinhança, se se criam comunidades,
se as limitações ambientais são compensadas na interioridade de cada pessoa que
se sente inserida numa rede de comunhão e pertença. Deste modo, qualquer lugar
deixa de ser um inferno e torna-se o contexto duma vida digna.
149. Inversamente está provado que a penúria
extrema vivida nalguns ambientes privados de harmonia, magnanimidade e
possibilidade de integração, facilita o aparecimento de comportamentos
desumanos e a manipulação das pessoas por organizações criminosas. Para os
habitantes de bairros periféricos muito precários, a experiência diária de
passar da superlotação ao anonimato social, que se vive nas grandes cidades,
pode provocar uma sensação de desenraizamento que favorece comportamentos
anti-sociais e violência. Todavia tenho a peito reiterar que o amor é mais
forte. Muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença
e convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária, onde
se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo. Esta experiência
de salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reacções criativas para
melhorar um edifício ou um bairro.[117]
150. Dada a relação entre os espaços urbanizados e
o comportamento humano, aqueles que projectam edifícios, bairros, espaços
públicos e cidades precisam da contribuição dos vários saberes que permitem
compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas. Não é
suficiente a busca da beleza no projecto, porque tem ainda mais valor servir
outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o
ambiente, o encontro e ajuda mútua. Por isso também, é tão importante que o
ponto de vista dos habitantes do lugar contribua sempre para a análise da
planificação urbanista.
151. É preciso cuidar dos espaços comuns, dos
marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o nosso sentido de
pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso sentimento de «estar em
casa» dentro da cidade que nos envolve e une. É importante que as diferentes
partes duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes possam ter uma
visão de conjunto em vez de se encerrarem num bairro, renunciando a viver a
cidade inteira como um espaço próprio partilhado com os outros. Toda a
intervenção na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os diferentes
elementos do lugar formam um todo, sentido pelos habitantes como um contexto
coerente com a sua riqueza de significados. Assim, os outros deixam de ser
estranhos e podemos senti-los como parte de um «nós» que construímos juntos.
Pela mesma razão, tanto no meio urbano como no rural, convém preservar alguns
espaços onde se evitem intervenções humanas que os alterem constantemente.
152. A falta de habitação é grave em muitas partes
do mundo, tanto nas áreas rurais como nas grandes cidades, nomeadamente porque
os orçamentos estatais em geral cobrem apenas uma pequena parte da procura. E
não só os pobres, mas uma grande parte da sociedade encontra sérias
dificuldades para ter uma casa própria. A propriedade da casa tem muita
importância para a dignidade das pessoas e o desenvolvimento das famílias.
Trata-se duma questão central da ecologia humana. Se num lugar concreto já se
desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias, trata-se primariamente
de urbanizar estes bairros, não de erradicar e expulsar os habitantes. Mas,
quando os pobres vivem em subúrbios poluídos ou aglomerados perigosos, «no caso
de ter de se proceder à sua deslocação, para não acrescentar mais sofrimento ao
que já padecem, é necessário fornecer-lhes uma adequada e prévia informação,
oferecer-lhes alternativas de alojamentos dignos e envolver directamente os
interessados».[118] Ao mesmo tempo, a criatividade deveria levar à
integração dos bairros precários numa cidade acolhedora: «Como são belas as
cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes,
fazendo desta integração um novo factor de progresso! Como são encantadoras as
cidades que, já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de espaços que
unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!»[119]
153. Nas cidades, a qualidade de vida está
largamente relacionada com os transportes, que muitas vezes são causa de
grandes tribulações para os habitantes. Nelas, circulam muitos carros
utilizados por uma ou duas pessoas, pelo que o tráfico torna-se intenso,
eleva-se o nível de poluição, consomem-se enormes quantidades de energia
não-renovável e torna-se necessário a construção de mais estradas e parques de
estacionamento que prejudicam o tecido urbano. Muitos especialistas estão de
acordo sobre a necessidade de dar prioridade ao transporte público. Mas é
difícil que algumas medidas consideradas necessárias sejam pacificamente
acolhidas pela sociedade, sem uma melhoria substancial do referido transporte,
que, em muitas cidades, comporta um tratamento indigno das pessoas devido à
superlotação, ao desconforto, ou à reduzida frequência dos serviços e à
insegurança.
154. O reconhecimento da dignidade peculiar do ser
humano contrasta frequentemente com a vida caótica que têm de fazer as pessoas
nas nossas cidades. Mas isto não deveria levar a esquecer o estado de abandono
e desleixo que sofrem também alguns habitantes das áreas rurais, onde não chegam
os serviços essenciais e há trabalhadores reduzidos a situações de escravidão,
sem direitos nem expectativas duma vida mais dignificante.
155. A ecologia humana implica também algo de
muito profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais
dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral
inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia que existe uma «ecologia do
homem», porque «também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não
pode manipular como lhe apetece».[120] Nesta linha, é preciso reconhecer
que o nosso corpo nos põe em relação directa com o meio ambiente e com os
outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária
para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo
contrário, uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa
lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o
próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial
para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo
próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a
si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com
alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e
enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda
«cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela».[121]
4. O princípio do bem comum
156. A ecologia humana é inseparável da noção de
bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética
social. É «o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos
grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria
perfeição».[122]
157. O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa
humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o
seu desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e
segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o
princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a
família enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz
social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma certa ordem, que não se
realiza sem uma atenção particular à justiça distributiva, cuja violação gera
sempre violência. Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem
obrigação de defender e promover o bem comum.
158. Nas condições actuais da sociedade mundial,
onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas
descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem
comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à
solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção implica
tirar as consequências do destino comum dos bens da terra, mas – como procurei
mostrar na exortação apostólica Evangelii gaudium [123] – exige
acima de tudo contemplar a imensa dignidade do pobre à luz das mais profundas
convicções de fé. Basta observar a realidade para compreender que, hoje, esta
opção é uma exigência ética fundamental para a efectiva realização do bem
comum.
5. A justiça intergeneracional
159. A noção de bem comum engloba também as
gerações futuras. As crises económicas internacionais mostraram, de forma
atroz, os efeitos nocivos que traz consigo o desconhecimento de um destino
comum, do qual não podem ser excluídos aqueles que virão depois de nós. Já não
se pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade
intergeneracional. Quando pensamos na situação em que se deixa o planeta às
gerações futuras, entramos noutra lógica: a do dom gratuito, que recebemos e
comunicamos. Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum
critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não
estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça,
pois a terra que recebemos pertence também àqueles que hão-de vir. Os bispos de
Portugal exortaram a assumir este dever de justiça: «O ambiente situa-se na
lógica da recepção. É um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à
geração seguinte».[124] Uma ecologia integral possui esta perspectiva
ampla.
160. Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai
suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o
meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma
fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar,
referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus
valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio que as nossas
preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes. Mas, se esta
pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras questões muito
directas: Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta
vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra?
Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras;
exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo.
Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a
humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque
isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra.
161. As previsões catastróficas já não se podem
olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas
ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio
ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de
vida actual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como
aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões. A atenuação dos
efeitos do desequilíbrio actual depende do que fizermos agora, sobretudo se
pensarmos na responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar
as piores consequências.
162. A dificuldade em levar a sério este desafio
tem a ver com uma deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração
ecológica. O homem e a mulher deste mundo pós-moderno correm o risco permanente
de se tornar profundamente individualistas, e muitos problemas sociais de hoje
estão relacionados com a busca egoísta duma satisfação imediata, com as crises
dos laços familiares e sociais, com as dificuldades em reconhecer o outro.
Muitas vezes há um consumo excessivo e míope dos pais que prejudica os próprios
filhos, que sentem cada vez mais dificuldade em comprar casa própria e fundar
uma família. Além disso esta falta de capacidade para pensar seriamente nas
futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade de alargar o horizonte
das nossas preocupações e pensar naqueles que permanecem excluídos do
desenvolvimento. Não percamos tempo a imaginar os pobres do futuro, é suficiente
que recordemos os pobres de hoje, que poucos anos têm para viver nesta terra e
não podem continuar a esperar. Por isso, «para além de uma leal solidariedade
entre as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral de uma renovada
solidariedade entre os indivíduos da mesma geração».[125]
CAPÍTULO V
ALGUMAS LINHAS DE ORIENTAÇÃO E ACÇÃO
163. Procurei examinar a situação actual da
humanidade, tanto nas brechas do planeta que habitamos, como nas causas mais
profundamente humanas da degradação ambiental. Embora esta contemplação da
realidade em si mesma já nos indique a necessidade duma mudança de rumo e
sugira algumas acções, procuremos agora delinear grandes percursos de diálogo
que nos ajudem a sair da espiral de autodestruição onde estamos a afundar.
1. O diálogo sobre o meio ambiente na política
internacional
164. Desde meados do século passado e superando
muitas dificuldades, foi-se consolidando a tendência de conceber o planeta como
pátria e a humanidade como povo que habita uma casa comum. Um mundo
interdependente não significa unicamente compreender que as consequências
danosas dos estilos de vida, produção e consumo afectam a todos, mas
principalmente procurar que as soluções sejam propostas a partir duma
perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países. A
interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projecto comum. Mas,
a mesma inteligência que foi utilizada para um enorme desenvolvimento
tecnológico não consegue encontrar formas eficazes de gestão internacional para
resolver as graves dificuldades ambientais e sociais. Para enfrentar os
problemas de fundo, que não se podem resolver com acções de países isolados,
torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar
uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas de energia
renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética,
promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir
a todos o acesso à água potável.
165. Sabemos que a tecnologia baseada nos
combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o
petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora,
substituída. Enquanto aguardamos por um amplo desenvolvimento das energias
renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar pelo mal menor ou
recorrer a soluções transitórias. Todavia, na comunidade internacional, não se
consegue suficiente acordo sobre a responsabilidade de quem deve suportar os
maiores custos da transição energética. Nas últimas décadas, as questões
ambientais deram origem a um amplo debate público, que fez crescer na sociedade
civil espaços de notável compromisso e generosa dedicação. A política e a
indústria reagem com lentidão, longe de estar à altura dos desafios mundiais.
Neste sentido, pode-se dizer que, enquanto a humanidade do período
pós-industrial talvez fique recordada como uma das mais irresponsáveis da
história, espera-se que a humanidade dos inícios do século XXI possa ser
lembrada por ter assumido com generosidade as suas graves responsabilidades.
166. O movimento ecológico mundial já percorreu um
longo caminho, enriquecido pelo esforço de muitas organizações da sociedade
civil. Não seria possível mencioná-las todas aqui, nem repassar a história das
suas contribuições. Mas, graças a tanta dedicação, as questões ambientais têm
estado cada vez mais presentes na agenda pública e tornaram-se um convite
permanente a pensar a longo prazo. Apesar disso, as cimeiras mundiais sobre o
meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não
alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente
significativos e eficazes.
167. Dentre elas, há que recordar a Cimeira da
Terra, celebrada em 1992 no Rio de Janeiro. Lá se proclamou que «os seres
humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento
sustentável».[126] Retomando alguns conteúdos da Declaração de Estocolmo
(1972), sancionou, entre outras coisas, a cooperação internacional no cuidado
do ecossistema de toda a terra, a obrigação de quem contaminar assumir
economicamente os custos derivados, o dever de avaliar o impacto ambiental de
toda e qualquer obra ou projecto. Propôs o objectivo de estabilizar as
concentrações de gases com efeito de estufa na atmosfera para inverter a
tendência do aquecimento global. Também elaborou uma agenda com um programa de
acção e uma convenção sobre biodiversidade, declarou princípios em matéria
florestal. Embora tal cimeira marcasse um passo em frente e fosse
verdadeiramente profética para a sua época, os acordos tiveram um baixo nível
de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle,
revisão periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados continuam a
requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática.
168. Como experiências positivas, pode-se
mencionar, por exemplo, a Convenção de Basileia sobre os resíduos perigosos,
com um sistema de notificação, níveis estipulados e controles, e também a
Convenção vinculante sobre o comércio internacional das espécies da fauna e da
flora selvagens ameaçadas de extinção, que prevê missões de verificação do seu
efectivo cumprimento. Graças à Convenção de Viena para a protecção da camada de
ozono e a respectiva implementação através do Protocolo de Montreal e as suas
emendas, o problema da diminuição da referida camada parece ter entrado numa
fase de solução.
169. No cuidado da biodiversidade e no contraste à
desertificação, os avanços foram muito menos significativos. Relativamente às
mudanças climáticas, os progressos são, infelizmente, muito escassos. A redução
de gases com efeito de estufa requer honestidade, coragem e responsabilidade,
sobretudo dos países mais poderosos e mais poluentes. A Conferência das Nações
Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, chamada Rio+20 (Rio de Janeiro
2012), emitiu uma Declaração Final extensa mas ineficaz. As negociações
internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos
países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global.
Aqueles que hão-de sofrer as consequências que tentamos dissimular, recordarão
esta falta de consciência e de responsabilidade. Durante o período de
elaboração desta encíclica, o debate adquiriu particular intensidade. Nós,
crentes, não podemos deixar de rezar a Deus pela evolução positiva nos debates
actuais, para que as gerações futuras não sofram as consequências de demoras
imprudentes.
170. Algumas das estratégias para a baixa emissão
de gases poluentes apostam na internacionalização dos custos ambientais, com o
perigo de impor aos países de menores recursos pesados compromissos de redução
de emissões comparáveis aos dos países mais industrializados. A imposição
destas medidas penaliza os países mais necessitados de desenvolvimento. Assim,
acrescenta-se uma nova injustiça sob a capa do cuidado do meio ambiente. Como
sempre, a corda quebra pelo ponto mais fraco. Uma vez que os efeitos das
mudanças climáticas se farão sentir durante muito tempo, mesmo que agora sejam
tomadas medidas rigorosas, alguns países com escassos recursos precisarão de
ajuda para se adaptar a efeitos que já estão a produzir-se e afectam as suas
economias. É verdade que há responsabilidades comuns, mas diferenciadas, pelo
simples motivo – como disseram os bispos da Bolívia – que «os países que foram
beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa duma enorme emissão
de gases com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a
solução dos problemas que causaram».[127]
171. A estratégia de compra-venda de «créditos de
emissão» pode levar a uma nova forma de especulação, que não ajudaria a reduzir
a emissão global de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida
e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o meio ambiente, mas que não
implica de forma alguma uma mudança radical à altura das circunstâncias. Pelo
contrário, pode tornar-se um diversivo que permite sustentar o consumo
excessivo de alguns países e sectores.
172. Para os países pobres, as prioridades devem
ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos seus habitantes; ao
mesmo tempo devem examinar o nível escandaloso de consumo de alguns sectores
privilegiados da sua população e contrastar melhor a corrupção. Sem dúvida,
devem também desenvolver formas menos poluentes de produção de energia, mas
para isso precisam de contar com a ajuda dos países que cresceram muito à custa
da actual poluição do planeta. O aproveitamento directo da energia solar, tão
abundante, exige que se estabeleçam mecanismos e subsídios tais, que os países
em vias de desenvolvimento possam ter acesso à transferência de tecnologias,
assistência técnica e recursos financeiros, mas sempre prestando atenção às
condições concretas, pois «nem sempre se avalia adequadamente a compatibilidade
dos sistemas com o contexto para o qual são projectados».[128] Os custos
seriam baixos se comparados com os riscos das mudanças climáticas. Em todo o
caso, trata-se primariamente duma decisão ética, fundada na solidariedade de
todos os povos.
173. Urgem acordos internacionais que se cumpram,
dada a escassa capacidade das instâncias locais para intervirem de maneira
eficaz. As relações entre os Estados devem salvaguardar a soberania de cada um,
mas também estabelecer caminhos consensuais para evitar catástrofes locais que
acabariam por danificar a todos. São necessários padrões reguladores globais
que imponham obrigações e impeçam acções inaceitáveis, como o facto de países
poderosos descarregarem, sobre outros países, resíduos e indústrias altamente
poluentes.
174. Mencionemos também o sistema de governança
dos oceanos. Com efeito, embora tenha havido várias convenções internacionais e
regionais, a fragmentação e a falta de severos mecanismos de regulamentação,
controle e sanção acabam por minar todos os esforços. O problema crescente dos
resíduos marinhos e da protecção das áreas marinhas para além das fronteiras
nacionais continua a representar um desafio especial. Em definitivo, precisamos
de um acordo sobre os regimes de governança para toda a gama dos chamados bens
comuns globais.
175. A lógica que dificulta a tomada de decisões
drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global é a mesma que não
permite cumprir o objectivo de erradicar a pobreza. Precisamos duma reacção
global mais responsável, que implique enfrentar, contemporaneamente, a redução
da poluição e o desenvolvimento dos países e regiões pobres. O século XXI,
mantendo um sistema de governança próprio de épocas passadas, assiste a uma
perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão
económico-financeira, de carácter transnacional, tende a prevalecer sobre a
política. Neste contexto, torna-se indispensável a maturação de instituições
internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades
designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre os governos nacionais
e dotadas de poder de sancionar. Com afirmou Bento XVI, na linha desenvolvida até agora
pela doutrina social da Igreja, «para o governo da economia mundial, para sanar
as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e
consequentes maiores desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento,
a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para
regulamentar os fluxos migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade
política mundial, delineada já pelo meu predecessor, [São] João
XXIII».[129] Nesta perspectiva, a diplomacia adquire uma
importância inédita, chamada a promover estratégias internacionais para
prevenir os problemas mais graves que acabam por afectar a todos.
2. O diálogo para novas políticas nacionais e
locais
176. Há vencedores e vencidos não só entre os
países, mas também dentro dos países pobres, onde se devem identificar as
diferentes responsabilidades. Por isso, as questões relacionadas com o meio
ambiente e com o desenvolvimento económico já não se podem olhar apenas a
partir das diferenças entre os países, mas exigem que se preste atenção às
políticas nacionais e locais.
177. Perante a possibilidade duma utilização
irresponsável das capacidades humanas, são funções inadiáveis de cada Estado
planificar, coordenar, vigiar e sancionar dentro do respectivo território. Como
pode a sociedade organizar e salvaguardar o seu futuro num contexto de
constantes inovações tecnológicas? Um factor que actua como moderador efectivo
é o direito, que estabelece as regras para as condutas permitidas à luz do bem
comum. Os limites que uma sociedade sã, madura e soberana deve impor têm a ver
com previsão e precaução, regulamentações adequadas, vigilância sobre a
aplicação das normas, contraste da corrupção, acções de controle operacional
sobre o aparecimento de efeitos não desejados dos processos de produção, e
oportuna intervenção perante riscos incertos ou potenciais. Existe uma
crescente jurisprudência que visa reduzir os efeitos poluentes dos
empreendimentos. Mas a estrutura política e institucional não existe apenas
para evitar malversações, mas para incentivar as boas práticas, estimular a
criatividade que busca novos caminhos, facilitar as iniciativas pessoais e
colectivas.
178. O drama duma política focalizada nos
resultados imediatos, apoiada também por populações consumistas, torna
necessário produzir crescimento a curto prazo. Respondendo a interesses
eleitorais, os governos não se aventuram facilmente a irritar a população com
medidas que possam afectar o nível de consumo ou pôr em risco investimentos
estrangeiros. A construção míope do poder frena a inserção duma agenda
ambiental com visão ampla na agenda pública dos governos. Esquece-se, assim,
que «o tempo é superior ao espaço»[130] e que sempre somos mais fecundos
quando temos maior preocupação por gerar processos do que por dominar espaços
de poder. A grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se
trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo.
O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projecto de
nação.
179. Nalguns lugares, estão a desenvolver-se
cooperativas para a exploração de energias renováveis, que consentem o
auto-abastecimento local e até mesmo a venda da produção em excesso. Este
exemplo simples indica que, enquanto a ordem mundial existente se revela
impotente para assumir responsabilidades, a instância local pode fazer a
diferença. Com efeito, aqui é possível gerar uma maior responsabilidade, um
forte sentido de comunidade, uma especial capacidade de solicitude e uma
criatividade mais generosa, um amor apaixonado pela própria terra, tal como se
pensa naquilo que se deixa aos filhos e netos. Estes valores têm um
enraizamento muito profundo nas populações aborígenes. Dado que o direito por
vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma decisão política
sob pressão da população. A sociedade, através de organismos não-governamentais
e associações intermédias, deve forçar os governos a desenvolver normativas,
procedimentos e controles mais rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder
político – nacional, regional e municipal –, também não é possível combater os
danos ambientais. Além disso, as legislações municipais podem ser mais eficazes,
se houver acordos entre populações vizinhas para sustentarem as mesmas
políticas ambientais.
180. Não se pode pensar em receitas uniformes,
porque há problemas e limites específicos de cada país ou região. Também é
verdade que o realismo político pode exigir medidas e tecnologias de transição,
desde que estejam acompanhadas pelo projecto e a aceitação de compromissos
graduais vinculativos. Ao mesmo tempo, porém, a nível nacional e local, há
sempre muito que fazer, como, por exemplo, promover formas de poupança
energética. Isto implica favorecer modalidades de produção industrial com a
máxima eficiência energética e menor utilização de matérias-primas, retirando
do mercado os produtos pouco eficazes do ponto de vista energético ou mais
poluentes. Podemos mencionar também uma boa gestão dos transportes ou técnicas
de construção e restruturação de edifícios que reduzam o seu consumo energético
e o seu nível de poluição. Além disso, a acção política local pode orientar-se
para a alteração do consumo, o desenvolvimento duma economia de resíduos e
reciclagem, a protecção de determinadas espécies e a programação duma
agricultura diversificada com a rotação de culturas. É possível favorecer a
melhoria agrícola de regiões pobres, através de investimentos em infra-estruturas
rurais, na organização do mercado local ou nacional, em sistemas de irrigação,
no desenvolvimento de técnicas agrícolas sustentáveis. Podem-se facilitar
formas de cooperação ou de organização comunitária que defendam os interesses
dos pequenos produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas locais. É
tanto o que se pode fazer!
181. Indispensável é a continuidade, porque não se
podem modificar as políticas relativas às alterações climáticas e à protecção
ambiental todas as vezes que muda um governo. Os resultados requerem muito
tempo e comportam custos imediatos com efeitos que não poderão ser exibidos no
período de vida dum governo. Por isso, sem a pressão da população e das
instituições, haverá sempre relutância a intervir, e mais ainda quando houver
urgências a resolver. Para um político, assumir estas responsabilidades com os
custos que implicam não corresponde à lógica eficientista e imediatista actual
da economia e da política, mas, se ele tiver a coragem de o fazer, poderá
novamente reconhecer a dignidade que Deus lhe deu como pessoa e deixará, depois
da sua passagem por esta história, um testemunho de generosa responsabilidade.
Importa dar um lugar preponderante a uma política salutar, capaz de reformar as
instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam
superar pressões e inércias viciosas. Todavia é preciso acrescentar que os
melhores dispositivos acabam por sucumbir, quando faltam as grandes metas, os
valores, uma compreensão humanista e rica de significado, capazes de conferir a
cada sociedade uma orientação nobre e generosa.
3. Diálogo e transparência nos processos
decisórios
182. A previsão do impacto ambiental dos
empreendimentos e projectos requer processos políticos transparentes e sujeitos
a diálogo, enquanto a corrupção, que esconde o verdadeiro impacto ambiental dum
projecto em troca de favores, frequentemente leva a acordos ambíguos que fogem
ao dever de informar e a um debate profundo.
183. Um estudo de impacto ambiental não deveria
ser posterior à elaboração dum projecto produtivo ou de qualquer política,
plano ou programa. Há-de inserir-se desde o princípio e elaborar-se de forma
interdisciplinar, transparente e independente de qualquer pressão económica ou
política. Deve aparecer unido à análise das condições de trabalho e dos
possíveis efeitos na saúde física e mental das pessoas, na economia local, na
segurança. Assim os resultados económicos poder-se-ão prever de forma mais
realista, tendo em conta os cenários possíveis e, eventualmente, antecipando a
necessidade dum investimento maior para resolver efeitos indesejáveis que
possam ser corrigidos. É sempre necessário alcançar consenso entre os vários
actores sociais, que podem trazer diferentes perspectivas, soluções e
alternativas. Mas, no debate, devem ter um lugar privilegiado os moradores
locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os
seus filhos e podem ter em consideração as finalidades que transcendem o
interesse económico imediato. É preciso abandonar a ideia de «intervenções»
sobre o meio ambiente, para dar lugar a políticas pensadas e debatidas por
todas as partes interessadas. A participação requer que todos sejam
adequadamente informados sobre os vários aspectos e os diferentes riscos e
possibilidades, e não se reduza à decisão inicial sobre um projecto, mas
implique também acções de controle ou monitoramento constante. É necessário
haver sinceridade e verdade nas discussões científicas e políticas, sem se
limitar a considerar o que é permitido ou não pela legislação.
184. Quando surgem eventuais riscos para o meio
ambiente que afectam o bem comum presente e futuro, esta situação exige «que as
decisões sejam baseadas num confronto entre riscos e benefícios previsíveis
para cada opção alternativa possível».[131] Isto vale sobretudo quando
um projecto pode causar um incremento na exploração dos recursos naturais, nas
emissões ou descargas, na produção de resíduos, ou então uma mudança
significativa na paisagem, no habitat de espécies protegidas ou num espaço público.
Alguns projectos, não apoiados por uma análise bem cuidada, podem afectar
profundamente a qualidade de vida dum lugar, devido a questões muito diferentes
entre si, como, por exemplo, uma poluição acústica não prevista, a redução do
horizonte visual, a perda de valores culturais, os efeitos do uso da energia
nuclear. A cultura consumista, que dá prioridade ao curto prazo e aos
interesses privados, pode favorecer análises demasiado rápidas ou consentir a
ocultação de informação.
185. Em qualquer discussão sobre um
empreendimento, dever-se-ia pôr uma série de perguntas, para poder discernir se
o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: Para que fim? Por
qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A
que preço? Quem paga as despesas e como o fará? Neste exame, há questões que
devem ter prioridade. Por exemplo, sabemos que a água é um recurso escasso e
indispensável, sendo um direito fundamental que condiciona o exercício doutros
direitos humanos. Isto está, sem dúvida, acima de toda a análise de impacto
ambiental duma região.
186. Na Declaração do Rio, de 1992, afirma-se que,
«quando existem ameaças de danos graves ou irreversíveis, a falta de certezas
científicas absolutas não poderá constituir um motivo para adiar a adopção de
medidas eficazes»[132] que impeçam a degradação do meio ambiente. Este
princípio de precaução permite a protecção dos mais fracos, que dispõem de
poucos meios para se defender e fornecer provas irrefutáveis. Se a informação
objectiva leva a prever um dano grave e irreversível, mesmo que não haja uma
comprovação indiscutível, seja o projecto que for deverá suspender-se ou
modificar-se. Assim, inverte-se o ónus da prova, já que, nestes casos, é
preciso fornecer uma demonstração objectiva e contundente de que a actividade
proposta não vai gerar danos graves ao meio ambiente ou às pessoas que nele
habitam.
187. Isto não implica opor-se a toda e qualquer
inovação tecnológica que permita melhorar a qualidade de vida duma população.
Mas, em todo o caso, deve permanecer de pé que a rentabilidade não pode ser o
único critério a ter em conta e, na hora em que aparecessem novos elementos de
juízo a partir de ulteriores dados informativos, deveria haver uma nova
avaliação com a participação de todas as partes interessadas. O resultado do
debate pode ser a decisão de não avançar num projecto, mas poderia ser também a
sua modificação ou a elaboração de propostas alternativas.
188. Há discussões sobre problemas relativos ao
meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. Repito uma vez mais que a
Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à
política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as
necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum.
4. Política e economia em diálogo para a plenitude
humana
189. A política não deve submeter-se à economia, e
esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da
tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política
e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida,
especialmente da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo
pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema
inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá
gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura. A crise
financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova
economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da
actividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma
reacção que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o
mundo. A produção não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis
económicas que atribuem aos produtos um valor que não corresponde ao seu valor
real. Isto leva frequentemente a uma superprodução dalgumas mercadorias, com um
impacto ambiental desnecessário, que simultaneamente danifica muitas economias
regionais.[133] Habitualmente, a bolha financeira é também uma bolha
produtiva. Em suma, o que não se enfrenta com energia é o problema da economia
real, aquela que torna possível, por exemplo, que se diversifique e melhore a
produção, que as empresas funcionem adequadamente, que as pequenas e médias
empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho.
190. Neste contexto, sempre se deve recordar que
«a protecção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo
financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos
de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente».[134]
Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado, que
tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros
das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem está obcecado
com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que
deixará às próximas gerações? Dentro do esquema do ganho não há lugar para
pensar nos ritmos da natureza, nos seus tempos de degradação e regeneração, e
na complexidade dos ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela
intervenção humana. Além disso, quando se fala de biodiversidade, no máximo
pensa-se nela como um reservatório de recursos económicos que poderia ser
explorado, mas não se considera seriamente o valor real das coisas, o seu
significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos
pobres.
191. Quando se colocam estas questões, alguns
reagem acusando os outros de pretender parar, irracionalmente, o progresso e o
desenvolvimento humano. Mas temos de nos convencer que, reduzir um determinado
ritmo de produção e consumo, pode dar lugar a outra modalidade de progresso e
desenvolvimento. Os esforços para um uso sustentável dos recursos naturais não
são gasto inútil, mas um investimento que poderá proporcionar outros benefícios
económicos a médio prazo. Se não temos vista curta, podemos descobrir que pode
ser muito rentável a diversificação duma produção mais inovadora e com menor
impacto ambiental. Trata-se de abrir caminho a oportunidades diferentes, que
não implicam frenar a criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas
orientar esta energia por novos canais.
192. Por exemplo, um percurso de desenvolvimento produtivo
mais criativo e melhor orientado poderia corrigir a disparidade entre o
excessivo investimento tecnológico no consumo e o escasso investimento para
resolver os problemas urgentes da humanidade; poderia gerar formas inteligentes
e rentáveis de reutilização, recuperação funcional e reciclagem; poderia
melhorar a eficiência energética das cidades... A diversificação produtiva
oferece à inteligência humana possibilidades muito amplas de criar e inovar, ao
mesmo tempo que protege o meio ambiente e cria mais oportunidades de trabalho.
Esta seria uma criatividade capaz de fazer reflorescer a nobreza do ser humano,
porque é mais dignificante usar a inteligência, com audácia e responsabilidade,
para encontrar formas de desenvolvimento sustentável e equitativo, no quadro
duma concepção mais ampla da qualidade de vida. Ao contrário, é menos
dignificante e criativo e mais superficial insistir na criação de formas de
espoliação da natureza só para oferecer novas possibilidades de consumo e de
ganho imediato.
193. Assim, se nalguns casos o desenvolvimento
sustentável implicará novas modalidades para crescer, noutros casos – face ao
crescimento ganancioso e irresponsável, que se verificou ao longo de muitas
décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha, pôr alguns
limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde. Sabemos que é
insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez mais,
enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade humana. Por
isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes
do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável
noutras partes. Bento XVI dizia que «é preciso que as
sociedades tecnologicamente avançadas estejam dispostas a favorecer
comportamentos caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias
necessidades de energia e melhorando as condições da sua utilização».[135]
194. Para que apareçam novos modelos de progresso,
precisamos de «converter o modelo de desenvolvimento global»[136], e
isto implica reflectir responsavelmente «sobre o sentido da economia e dos seus
objectivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações».[137] Não é
suficiente conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o ganho
financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os
meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. Trata-se simplesmente
de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e económico, que não
deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se
pode considerar progresso. Além disso, muitas vezes a qualidade real de vida
das pessoas diminui – pela deterioração do ambiente, a baixa qualidade dos
produtos alimentares ou o esgotamento de alguns recursos – no contexto dum
crescimento da economia. Então, muitas vezes, o discurso do crescimento
sustentável torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores
do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a
responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos
casos, a uma série de acções de publicidade e imagem.
195. O princípio da maximização do lucro, que
tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceptual
da economia: desde que aumente a produção, pouco interessa que isso se consiga
à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente; se o derrube duma
floresta aumenta a produção, ninguém insere no respectivo cálculo a perda que
implica desertificar um território, destruir a biodiversidade ou aumentar a
poluição. Por outras palavras, as empresas obtêm lucros calculando e pagando
uma parte ínfima dos custos. Poder-se-ia considerar ético somente um
comportamento em que «os custos económicos e sociais derivados do uso dos
recursos ambientais comuns sejam reconhecidos de maneira transparente e
plenamente suportados por quem deles usufrui e não por outras populações nem
pelas gerações futuras».[138] A mentalidade utilitária, que fornece
apenas uma análise estática da realidade em função de necessidades actuais,
está presente tanto quando é o mercado que atribui os recursos como quando o
faz um Estado planificador.
196. Qual é o lugar da política? Recordemos o
princípio da subsidiariedade, que dá liberdade para o desenvolvimento das
capacidades presentes a todos os níveis, mas simultaneamente exige mais
responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais poder. É verdade que, hoje,
alguns sectores económicos exercem mais poder do que os próprios Estados. Mas
não se pode justificar uma economia sem política, porque seria incapaz de
promover outra lógica para governar os vários aspectos da crise actual. A
lógica que não deixa espaço para uma sincera preocupação pelo meio ambiente é a
mesma em que não encontra espaço a preocupação por integrar os mais frágeis,
porque, «no modelo “do êxito” e “individualista” em vigor, parece que não faz
sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também
singrar na vida».[139]
197. Precisamos duma política que pense com visão
ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo
interdisciplinar os vários aspectos da crise. Muitas vezes, a própria política
é responsável pelo seu descrédito, devido à corrupção e à falta de boas
políticas públicas. Se o Estado não cumpre o seu papel numa região, alguns
grupos económicos podem-se apresentar como benfeitores e apropriar-se do poder
real, sentindo-se autorizados a não observar certas normas até se chegar às
diferentes formas de criminalidade organizada, tráfico de pessoas, narcotráfico
e violência muito difícil de erradicar. Se a política não é capaz de romper uma
lógica perversa e perde-se também em discursos inconsistentes, continuaremos
sem enfrentar os grandes problemas da humanidade. Uma estratégia de mudança
real exige repensar a totalidade dos processos, pois não basta incluir
considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser em discussão a
lógica subjacente à cultura actual. Uma política sã deveria ser capaz de
assumir este desafio.
198. A política e a economia tendem a culpar-se
reciprocamente a respeito da pobreza e da degradação ambiental. Mas o que se
espera é que reconheçam os seus próprios erros e encontrem formas de interacção
orientadas para o bem comum. Enquanto uns se afanam apenas com o ganho
económico e os outros estão obcecados apenas por conservar ou aumentar o poder,
o que nos resta são guerras ou acordos espúrios, onde o que menos interessa às
duas partes é preservar o meio ambiente e cuidar dos mais fracos. Vale aqui
também o princípio de que «a unidade é superior ao conflito».[140]
5. As religiões no diálogo com as ciências
199. Não se pode sustentar que as ciências
empíricas expliquem completamente a vida, a essência íntima de todas as
criaturas e o conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar indevidamente os
seus confins metodológicos limitados. Se se reflecte dentro deste quadro
restrito, desaparecem a sensibilidade estética, a poesia e ainda a capacidade
da razão perceber o sentido e a finalidade das coisas.[141] Quero
lembrar que «os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para
todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes
(...). Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque
nasceram no contexto duma crença religiosa?»[142] Realmente, é ingénuo
pensar que os princípios éticos possam ser apresentados de modo puramente
abstracto, desligados de todo o contexto, e o facto de aparecerem com uma
linguagem religiosa não lhes tira valor algum no debate público. Os princípios
éticos que a razão é capaz de perceber, sempre podem reaparecer sob distintas
roupagens e expressos com linguagens diferentes, incluindo a religiosa.
200. Além disso, qualquer solução técnica que as
ciências pretendam oferecer será impotente para resolver os graves problemas do
mundo, se a humanidade perde o seu rumo, se esquece as grandes motivações que
tornam possível a convivência social, o sacrifício, a bondade. Em todo o caso,
será preciso fazer apelo aos crentes para que sejam coerentes com a sua própria
fé e não a contradigam com as suas acções; será necessário insistir para que se
abram novamente à graça de Deus e se nutram profundamente das próprias
convicções sobre o amor, a justiça e a paz. Se às vezes uma má compreensão dos
nossos princípios nos levou a justificar o abuso da natureza, ou o domínio
despótico do ser humano sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a
violência, nós, crentes, podemos reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro
de sabedoria que devíamos guardar. Muitas vezes os limites culturais de
distintas épocas condicionaram esta consciência do próprio património ético e
espiritual, mas é precisamente o regresso às respectivas fontes que permite às
religiões responder melhor às necessidades actuais.
201. A maior parte dos habitantes do planeta
declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem diálogo
entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma
trama de respeito e de fraternidade. De igual modo é indispensável um diálogo
entre as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se nos limites da
sua própria linguagem, e a especialização tende a converter-se em isolamento e
absolutização do próprio saber. Isto impede de enfrentar adequadamente os
problemas do meio ambiente. Torna-se necessário também um diálogo aberto e
respeitador dos diferentes movimentos ecologistas, entre os quais não faltam as
lutas ideológicas. A gravidade da crise ecológica obriga-nos, a todos, a pensar
no bem comum e a prosseguir pelo caminho do diálogo que requer paciência,
ascese e generosidade, lembrando-nos sempre que «a realidade é superior à
ideia».[143]
CAPÍTULO VI
EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS
202. Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo,
mas antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar. Falta a consciência duma
origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta
consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções, atitudes
e estilos de vida. Surge, assim, um grande desafio cultural, espiritual e
educativo que implicará longos processos de regeneração.
1. Apontar para outro estilo de vida
203. Dado que o mercado tende a criar um mecanismo
consumista compulsivo para vender os seus produtos, as pessoas acabam por ser
arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos. O consumismo
obsessivo é o reflexo subjectivo do paradigma tecno-económico. Está a acontecer
aquilo que já assinalava Romano Guardini: o ser humano «aceita os objectos
comuns e as formas habituais da vida como lhe são impostos pelos planos
nacionais e pelos produtos fabricados em série e, em geral, age assim com a
impressão de que tudo isto seja razoável e justo».[144] O referido paradigma
faz crer a todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de
consumir, quando na realidade apenas possui a liberdade a minoria que detém o
poder económico e financeiro. Nesta confusão, a humanidade pós-moderna não
encontrou uma nova compreensão de si mesma que a possa orientar, e esta falta
de identidade é vivida com angústia. Temos demasiados meios para escassos e
raquíticos fins.
204. A situação actual do mundo «gera um sentido
de precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo
colectivo».[145] Quando as pessoas se tornam auto-referenciais e se
isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio
está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objectos para comprar,
possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser possível, para uma pessoa,
aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste horizonte, não existe
sequer um verdadeiro bem comum. Se este é o tipo de sujeito que tende a
predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas apenas na medida em que
não contradigam as necessidades próprias. Por isso, não pensemos só na
possibilidade de terríveis fenómenos climáticos ou de grandes desastres
naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a
obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm
possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição
recíproca.
205. Mas nem tudo está perdido, porque os seres
humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se,
voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo
psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos
com honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à
verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao
bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a
animar no mais fundo dos nossos corações. A cada pessoa deste mundo, peço para
não esquecer esta sua dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar.
206. Uma mudança nos estilos de vida poderia
chegar a exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o poder político,
económico e social. Verifica-se isto quando os movimentos de consumidores
conseguem que se deixe de adquirir determinados produtos e assim se tornam
eficazes na mudança do comportamento das empresas, forçando-as a reconsiderar o
impacto ambiental e os modelos de produção. É um facto que, quando os hábitos
da sociedade afectam os ganhos das empresas, estas vêem-se pressionadas a mudar
a produção. Isto lembra-nos a responsabilidade social dos consumidores.
«Comprar é sempre um acto moral, para além de económico».[146] Por
isso, hoje, «o tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de
cada um de nós».[147]
207. A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a
começar de novo deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas ainda não
desenvolvemos uma consciência universal que o torne possível. Por isso,
atrevo-me a propor de novo aquele considerável desafio: «Como nunca antes na
história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (...). Que o
nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à
vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação
da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida».[148]
208. Sempre é possível desenvolver uma nova
capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro. Sem tal capacidade, não se
reconhece às outras criaturas o seu valor, não se sente interesse em cuidar de
algo para os outros, não se consegue impor limites para evitar o sofrimento ou
a degradação do que nos rodeia. A atitude basilar de se auto-transcender,
rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade, é a raiz que
possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz brotar a
reacção moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada acção e decisão
pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o individualismo,
pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível
uma mudança relevante na sociedade.
2. Educar para a aliança entre a humanidade e o
ambiente
209. A consciência da gravidade da crise cultural
e ecológica precisa de traduzir-se em novos hábitos. Muitos estão cientes de
que não basta o progresso actual e a mera acumulação de objectos ou prazeres
para dar sentido e alegria ao coração humano, mas não se sentem capazes de
renunciar àquilo que o mercado lhes oferece. Nos países que deveriam realizar
as maiores mudanças nos hábitos de consumo, os jovens têm uma nova
sensibilidade ecológica e um espírito generoso, e alguns deles lutam
admiravelmente pela defesa do meio ambiente, mas cresceram num contexto de
altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a maturação doutros hábitos.
Por isso, estamos perante um desafio educativo.
210. A educação ambiental tem vindo a ampliar os
seus objectivos. Se, no começo, estava muito centrada na informação científica
e na consciencialização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a
incluir uma crítica dos «mitos» da modernidade baseados na razão instrumental
(individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem
regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico:
o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os
seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos
para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu
sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os
itinerários pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efectivamente
a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na
compaixão.
211. Às vezes, porém, esta educação, chamada a
criar uma «cidadania ecológica», limita-se a informar e não consegue fazer
maturar hábitos. A existência de leis e normas não é suficiente, a longo prazo,
para limitar os maus comportamentos, mesmo que haja um válido controle. Para a
norma jurídica produzir efeitos importantes e duradouros, é preciso que a maior
parte dos membros da sociedade a tenha acolhido, com base em motivações
adequadas, e reaja com uma transformação pessoal. A doação de si mesmo num
compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo de virtudes sólidas. Se
uma pessoa habitualmente se resguarda um pouco mais em vez de ligar o
aquecimento, embora as suas economias lhe permitam consumir e gastar mais, isso
supõe que adquiriu convicções e modos de sentir favoráveis ao cuidado do
ambiente. É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas
acções diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas
até dar forma a um estilo de vida. A educação na responsabilidade ambiental
pode incentivar vários comportamentos que têm incidência directa e importante
no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel,
reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que
razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos,
servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias
pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias… Tudo isto faz parte
duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser
humano. Voltar – com base em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o
desperdiçar rapidamente pode ser um acto de amor que exprime a nossa dignidade.
212. E não se pense que estes esforços são
incapazes de mudar o mundo. Estas acções espalham, na sociedade, um bem que
frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam, no seio desta
terra, um bem que sempre tende a difundir-se, por vezes invisivelmente. Além
disso, o exercício destes comportamentos restitui-nos o sentimento da nossa dignidade,
leva-nos a uma maior profundidade existencial, permite-nos experimentar que
vale a pena a nossa passagem por este mundo.
213. Vários são os âmbitos educativos: a escola, a
família, os meios de comunicação, a catequese, e outros. Uma boa educação escolar
em tenra idade coloca sementes que podem produzir efeitos durante toda a vida.
Mas, quero salientar a importância central da família, porque «é o lugar onde a
vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os
múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as
exigências de um crescimento humano autêntico. Contra a denominada cultura da
morte, a família constitui a sede da cultura da vida».[149] Na família,
cultivam-se os primeiros hábitos de amor e cuidado da vida, como, por exemplo,
o uso correcto das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema
local e a protecção de todas as criaturas. A família é o lugar da formação
integral, onde se desenvolvem os distintos aspectos, intimamente relacionados
entre si, do amadurecimento pessoal. Na família, aprende-se a pedir licença sem
servilismo, a dizer «obrigado» como expressão duma sentida avaliação das coisas
que recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância, e a pedir desculpa
quando fazemos algo de mal. Estes pequenos gestos de sincera cortesia ajudam a
construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia.
214. Compete à política e às várias associações um
esforço de formação das consciências da população. Naturalmente compete também
à Igreja. Todas as comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar
nesta educação. Espero também que, nos nossos Seminários e Casas Religiosas de
Formação, se eduque para uma austeridade responsável, a grata contemplação do
mundo, o cuidado da fragilidade dos pobres e do meio ambiente. Tendo em conta o
muito que está em jogo, do mesmo modo que são necessárias instituições dotadas
de poder para punir os danos ambientais, também nós precisamos de nos controlar
e educar uns aos outros.
215. Neste contexto, «não se deve descurar nunca a
relação que existe entre uma educação estética apropriada e a preservação de um
ambiente sadio».[150] Prestar atenção à beleza e amá-la ajuda-nos a sair
do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a fim de admirar e
apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objecto de uso
e abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se se quer conseguir mudanças
profundas, é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem
realmente nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus esforços
estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao
ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário,
continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de
comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado.
3. A conversão ecológica
216. A grande riqueza da espiritualidade cristã,
proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, constitui
uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a humanidade. Desejo
propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que nascem das
convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem
consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver. Não se trata tanto de
propor ideias, como sobretudo falar das motivações que derivam da
espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo. Com efeito,
não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma
mística que nos anima, sem «uma moção interior que impele, motiva, encoraja e
dá sentido à acção pessoal e comunitária».[151] Temos de reconhecer que
nós, cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por
Deus à Igreja, nas quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo
nem da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em
comunhão com tudo o que nos rodeia.
217. Se «os desertos exteriores se multiplicam no
mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos»,[152] a
crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior. Entretanto temos
de reconhecer também que alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com o
pretexto do realismo pragmático frequentemente se burlam das preocupações pelo
meio ambiente. Outros são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e
tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta
deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências
do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo
de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte
essencial duma existência virtuosa.
218. Recordemos o modelo de São Francisco de
Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão
integral da pessoa. Isto exige também reconhecer os próprios erros, pecados,
vícios ou negligências, e arrepender-se de coração, mudar a partir de dentro. A
Igreja na Austrália soube expressar a conversão em termos de reconciliação com
a criação: «Para realizar esta reconciliação, devemos examinar as nossas vidas
e reconhecer de que modo ofendemos a criação de Deus com as nossas acções e com
a nossa incapacidade de agir. Devemos fazer a experiência duma conversão, duma
mudança do coração».[153]
219. Todavia, para se resolver uma situação tão
complexa como esta que enfrenta o mundo actual, não basta que cada um seja
melhor. Os indivíduos isolados podem perder a capacidade e a liberdade de
vencer a lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo sem
ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais responde-se, não
com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias: «As exigências
desta obra serão tão grandes, que as possibilidades das iniciativas individuais
e a cooperação dos particulares, formados de maneira individualista, não serão
capazes de lhes dar resposta. Será necessária uma união de forças e uma unidade
de contribuições».[154] A conversão ecológica, que se requer para criar
um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária.
220. Esta conversão comporta várias atitudes que
se conjugam para activar um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro
lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como
dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições gratuitas
de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja nem agradeça. «Que a
tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita (...); e teu Pai, que vê o
oculto, há-de premiar-te» (Mt 6, 3-4). Implica ainda a consciência amorosa de
não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do
universo uma estupenda comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como
alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos
uniu a todos os seres. Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer as
peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a desenvolver a sua
criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo, oferecendo-se a
Deus «como sacrifício vivo, santo e agradável» (Rm12, 1). Não vê a sua
superioridade como motivo de glória pessoal nem de domínio irresponsável, mas
como uma capacidade diferente que, por sua vez, lhe impõe uma grave
responsabilidade derivada da sua fé.
221. Ajudam a enriquecer o sentido de tal
conversão várias convicções da nossa fé, desenvolvidas ao início desta
encíclica, como, por exemplo, a consciência de que cada criatura reflecte algo
de Deus e tem uma mensagem para nos transmitir, ou a certeza de que Cristo
assumiu em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo
de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz; e
ainda o reconhecimento de que Deus criou o mundo, inscrevendo nele uma ordem e
um dinamismo que o ser humano não tem o direito de ignorar. Porventura uma
pessoa, ouvindo no Evangelho Jesus dizer – a propósito dos pássaros – que
«nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc12, 6), será capaz de os
maltratar ou causar-lhes dano? Convido todos os cristãos a explicitar esta
dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se
estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia,
e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de
maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis.
4. Alegria e paz
222. A espiritualidade cristã propõe uma forma
alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida
profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado
pelo consumo. É importante adoptar um antigo ensinamento, presente em distintas
tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que «quanto
menos, tanto mais». Com efeito, a acumulação constante de possibilidades para
consumir distrai o coração e impede de dar o devido apreço a cada coisa e a
cada momento. Pelo contrário, tornar-se serenamente presente diante de cada
realidade, por mais pequena que seja, abre-nos muitas mais possibilidades de
compreensão e realização pessoal. A espiritualidade cristã propõe um
crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um
regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas,
agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos
nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica
do domínio e da mera acumulação de prazeres.
223. A sobriedade, vivida livre e conscientemente,
é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é
precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem
melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à
procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa
e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem
alegrar-se com elas. Deste modo conseguem reduzir o número das necessidades
insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade. É possível necessitar de pouco
e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres,
encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos
próprios carismas, na música e na arte, no contacto com a natureza, na oração.
A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem,
permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida
oferece.
224. A sobriedade e a humildade não gozaram de
positiva consideração no século passado. Mas, quando se debilita de forma
generalizada o exercício dalguma virtude na vida pessoal e social, isso acaba
por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso, não basta
falar apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem de falar
da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar todos os
grandes valores. O desaparecimento da humildade, num ser humano excessivamente
entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem limite algum, só pode
acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não é fácil desenvolver
esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se
excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos
ser a nossa subjectividade que determina o que é bem e o que é mal.
225. Por outro lado, ninguém pode amadurecer numa
sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte duma adequada
compreensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz,
que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem
muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente
vivida, reflecte-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de
admiração que leva à profundidade da vida. A natureza está cheia de palavras de
amor; mas, como poderemos ouvi-las no meio do ruído constante, da distracção
permanente e ansiosa, ou do culto da notoriedade? Muitas pessoas experimentam
um desequilíbrio profundo, que as impele a fazer as coisas a toda a velocidade
para se sentirem ocupadas, numa pressa constante que, por sua vez, as leva a
atropelar tudo o que têm ao seu redor. Isto tem incidência no modo como se
trata o ambiente. Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para
recuperar a harmonia serena com a criação, reflectir sobre o nosso estilo de
vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que
nos rodeia e cuja presença «não precisa de ser criada, mas descoberta,
desvendada».[155]
226. Falamos aqui duma atitude do coração, que
vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente presente diante
duma pessoa sem estar a pensar no que virá depois, que se entrega a cada
momento como um dom divino que se deve viver em plenitude. Jesus ensinou-nos
esta atitude, quando nos convidava a olhar os lírios do campo e as aves do céu,
ou quando, na presença dum homem inquieto, «fitando nele o olhar, sentiu
afeição por ele» (Mc 10, 21). De certeza que Ele estava plenamente presente
diante de cada ser humano e de cada criatura, mostrando-nos assim um caminho
para superar a ansiedade doentia que nos torna superficiais, agressivos e
consumistas desenfreados.
227. Uma expressão desta atitude é parar a
agradecer a Deus antes e depois das refeições. Proponho aos crentes que retomem
este hábito importante e o vivam profundamente. Este momento da bênção da mesa,
embora muito breve, recorda-nos que a nossa vida depende de Deus, fortalece o
nosso sentido de gratidão pelos dons da criação, dá graças por aqueles que com
o seu trabalho fornecem estes bens, e reforça a solidariedade com os mais
necessitados.
5. Amor civil e político
228. O cuidado da natureza faz parte dum estilo de
vida que implica capacidade de viver juntos e de comunhão. Jesus lembrou-nos
que temos Deus como nosso Pai comum e que isto nos torna irmãos. O amor
fraterno só pode ser gratuito, nunca pode ser uma paga a outrem pelo que
realizou, nem um adiantamento pelo que esperamos venha a fazer. Por isso, é
possível amar os inimigos. Esta mesma gratuidade leva-nos a amar e aceitar o
vento, o sol ou as nuvens, embora não se submetam ao nosso controle. Assim
podemos falar duma fraternidade universal.
229. É necessário voltar a sentir que precisamos
uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo,
que vale a pena ser bons e honestos. Vivemos já muito tempo na degradação
moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento
de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal
destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra
os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas
formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento duma verdadeira cultura
do cuidado do meio ambiente.
230. O exemplo de Santa Teresa de Lisieux
convida-nos a pôr em prática o pequeno caminho do amor, a não perder a
oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso, de qualquer pequeno gesto que
semeie paz e amizade. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos
quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do
egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo exacerbado é, simultaneamente, o
mundo que maltrata a vida em todas as suas formas.
231. O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado
mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as acções que
procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem
comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre os
indivíduos, mas também «as macrorrelações como relacionamentos sociais,
económicos, políticos».[156] Por isso, a Igreja propôs ao mundo o ideal
duma «civilização do amor».[157] O amor social é a chave para um
desenvolvimento autêntico: «Para tornar a sociedade mais humana, mais digna da
pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social – nos planos político,
económico, cultural – fazendo dele a norma constante e suprema do agir».[158]
Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o
amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente
a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a
sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente
com os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que isto faz parte da
sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se
santifica.
232. Nem todos são chamados a trabalhar de forma
directa na política, mas no seio da sociedade floresce uma variedade inumerável
de associações que intervêm em prol do bem comum, defendendo o meio ambiente
natural e urbano. Por exemplo, preocupam-se com um lugar público (um edifício,
uma fonte, um monumento abandonado, uma paisagem, uma praça) para proteger,
sanar, melhorar ou embelezar algo que é de todos. Ao seu redor, desenvolvem-se
ou recuperam-se vínculos, fazendo surgir um novo tecido social local. Assim,
uma comunidade liberta-se da indiferença consumista. Isto significa também
cultivar uma identidade comum, uma história que se conserva e transmite. Desta
forma cuida-se do mundo e da qualidade de vida dos mais pobres, com um sentido
de solidariedade que é, ao mesmo tempo, consciência de habitar numa casa comum
que Deus nos confiou. Estas acções comunitárias, quando exprimem um amor que se
doa, podem transformar-se em experiências espirituais intensas.
6. Os sinais sacramentais e o descanso
celebrativo
233. O universo desenvolve-se em Deus, que o
preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha,
numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre.[159] O ideal não é só passar
da exterioridade à interioridade para descobrir a acção de Deus na alma, mas
também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas, como ensinava São Boaventura:
«A contemplação é tanto mais elevada quanto mais o homem sente em si mesmo o
efeito da graça divina ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras
criaturas».[160]
234. São João da Cruz ensinava que tudo o que há
de bom nas coisas e experiências do mundo «encontra-se eminentemente em Deus de
maneira infinita ou, melhor, Ele é cada uma destas grandezas que se pregam».[161]
E isto, não porque as coisas limitadas do mundo sejam realmente divinas, mas
porque o místico experimenta a ligação íntima que há entre Deus e todos os
seres vivos e, deste modo, «sente que Deus é para ele todas as coisas».[162]
Quando admira a grandeza duma montanha, não pode separar isto de Deus, e
percebe que tal admiração interior que ele vive, deve finalizar no Senhor: «As
montanhas têm cumes, são altas, imponentes, belas, graciosas, floridas e
perfumadas. Como estas montanhas, é o meu Amado para mim. Os vales solitários
são tranquilos, amenos, frescos, sombreados, ricos de doces águas. Pela
variedade das suas árvores e pelo canto suave das aves, oferecem grande
divertimento e encanto aos sentidos e, na sua solidão e silêncio, dão
refrigério e repouso: como estes vales, é o meu Amado para mim».[163]
235. Os sacramentos constituem um modo
privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação
da vida sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o mundo num
plano diferente. A água, o azeite, o fogo e as cores são assumidas com toda a
sua força simbólica e incorporam-se no louvor. A mão que abençoa é instrumento
do amor de Deus e reflexo da proximidade de Cristo, que veio para Se fazer
nosso companheiro no caminho da vida. A água derramada sobre o corpo da criança
baptizada, é sinal de vida nova. Não fugimos do mundo, nem negamos a natureza,
quando queremos encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente na
espiritualidade do Oriente cristão. «A beleza, que no Oriente é um dos nomes
mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade
transfigurada, mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas
cores, nas luzes, nos perfumes».[164] Segundo a experiência cristã,
todas as criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no
Verbo encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo
material, onde introduziu um gérmen de transformação definitiva: «O
cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada
plenamente no acto litúrgico, onde o corpo humano mostra sua íntima natureza de
templo do Espírito Santo e chega a unir-se a Jesus Senhor, feito também Ele
corpo para a salvação do mundo».[165]
236. A criação encontra a sua maior elevação na
Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma
expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de
fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor
quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz de cima,
mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na
Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo,
centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado,
presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia
é, por si mesma, um acto de amor cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando
tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre
celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo».[166] A Eucaristia une
o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de
Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, «a criação
propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o
próprio Criador».[167] Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação
para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da
criação inteira.
237. A participação na Eucaristia é especialmente
importante ao domingo. Este dia, à semelhança do sábado judaico, é-nos
oferecido como dia de cura das relações do ser humano com Deus, consigo mesmo,
com os outros e com o mundo. O domingo é o dia da Ressurreição, o
«primeiro dia» da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade
ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a realidade
criada. Além disso, este dia anuncia «o descanso eterno do homem, em Deus».[168]
Assim, a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O ser
humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do
inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o
seu significado. Na nossa actividade, somos chamados a incluir uma dimensão
receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inactividade. Trata-se
doutra maneira de agir, que pertence à nossa essência. Assim, a acção humana é
preservada não só do activismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da
consciência que se isola buscando apenas o benefício pessoal. A lei do repouso
semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, «para que descansem o teu
boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro
residente» (Ex 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar
a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a
Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o
cuidado da natureza e dos pobres.
7. A Trindade e a relação entre as criaturas
238. O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso
e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflecte e por Quem tudo
foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O
Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do
universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado pelas três
Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra
comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, «quando, admirados,
contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira
Trindade».[169]
239. Para os cristãos, acreditar num Deus único
que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si
mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que o ser
humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura «testemunha que
Deus é trino». O reflexo da Trindade podia-se reconhecer na natureza, «quando
esse livro não era obscuro para o homem, nem a vista do homem se tinha
turvado».[170] Este santo franciscano ensina-nos que toda a criatura
traz em si uma estrutura propriamente trinitária, tão real que poderia ser
contemplada espontaneamente, se o olhar do ser humano não estivesse limitado,
obscurecido e fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio de tentar ler a realidade
em chave trinitária.
240. As Pessoas divinas são relações subsistentes;
e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações. As
criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez,
para outra realidade, de modo que, no seio do universo, podemos encontrar uma
série inumerável de relações constantes que secretamente se entrelaçam.[171]
Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que existem entre as
criaturas, mas leva-nos também a descobrir uma chave da nossa própria
realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto
mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com
Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria
existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua
criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma
espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade.
8. A Rainha de toda a criação
241. Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida
com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o
coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se compadece do
sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo exterminadas pelo
poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente transfigurada, e todas as
criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher «vestida de sol, com a lua debaixo
dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça» (Ap12, 1). Elevada ao céu,
é Mãe e Rainha de toda a criação. No seu corpo glorificado, juntamente com
Cristo ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude da sua beleza.
Maria não só conserva no seu coração toda a vida de Jesus, que «guardava»
cuidadosamente (cf.Lc2, 51), mas agora compreende também o sentido de todas as
coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a contemplar este mundo com
um olhar mais sapiente.
242. E ao lado d’Ela, na sagrada família de
Nazaré, destaca-se a figura de São José. Com o seu trabalho e presença
generosa, cuidou e defendeu Maria e Jesus e livrou-os da violência dos
injustos, levando-os para o Egipto. No Evangelho, aparece descrito como um
homem justo, trabalhador, forte; mas, da sua figura, emana também uma grande
ternura, própria não de quem é fraco mas de quem é verdadeiramente forte,
atento à realidade para amar e servir humildemente. Por isso, foi declarado
protector da Igreja universal. Também Ele nos pode ensinar a cuidar, pode
motivar-nos a trabalhar com generosidade e ternura para proteger este mundo que
Deus nos confiou.
9. Para além do sol
243. No fim, encontrar-nos-emos face a face com a
beleza infinita de Deus (cf.1 Cor13, 12) e poderemos ler, com jubilosa
admiração, o mistério do universo, o qual terá parte connosco na plenitude sem
fim. Estamos a caminhar para o sábado da eternidade, para a nova Jerusalém,
para a casa comum do Céu. Diz-nos Jesus: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21,
5). A vida eterna será uma maravilha compartilhada, onde cada criatura,
esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para oferecer
aos pobres definitivamente libertados.
244. Na expectativa da vida eterna, unimo-nos para
tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que aquilo de bom
que há nela será assumido na festa do Céu. Juntamente com todas as criaturas,
caminhamos nesta terra à procura de Deus, porque, «se o mundo tem um princípio
e foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu início, aquele que é o
seu Criador».[172] Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa
preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança.
245. Deus, que nos chama a uma generosa entrega e
a oferecer-Lhe tudo, também nos dá as forças e a luz de que necessitamos para
prosseguir. No coração deste mundo, permanece presente o Senhor da vida que
tanto nos ama. Não nos abandona, não nos deixa sozinhos, porque Se uniu
definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva a encontrar novos
caminhos. Que Ele seja louvado!
* * *
246. Depois desta longa reflexão, jubilosa e ao
mesmo tempo dramática, proponho duas orações: uma que podemos partilhar todos
quantos acreditam num Deus Criador Omnipotente, e outra pedindo que nós,
cristãos, saibamos assumir os compromissos para com a criação que o Evangelho
de Jesus nos propõe.
Oração pela nossa terra
Deus Omnipotente,
que estais presente em todo o universo
e na mais pequenina das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.
Oração cristã com a criação
Nós Vos louvamos, Pai,
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão poderosa.
São vossas e estão repletas da vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
Filho de Deus, Jesus,
por Vós foram criadas todas as coisas.
Fostes formado no seio materno de Maria,
fizestes-Vos parte desta terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada criatura
com a vossa glória de ressuscitado.
Louvado sejais!
Espírito Santo, que, com a vossa luz,
guiais este mundo para o amor do Pai
e acompanhais o gemido da criação,
Vós viveis também nos nossos corações
a fim de nos impelir para o bem.
Louvado sejais!
Senhor Deus, Uno e Trino,
comunidade estupenda de amor infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar neste mundo
como instrumentos do vosso carinho
por todos os seres desta terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e beleza.
Louvado sejais!
Amen.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 24 de
Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015, terceiro ano do meu Pontificado.
Franciscus
[1] Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263.
[2] Carta ap. Octogesima adveniens (14 de Maio de 1971),
21: AAS 63 (1971), 416-417.
[3] Discurso à FAO, no seu XXV aniversário (16
de Novembro de 1970), 4: AAS 62 (1970), 833; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 22/XI/1970), 6.
[4] Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979),15:
AAS 71 (1979), 287.
[5] Cf. Catequese (17 de Janeiro de 2001), 4:
Insegnamenti24/1 (2001), 179; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
20/I/2001), 8.
[6] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 38:
AAS 83 (1991), 841.
[7] Ibid., 58: o. c.,863.
[8] João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de
1987), 34: AAS 80 (1988), 559.
[9] Cf. Idem, Carta enc. Centesimus annus(1 de Maio de 1991), 37:
AAS 83 (1991), 840.
[10] Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da
Santa Sé (8 de Janeiro de 2007): AAS 99 (2007), 73.
[11] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
51:AAS 101 (2009), 687.
[12] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de
Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 664; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
24/IX/2011), 5.
[13] Bento XVI, Discurso ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone
(6 de Agosto de 2008): AAS 100 (2008), 634; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 16/VIII/2008), 5.
[14] Mensagem para o Dia de Oração pela salvaguarda da
criação (1 de Setembro de 2012).
[15] Discurso em Santa Bárbara, Califórnia (8 de
Novembro de 1997); cf. John Chryssavgis, On Earth as in Heaven: Ecological
Vision and Initiatives of Ecumenical Patriarch Bartholomew (Bronx/Nova Iorque
2012).
[16] Ibidem.
[17] Conferência no Mosteiro de Utstein, Noruega (23
de Junho de 2003).
[18] Bartolomeu, Discurso Global Responsibility and
Ecological Sustainability: Closing Remarks, I Cimeira de Halki, Istambul (20 de
Junho de 2012).
[19] Tomás de Celano, Vita prima di San Francesco,
XXIX, 81: Fonti Francescane, 460.
[20] Legenda Maior, VIII, 6: Fonti Francescane, 1145.
[21] Cf. Tomás de Celano, Vita seconda di San
Francesco, CXXIV, 165: Fonti Francescane, 750.
[22] Conferência dos Bispos Católicos da África do
Sul, Pastoral Statement on the Environmental Crisis (5 de Setembro de 1999).
[23] Cf. Francisco, Saudação aos funcionários da FAO (20 de
Novembro de 2014): AAS 106 (2014), 985; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
27/XI/2014), 3.
[24] V Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 86.
[25] Conferência dos Bispos Católicos das Filipinas,
Carta pastoral What is Happening to our Beautiful Land? (29 de Janeiro de
1988).
[26] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral
El universo, don de Dios para la vida (2012), 17.
[27] Cf. Conferência Episcopal Alemã – Comissão para a
pastoral social, Der Klimawandel: Brennpunkt globaler, intergenerationeller und
ökologischer Gerechtigkeit (Setembro de 2006), 28-30.
[28] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
483.
[29] Francisco, Catequese (5 de Junho de 2013):
Insegnamenti1/1 (2013), 280; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
9/VI/2013), 16.
[30] Bispos da região da Patagónia-Comahue
(Argentina), Mensaje de Navidad (Dezembro de 2009), 2.
[31] Conferência dos Bispos Católicos dos Estados
Unidos da América, Global Climate Change: A Plea for Dialogue, Prudence and the
Common Good (15 de Junho de 2001).
[32] V Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007),
471.
[33] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
56: AAS 105 (2013), 1043.
[34] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
12: AAS 82 (1990), 154.
[35] Idem, Catequese (17 de Janeiro de 2001), 3:
Insegnamenti 24/1 (2001), 178; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
20/I/2001), 8.
[36] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
15: AAS 82 (1990), 156.
[37] Catecismo da Igreja Católica, 357.
[38] Angelus com os inválidos, Osnabrük /
Alemanha (16 de Novembro de 1980): Insegnamenti 3/2 (1980), 1232; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 23/XI/1980), 20.
[39] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério Petrino
(24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa
de 30/IV/2015), 5.
[40] Cf. Legenda Maior, VIII, 1: Fonti Francescane,
1134.
[41] Catecismo da Igreja Católica, 2416.
[42] Conferência Episcopal Alemã, Zukunft der
Schöpfung – Zukunft der Menschheit. Erklärung der Deutschen Bischofskonferenz
zu Fragen der Umwelt und der Energieversorgung (1980), II, 2.
[43] Catecismo da Igreja Católica, 339.
[44] Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 10: PG 29, 9.
[45] Divina Commedia. Paradiso, Canto XXXIII, 145.
[46] Bento XVI, Catequese (9 de Novembro de 2005), 3:
Insegnamenti1 (2005), 768; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12/XI/2005),
24.
[47] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
51:AAS101 (2009), 687.
[48] João Paulo II, Catequese (24 de Abril de
1991), 6: Insegnamenti14/1 (1991), 856; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
28/IV/1991), 12.
[49] O Catecismo ensina que Deus quis criar um mundo
em caminho para a perfeição última, o que implica a presença da imperfeição e
do mal físico: ver Catecismo da Igreja Católica,310.
[50] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a
Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36.
[51] Tomás de Aquino, Summa theologiaeI, q. 104, art.
1, ad 4.
[52] Idem, In octo libros Physicorum Aristotelis
expositio, lib. II, lectio 14.
[53] Coloca-se, nesta perspectiva, a contribuição do
P. Teilhard de Chardin; veja-se Paulo
VI, Discurso numa fábrica químico-farmacêutico (24 de Fevereiro de
1966): Insegnamenti 4 (1966), 992-993; João Paulo II, Carta ao reverendo P. George
V. Coyne (1 de Junho de 1988): Insegnamenti 11/2 (1988), 1715; Bento XVI, Homilia na Celebração das Vésperas, em Aosta
(24 de Julho de 2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60.
[54] João Paulo II, Catequese (30 de Janeiro de 2002), 6:
Insegnamenti 25/1 (2002), 140; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
2/II/2002), 12.
[55] Conferência Episcopal do Canadá - Comissão para a
Pastoral Social, You love all that exists… All things are yours, God, Lover of
Life (4 de Outubro de 2003), 1.
[56] Conferência dos Bispos Católicos do Japão,
Reverence for Life. A Message for the Twenty-First Century (1 de Janeiro de
2001), 89.
[57] João Paulo II, Catequese (26 de Janeiro de 2000), 5:
Insegnamenti23/1 (2000), 123;L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
29/I/2000), 8.
[58] Idem, Catequese (2 de Agosto de 2000), 3:
Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
5/VIII/2000), 8.
[59] Paul Ricoeur, Philosophie de la volonté. 2ª
parte:Finitude et culpabilité (Paris 2009), 216.
[60] Summa theologiae I, q. 47, art. 1.
[61] Ibidem.
[62] Cf.ibid., art. 2, ad. 1; art. 3.
[63] Catecismo da Igreja Católica, 340.
[64] Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263.
[65] Cf. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, A
Igreja e a questão ecológica (1992), 53-54.
[66] Ibid., 61.
[67] Francisco, Exort. ap.Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
215: AAS105 (2013), 1109.
[68] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate(29 de Junho de 2009),
14:AAS101 (2009), 650.
[69] Catecismo da Igreja Católica, 2418.
[70] Conferência do Episcopado Dominicano, Carta
pastoral Sobre la relación del hombre con la naturaleza (21 de Janeiro de
1987).
[71] João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de
1981),19: AAS 73 (1981), 626.
[72] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 31:
AAS 83 (1991), 831.
[73] Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de
1987), 33:AAS 80 (1988), 557.
[74] Discurso aos indígenas e agricultores do México,
em Cuilapán (29 de Janeiro de 1979), 6: AAS 71 (1979), 209; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 11/II/1979), 4.
[75] Homilia na Missa celebrada para os agricultores,
em Recife/Brasil (7 de Julho de 1980), 4: AAS 72 (1980), 926;L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 20/VII/1980), 13.
[76] Cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
8: AAS 82 (1990), 152.
[77] Conferência Episcopal do Paraguai, Carta pastoral
El campesino paraguayo y la tierra (12 de Junho de 1983), 2, 4, d.
[78] Conferência Episcopal da Nova Zelândia, Statement
on Environmental Issues (1 de Setembro de 2006).
[79]Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de 1981),
27: AAS 73 (1981), 645.
[80] Por isso, São Justino podia falar de «sementes do
Verbo» no mundo. Cf. II Apologia 8, 1-2; 13, 3-6: PG 6, 457-458; 467.
[81] João Paulo II, Discurso aos representantes da ciência, da cultura e
dos estudos superiores na Universidade das Nações Unidas, em
Hiroxima (25 de Fevereiro de 1981), 3: AAS 73 (1981), 422.
[82] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
69:AAS 101 (2009), 702.
[83] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit(Würzburg9 1965),
87.
[84] Ibidem.
[85] Ibid., 87-88.
[86] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
462.
[87] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965),
63-64.
[88] Ibid., 64.
[89] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
35: AAS 101 (2009), 671.
[90] Ibid., 22: o. c., 657.
[91] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
231: AAS 105 (2013), 1114.
[92] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965),
63.
[93] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 38:
AAS83 (1991), 841.
[94] Cf. Declaração Love for Creation. An Asian
Response to the Ecological Crisis: Colóquio promovido pela Federação das
Conferências Episcopais da Ásia, Tagaytay (31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de
1993), 3.3.2.
[95] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991),37:
AAS 83 (1991), 840.
[96] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010,
2: AAS 102 (2010), 41.
[97] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
28:AAS 101 (2009), 663.
[98] Cf. Vicente de Lerins, Commonitorium primum, cap.
23: PL 50, 668: «Ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur
aetate – Fortalece-se com o decorrer dos anos, desenvolve-se com o andar dos
tempos, cresce através das idades».
[99] N. 80: AAS 105 (2013), 1053.
[100] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja
no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 63.
[101] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 37:
AAS 83 (1991), 840.
[102] Paulo
VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967),
34: AAS 59 (1967), 274.
[103] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
32: AAS 101 (2009), 666.
[104] Ibidem.
[105] Ibidem.
[106] Catecismo da Igreja Católica, 2417.
[107] Ibid., 2418.
[108] Ibid., 2415.
[109] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
6: AAS 82 (1990), 150.
[110] Discurso à Pontifícia Academia das Ciências
(3 de Outubro de 1981), 3: Insegnamenti 4/2 (1981), 333; L’Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 11/X/1981), 8.
[111] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
7: AAS 82 (1990), 151.
[112] João Paulo II, Discurso à 35ª Assembleia
Geral da Associação Médica Mundial (29 de Outubro de 1983), 6: AAS 76
(1984), 394; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 13/XI/1983), 7.
[113] Conferência Episcopal da Argentina – Comissão de
Pastoral Social, Una tierra para todos (Junho de 2005), 19.
[114] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992), princípio 4.
[115] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
237: AAS 105 (2013), 1116.
[116] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
51: AAS 101 (2009), 687.
[117] Alguns autores puseram em evidência os valores
que muitas vezes se vivem, por exemplo, nas «villas», «chabolas» ou favelas da
América Latina: ver Juan Carlos Scannone S.I., «La irrupción del pobre y la lógica
de la gratuidad», in Juan Carlos Scannone e Marcelo Perine (eds.), Irrupción
del pobre y quehacer filosófico. Hacia una nueva racionalidad (Buenos Aires
1993), 225-230.
[118] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
482.
[119] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
210: AAS 105 (2013), 1107.
[120] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de
Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 668; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
24/IX/2011), 5.
[121] Francisco, Catequese (15 de Abril de 2015):
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 16/IV/2015), 20.
[122] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja
no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 26.
[123] Cf. nn. 186-201:AAS 105 (2013), 1098-1105.
[124] Conferência Episcopal Portuguesa, Carta pastoral
Responsabilidade solidária pelo bem comum (15 de Setembro de 2003), 20.
[125] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010,
8: AAS 102 (2010), 45.
[126] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992), princípio 1.
[127] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral
El universo, don de Dios para la vida (2012), 86.
[128] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Doc.
Energia, Giustizia e Pace (Cidade do Vaticano 2013), 56.
[129] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
67: AAS 101 (2009), 700.
[130] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
222: AAS 105 (2013), 1111.
[131] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
469.
[132] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (14 de Junho de 1992), princípio 15.
[133] Cf. Conferência Episcopal do México – Comissão de
Pastoral Social, Jesucristo, vida y esperanza de los indígenas y campesinos (14
de Janeiro de 2008).
[134] Pontifício Conselho «Justiça e Paz»,Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
470.
[135] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010,
9: AAS 102 (2010), 46.
[136] Ibidem.
[137] Ibid., 5: o. c., 43.
[138] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
50: AAS 101 (2009), 686.
[139] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
209: AAS 105 (2013), 1107.
[140] Ibid., 228: o. c., 1113.
[141] Cf. Francisco, Carta enc. Lumen fidei (29 de Junho de 2013), 34 [AAS
105 (2013), 577]: «Enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia
ao mundo material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é
luz encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a
matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais
amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício
da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua
riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a
pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que
a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério
da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que
se abre aos estudos da ciência».
[142] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
256: AAS 105 (2013), 1123.
[143] Ibid., 231: o. c., 1114.
[144] Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965),
66-67.
[145] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
1: AAS 82 (1990), 147.
[146] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
66:AAS101 (2009), 699.
[147] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010,
11: AAS 102 (2010), 48.
[148] Carta da Terra, Haia (29 de Junho de 2000).
[149] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 39:
AAS 83 (1991), 842.
[150] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,
14: AAS 82 (1990), 155.
[151] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
261: AAS105 (2013), 1124.
[152] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério Petrino
(24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa
de 30/IV/2005), 5.
[153] Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, A
New Earth - The Environmental Challenge (2002).
[154] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965),
72.
[155] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
71: AAS 105 (2013), 1050.
[156] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009),
2:AAS 101 (2009), 642.
[157] Paulo
VI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1977:
AAS 68 (1976), 709.
[158] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
582.
[159] Um mestre espiritual, Ali Al-Khawwas, partindo da
sua própria experiência, assinalava a necessidade de não separar demasiado as
criaturas do mundo e a experiência de Deus na interioridade. Dizia ele: «Não é
preciso criticar preconceituosamente aqueles que procuram o êxtase na música ou
na poesia. Há um “segredo” subtil em cada um dos movimentos e dos sons deste
mundo. Os iniciados chegam a captar o que dizem o vento que sopra, as árvores
que se curvam, a água que corre, as moscas que zunem, as portas que rangem, o
canto dos pássaros, o dedilhar de cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos
enfermos, o gemido dos aflitos…» [Eva De Vitray-Meyerovitch (ed.), Anthologie
du soufisme (Paris 1978), 200].
[160] In II Sententiarum, 23, 2, 3.
[161] Cántico Espiritual,XIV, 5.
[162] Ibidem.
[163] Ibid., XIV, 6-7.
[164] João Paulo II, Carta ap. Orientale lumen (2 de Maio de 1995),11: AAS
87 (1995), 757.
[165] Ibidem.
[166] Idem, Carta enc.Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de
2003), 8: AAS 95 (2003), 438.
[167] Bento XVI, Homilia na Missa de Corpus Christi (15
de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 513; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
24/VI/2006), 3.
[168] Catecismo da Igreja Católica, 2175.
[169] João Paulo II, Catequese (2 de Agosto de 2000), 4:
Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
5/VIII/2000), 8.
[170] Quaestiones disputatae de Mysterio Trinitatis, 1,
2, concl.
[171] Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae I, q. 11,
art. 3; q. 21, art. 1, ad 3; q. 47, art. 3.
[172] Basílio Magno, Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 6: PG
29, 8.
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