As notícias do que se passa no sínodo dos bispos dão conta de um
debate acesso entre duas tendências que, afinal, vêm de muito longe no tempo.
O casamento cristão é indissolúvel. Este palavrão significa que
nada, a não ser a morte, pode dissolver o vínculo que se estabelece entre
marido e mulher. Embora o matrimónio tenha sido, desde os inícios do
cristianismo, considerado indissolúvel, esta indissolubilidade conheceu sempre
algumas nuances de interpretação – e da respectiva gestão pastoral.
Ao contrário da sensação comum, a questão de como lidar com
casamento-divórcio-recasamento, é tudo menos recente. Logo na era apostólica
surgem diferentes sensibilidades e mesmo propostas de solução. O próprio Novo
Testamento testemunha duas destas possibilidades. Segundo o Evangelho de
Mateus, Jesus diz: “se alguém repudiar a sua mulher – exceto em caso de
adultério – e casar com outra, comete adultério” (Mt 19, 9; cf. Mt 5, 32).
Mateus, dirigindo-se a uma comunidade judaica, onde o divórcio era de aceitação
comum, introduziu uma exceção. Do mesmo modo atua S. Paulo, dirigindo-se aos
coríntios, onde surgiam uniões entre os que se convertiam ao cristianismo e os
gentios. O apóstolo afirma mesmo: “digo eu, não o Senhor” (1Cor,12) para
permitir que um cristão que se separe do seu cônjuge não-cristão possa casar-se
de novo. Mateus e Paulo, conhecendo perfeitamente o ensinamento de Jesus, não
consideraram que introduzir-lhe exceções pastorais fosse uma traição ao Senhor.
Estas duas exceções não foram postas de lado. Pelo contrário, são hoje
praticadas na Igreja. Na Igreja Ortodoxa invoca-se a exceção de Mateus e na
Igreja Católica continua a praticar-se a exceção de Paulo no que respeita aos
casamentos mistos.
Não há, durante quase todo o primeiro milénio, uma voz única na
Igreja sobre esta matéria, especialmente no que se refere à atitude pastoral.
Encontramos ensinamentos não uniformes em todos os Padres da Igreja, embora, em
geral, todos ensinem a indissolubilidade matrimonial. Mesmo assim, é verdade
que desde o início, uns levavam em conta a cláusula da exceção de Mateus;
outros seguiam o ensinamento de S. Paulo quanto à possibilidade de dissolução
de casamentos entre cristãos e não crentes (1Cor 12-16); e outros ainda, embora
sustentando que não era conforme a letra das Escrituras, permitiam o divórcio e
o novo casamento invocando a misericórdia de Deus – também ela presente no todo
das Escrituras.
É, portanto, um debate antigo. S. Basílio (séc. IV), usa a
expressão “o perdão ser-lhe-á garantido de modo a que venha a receber a
comunhão”. Esta era uma atitude que estava de acordo com o Concílio de Niceia
(325), onde lemos que “os que se chamam a si mesmos os puros terão de comungar
com aqueles que se casaram pela segunda vez … cujo tempo [de penitência] foi
estabelecido e cujo momento de reconciliação chegou” (c.8).
Quando em 1439, no Concílio de Florença, o Papa pede aos bispos
gregos para abolirem o divórcio, é a autoridade de Niceia e de Basílio que lhes
permite responder que os casamentos no Oriente só foram dissolvidos com razões
válidas. Essa mesma atitude pastoral do Oriente levou os bispos do Concílio de
Trento (séc. XVI) a elaborar um anátema cuidadosamente redigido, visando Lutero
mas não a Igreja Ortodoxa.
Kasper e Burke representam duas facções tão antigas quanto a
Igreja
As notícias do que se passa no sínodo dos bispos dão conta de um
debate acesso entre duas tendências que, afinal, vêm de muito longe no tempo.
O cardeal norte-americano Raymond Burke afirma que o relatório
intermédio publicado pelo cardeal Péter Erdo avança posições que muitos padres
sinodais não aceitam. Ao contrário, o cardeal alemão Walter Kasper afirma que
uma maioria crescente entre os prelados acredita que pode haver uma maior
abertura no modo de lidar com a situação dos cristãos divorciados recasados.
O que está realmente em questão? Não, certamente, a
indissolubilidade do matrimónio. Kasper é peremptório. Nem nunca viria uma
diretriz de carácter universal para “os recasados”. O que se discute é se,
nalguns casos concretos, bem determinados, é possível encontrar-se uma solução
pastoral que passe por readmitir pessoas recasadas à comunhão sacramental. Esta
foi uma posição também defendida pelo padre e professor Joseph Ratzinger nos
anos 70. A doutrina ensina o conteúdo da fé e o direito canónico define e explicita-o
em lei. Mas talvez o critério último da ação da Igreja pudesse ser uma atitude
pastoral de misericórdia que, sem contrariar a doutrina, pudesse ir mais longe,
já que “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2,13).
Esta é a posição do cardeal Kasper que invoca a Tradição da
Igreja. De facto, apesar de nunca terem desistido de entender o matrimónio como
uma relação indissolúvel, muitos Padres da Igreja permitiam que, com o
reconhecimento da falha do primeiro casamento e após um período de penitência,
aqueles que viviam em segundas uniões podiam ser acolhidos de novo na comunhão
plena da comunidade e ter acesso aos sacramentos.
Burke, por seu lado, representa os que receiam que a alteração
da atitude pastoral venha a alterar a doutrina. E evocam que a união com Cristo
se adquire também com outros meios, como por exemplo a “comunhão espiritual”.
Ao que o contra-ataque pergunta: mas o que é a comunhão sacramental se não uma
comunhão espiritual? E se é possível ter acesso à comunhão espiritual, porque não
à sacramental?
É sabido que não vamos ter nenhuma resolução neste domingo.
Afinal esta era apenas uma sessão extraordinária. O “sínodo verdadeiro” é daqui
a um ano. E até lá, com a discussão a um nível de abertura nunca antes visto no
Vaticano, muito há de acontecer.
P. Miguel Almeida, Sacerdote jesuíta
In
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