Num
tempo em que a espiritualidade típica da New Age invade a nossa sociedade,
trazendo consigo novas divindades, a crença fundamentalista na tecnologia e na
ciência, novas relações humanas, uma nova visão cosmológica e antropológica do
mundo, a obsessão pela economia e a alteração dos princípios morais, faz com
que a celebração da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo confira ainda mais
sentido nos dias de hoje, no intuito de demonstrar à sociedade que o Deus no
qual nós acreditamos é, ao contrário do que se possa pensar, um Deus pessoal,
vivo e próximo do Homem.
2.
Liturgia da Palavra
Nessa
linha, o evangelho ensina-nos que “comer o pão descido do céu” é o mesmo que
“comer a carne do Filho do Homem”. E “comer a carne do Filho do Homem”
significa comer, acolher e assumir interiormente a identidade, o discurso e o
estilo de vida da pessoa que nos revelou Deus: Jesus, o Cristo.
Além
disso, pela etimologia grega do verbo usado pelo evangelista, compreendemos que
Jesus não quer apenas que comamos o pão, mas mais do que isso: que o trinquemos,
o trituremos e o mastiguemos, desvelando assim a intensidade e profundidade
cristã com que pretende que o façamos.
A
eucaristia é, por isso, o sacramento em que se torna visível, de um modo mais
explícito, esta união e comunhão entre o Homem e o próprio Deus.[1] Por seu
turno, Paulo, no texto evocativo mais antigo referente à Eucaristia, refere na
carta aos Coríntios que há um só Deus, revelado num só pão, o que faz de nós
todos um só e mesmo corpo.
3.
Reflexão Teológica
Houve um tempo em que se pensava que a
Eucaristia era um privilégio de alguns, mas o Papa Francisco desfez todas as
dúvidas quando afirma na Evangelii Gaudium: «A Eucaristia, embora constitua a
plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um
remédio generoso e um alimento para os fracos.»[2]
A
liturgia transforma assim a nossa fé professada em fé celebrada. A eucaristia, enquanto acto litúrgico por
excelência, tem de ser o centro da nossa vida, reportando-nos depois para uma
fé vivida no meio dos outros. Já há muitos séculos atrás Frei Bartolomeu dos
Mártires dizia com razão: “A minha alma definha, quando não se levanta e inflama
pela recepção da Eucaristia.”
4.
Desafios Pastorais
Com base nesta reflexão, gostaria de deixar
hoje exclusivamente dois desafios pastorais. O primeiro diz respeito à
qualidade da nossa liturgia. Ao olhar o programa pastoral da Arquidiocese, arriscaria
dizer que esta eucaristia do Corpo e Sangue de Cristo é, sem dúvida, o momento
central do nosso ano pastoral. Trata-se, dessa forma, de um momento favorável
para avaliarmos o modo como preparamos, celebramos, estamos, rezamos,
respondemos e cantamos nas nossas celebrações. Durante o ano houve inúmeras
formações que o Departamento de Liturgia proporcionou a todos os agentes
litúrgicos. Mas agora falta a vossa parte!
É
hora de uma verdadeira revisão sobre o que ficará deste ano pastoral. Não peço
que façais celebrações pontifícias semanalmente, apenas que coloqueis ao
serviço da celebração as vossas qualidades. Não quero que reduzais a vossa
espiritualidade somente à eucaristia, mas que ela tenha a devida importância na
vossa vida. Não pretendo que a eucaristia seja o único foco da acção pastoral,
mas que seja o princípio, a orientação e o horizonte das vossas actividades.
Um
segundo desafio reporta a um pecado que cometemos muitas vezes na nossa vida:
chamar-lhe-ia o pecado do hotel. Ou seja, quando fazemos da nossa família
apenas um hotel onde vamos apenas comer, dormir e ver televisão, em vez de
fazer da nossa família um autêntico lar onde falamos, rezamos, debatemos,
brincamos e sorrimos em conjunto.
Mas
pior do que isso, é quando desperdiçamos aquele almoço de Domingo em família
(ou de outra ocasião semanal), para fazer desse momento uma refeição
verdadeiramente eucarística. Por outras palavras, uma refeição na qual nos
alimentamos, não só dos alimentos que estão sobre a mesa, mas também nos alimentamos
uns dos outros, através de uma relação mais viva e evidente que se expressa.
E
porquê? Porque quando nos sentamos à mesa, nós ficamos todos iguais, ao mesmo
nível, no mesmo patamar, e ficamos todos habilitamos para partilhar aquilo que
somos. Na verdade, creio que se este momento familiar for melhor aproveitado,
podemos evitar muitas situações desagradáveis e negativas nas nossas famílias.
Não
basta morar debaixo do mesmo tecto. Se “quando dois ou três estiverem reunidos
em meu nome, eu estarei no meio deles”, implica não desperdiçar o dom da
presença de Cristo e fazer sentir nos outros esta nossa alegria.
5.
Conclusão
Para
terminar, curiosas são as palavras do Pe. Abílio Correia que, após regressar do
serviço na capelania hospitalar à paróquia de S. Mamede de Este em 1938, disse:
“Por causa do Santíssimo Sacramento sacrifiquei tudo e voltei, porque foi aqui
nesta pobre freguesia, e pobre igreja e junto ao seu pobre sacrário, que eu
recebi as maiores graças temporais e espirituais da minha já longa vida”[3].
Diante
deste testemunho, reconhecemos que “não podemos prescindir da Eucaristia, pois
ela tem um antes e um depois, isto é, uma vida de encontros ou de desencontros,
de atenção aos outros ou de fechar os olhos dando assim alento à denominada ‘globalização
da indiferença’”.[4]
Por
isso, encaremos a vida nesta perspectiva litúrgica e façamos da nossa família
um autêntico lar eucarístico!
+
Jorge Ortiga, A.P., Sé Catedral de Braga, 22 de junho de 2014.
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