É conhecida a expressão que define a Escritura como o
«grande códice» da civilização ocidental, ou seja, o ponto de referência não só
para a fé, mas também para a cultura de todos. Basta cruzar a entrada de uma pinacoteca
ou estudar a literatura dos séculos passados para constatar que boa parte da
arte e dos escritos é incompreensível sem a Bíblia.
Um dos muitíssimos temas sagrados representados é a
cena familiar de Maria, José e do pequeno Jesus dispostos quase como que em
pose, como acontece nos nossos dias nos instantâneos fotográficos das famílias.
O mais comum destes quadros, que no passado marcou presença em muitas casas
cristãs, é a Sagrada Família de Bartolomé E. Murillo (1617-1682), pintor
espanhol de Sevilha, conservado no Museu do Prado, em Madrid.
Quanto a mim, gostaria de propor outra tela. Há alguns
anos, ao visitar o Museu Hermitage de S. Petersburgo, fiquei durante longo
tempo na sala onde estão colocadas várias obras de Rembrandt, grande pintor e
gravador holandês do séc. XVII. Conquistou-me, com efeito, a sua extraordinária
releitura da denominada “parábola do filho pródigo”, do Evangelho segundo Lucas
(11, 11-32), centrada na figura do pai que acolhe a abraça o filho.
Naquela ocasião descobri uma curiosa e doce Sagrada
Família que o artista terá pintado cerca do ano 1645. A representação respondia
a um critério típico da arte cristã: “atualizar” o texto bíblico, incarnando-o
na existência quotidiana. Neste caso, impressiona Maria, que, toda inclinada
sobre o berço do seu pequenino, como uma mãe cuidadosa, ajeita uma pequena
coberta sobre a parte superior, com a mão direita, enquanto que na esquerda
segura uma Bíblia.
É significativa a atmosfera realista desta pequena
cena, mesmo no menino Jesus que dorme placidamente e que Maria quer proteger da
luz com o pano que estende. A ternura do conjunto revela um aspeto
“atualizante”: Rembrandt tinha experimentado mais de uma vez na sua vida a
perda de um filho recém-nascido. O quotidiano continua a manifestar-se com a
figura de José, concentrado no seu trabalho de carpinteiro. E é precisamente no
seu gesto – como no de Maria – que se entrevê a dimensão teológica que o pintor
queria atribuir ao retrato.
José, com efeito, está a trabalhar um tronco, e a
forma resultante, ainda ambígua, pode ser a de um jugo, que recorda a frase de
Jesus: «O meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (Mateus 11,30). Ou poderia
tratar-se do poste evocativo da cruz, o último destino terreno daquele Menino.
O gesto da Mãe poderia aludir à cobertura de Cristo
com a pedra tumular. Muitos ícones russos, efetivamente, a partir da Escola de
Novgorod (séc. XV), representam a manjedoura em que é deposto o pequeno Jesus
como um sepulcro. E os anjos em voo na tela de Rembrandt confirmam esta interseção,
na família de Nazaré, entre divino e humano, entre história e eternidade.
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "Famiglia Cristiana"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 6.1.2015
in http://www.snpcultura.org/a_sagrada_familia_de_rembrandt.html
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