O Santo Padre confronta-nos com
uma verdade infelizmente inquestionável. A família atravessa uma grande e
profunda crise cultural, como tudo quanto implica ou exige vínculos
consistentes. Quando sabemos e experimentamos – hoje mais do que nunca - que a
família é a célula base da sociedade, devemos questionar-nos sobre as razões
destas fragilidades dos vínculos matrimoniais e comprometermo-nos com
testemunhos concretos de fidelidade trabalhando, assim, para que a família se
torne verdadeiramente naquilo que ela é.
Nem sempre é fácil para os casais
preservar o essencial da família, particularmente nesta relação com a
sociedade, estando dentro dela, sentindo-a no concreto a exercer uma influência
muito tenaz. É mais fácil deixar-se contaminar por este espírito que destrói o
essencial do que exercer influência. Daí que os casais cristãos, trabalhando na
sua fidelidade e felicidade familiar, devem reconhecer que lhes compete um
papel missionário de sair para ir ao encontro das famílias, dando-lhe
consistência, ou seja, trabalhando os seus conteúdos estruturais e mergulhando
nas suas feridas ou dramas, compreendendo-os para fazer laços de cumplicidade
de modo que sejam destruídos ou eliminados.
Concentrar-se no essencial da
vida matrimonial para não ter medo do encontro com as periferias, com
comportamentos e atitudes de quem percorre outros caminhos, exige formação. Daí
a importância dos grupos familiares que rezam, refletem e se comprometem
juntos, conhecendo-a no coração do mundo familiar como “sal” e “luz” na
linguagem evangélica. Se os outros virem “as boas obras” duma vida familiar
autêntica e coerente virão ao encontro daqueles que louvam a Deus.
O Santo Padre, pensando nesta
missão que compete às famílias, enumera três eixos à volta dos quais deve girar
a vida familiar com incidência no mundo: “aprender a conviver na diferença”,
“pertencer aos outros”, “transmitir a fé aos filhos” (E.G. 66). Nunca seremos
todos iguais nos pensamentos e atitudes. Importa respeitar a diversidade mesmo
não concordando. O egoísmo e individualismo são a fonte de muito relativismo
que pretende, só e apenas, uma auto-satisfação. Só aprendendo, nos pequenos
gestos a dar a vida, gratuitamente e sacrificadamente, mostramos que pertencemos
a um bem maior do que nós e que pode exigir-nos sacrifícios. Se a família é
convivência no diverso, é, particularmente, transmissão da fé como algo que se
imita pelo testemunho que se dá e, simultaneamente, por uma doutrina que se
transmite como mensagem de alegria e felicidade que poderá exigir um abraçar
sofrimentos para chegar à Ressurreição.
Quando isto entra nas
preocupações quotidianas, compreendemos que “o matrimónio tende a ser visto
como mera forma de gratificação afetiva, que se pode constituir de qualquer
maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um”. Mas o
matrimónio “não provém do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da
profundidade do compromisso assumido pelos esposos que aceitam entrar numa
união de vida total” (E.G. 66).
A Igreja nunca poderá fugir ou
renunciar a esta expressão genuína duma antropologia autêntica com valores
perenes e nunca desprovidos de atualidade. A Igreja propõe um estilo de vida,
talvez exigente, mas com a certeza dum humanismo autêntico.
A partir daqui, e numa nova
consciência duma dimensão missionária, os casais cristãos, o que quer dizer, a
Igreja, nunca poderão esquecer-se de que a Igreja é uma Igreja “em saída” com
duas atitudes muito concretas.
Em primeiro lugar, ela é “casa
aberta do Pai”, “uma casa com as portas abertas” o que significa que “todos
podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da
comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam fechar por uma
razão qualquer. Isto vale sobretudo quando se trata daquele sacramento que é a
“porta”: o Baptismo. A Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida
sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um
alimento para os fracos”. (E.G. 47) Para muitos estas palavras podem ferir os
ouvidos e incomodar interiormente. São, só e apenas, expressão dum Amor de Pai
que faz festa com o Filho Pródigo e que vai à procura das ovelhas perdidas. Daí
que o caminho a percorrer, na pastoral, me pareça verdadeiramente encorajante,
embora sem resultados imediatos e, muitas vezes, sem aquelas certezas
categóricas dum passado que marginalizava, dispensando-nos dum trabalho de
fazer caminho com os outros. O acolhimento e atenção não está consignado em
fórmulas mágicas do “posso” ou “não posso”, “devo” ou “não devo”. É muito mais
profundo. O Papa diz: “estas convicções têm também consequências pastorais, que
somos chamados a considerar com prudência e audácia. Muitas vezes agimos
como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma
alfândega: é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante”
(E.G. 47).
Se a Igreja deve ser “acolhedora,
com prudência e audácia” em segundo lugar, ela deve partir, sair, ir em direção
das “periferias humanas” mas isto não significa “correr pelo mundo sem direção
nem sentido”, pois nunca poderemos diminuir a força e o encanto do ideal
evangélico.
Só o caminho do amor autêntico é
a estrada de Cristo e da Igreja e aqui valem os gestos muito concretos, nunca
na mira do proselitismo de conquista, mas na concentração de gastar a vida
sabendo que a encontraremos para nós e para os outros. Confirmaremos as nossas
convicções, contactando com quem teve oportunidade de ver mas não quis seguir.
Isso nos diz hoje Isaías na primeira leitura: “Reparte o teu pão, dá pousada
aos pobres sem abrigo, leva roupa, não voltes as costas, tira do meio de ti a
opressão, os gestos de ameaça, as palavras ofensivas, assim a “tua luz
despontará como a aurora e brilhará na escuridão transformando a tua noite em
meio-dia.”
Nada é estranho à Igreja que vai
ao encontro para oferecer o dom da alegria do Evangelho, correndo o risco de se
“sujar com a lama da estrada”, mas acreditando que a luz do Espírito surgirá
para bem duma sociedade nova, através de famílias novas que não temem a pressão
doutras formas de convivências, mas prosseguem a estrada dum modelo que a
Igreja saberá apontar na fidelidade ao Evangelho sem nunca trair a felicidade
dos seres humanos. Deus Criou-nos para a felicidade, viu que o amor entre o
homem e a mulher era maravilhoso e belo e saberá situá-lo na história dos
tempos hodiernos, sobretudo através dum amor concreto e audaz a tantas
situações periféricas que colocam em causa a qualidade do nosso cristianismo.
Sejamos prudentes e audazes.
† Jorge Ortiga, A.P.
Famalicão, 8
de fevereiro de 2014.
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