A
família é o centro natural da vida humana, e não é “individual” mas
pessoal-social. É falsa toda a oposição entre pessoa e sociedade. Não existem
uma sem a outra. Pode haver oposição entre interesses individuais e sociais, ou
entre interesses “globais” e pessoais. Mas não entre duas dimensões que são
constitutivas do ser humano: o pessoal e o “familiar-comunitário-social”.
Por
isso a Igreja medita sobre a família – base da vida pessoal e social -,
promove-a nos seus valores mais profundos e defende-a quando é atacada ou
subvalorizada. Por isso a Igreja trata de mostrar à mentalidade moderna que a
família fundada no matrimónio tem dois valores essenciais para toda a sociedade
e para toda a cultura: a estabilidade e a fecundidade.
Muitas
das sociedades modernas tendem a considerar e a defender os direitos do
indivíduo, o que é muito bom. Mas não é por isso que se deve esquecer a
importância que têm para toda a sociedade – cristã ou não – os papéis básicos
que se dão apenas na família fundada no matrimónio. Papéis de paternidade,
maternidade, filiação e fraternidade que estão na base de qualquer sociedade, e
sem os quais toda a sociedade vai perdendo consistência e tornando-se
anárquica.
A
Conferência de Puebla [México] fala-nos da família como o centro em que
«encontram o seu pleno desenvolvimento» essas «quatro relações fundamentais da
pessoa: paternidade, filiação, fraternidade, nupcialidade», E, citando a
“Gaudium et spes” [documento do Concílio Vaticano II, 1965], diz que «estas
mesmas relações compõem a vida da Igreja: experiência de Deus como Pai,
experiência de Cristo como irmão, experiência de filhos em, com e pelo Filho,
experiência de Cristo como Esposo da Igreja». Assim, «a vida em família
reproduz estas quatro experiências fundamentais» (…) que «são quatro rostos do
amor humano (GS 49)».
A
razão teológica profunda deste “ser familiar” radica em que «a família é imagem
de um Deus que “no seu mistério mais íntimo não é uma solidão, mas uma
família”», como expressava João Paulo II numa das suas homilias em Puebla. E
por isso a lei da família, «a lei do amor conjugal, é comunhão e participação,
não dominação».
A
revelação do Deus Trino e Uno que Jesus Cristo nos anuncia encontra nas
famílias de cada povo o seu melhor interlocutor. Porquê? Porque a família é o
âmbito estável e fecundo de gratuidade e amor onde a Palavra pode ser acolhida
e ruminada pouco a pouco, e crescer como uma semente que se torna numa árvore
grande. Porquê? Porque os papéis que interagem na família e que são essenciais
para a vida pessoal e social, são também essenciais em Deus mesmo: a vida
familiar permite receber a revelação do amor familiar de Deus de maneira
inteligível: é a fé que se nos mistura com o leite materno.
O
caminho que Jesus escolheu para revelar-se e salvar-nos foi fazer morada no
meio da história dos homens nesse centro de comunhão e participação, nessa
primeira Igreja, que foi a Sagrada Família de Nazaré.
Poder
viver a integralidade destas relações básicas centra o coração da pessoa e
permite-lhe expandir-se para o exterior de maneira saudável e criativa. Não é
possível formar povo, sentir-se próximo de todos, ter em conta os mais
distantes e excluídos, abrir-se à transcendência se no coração estas relações
básicas estão quebradas. Desde esta centralidade amorosa da família pode o
homem crescer e amar, abrindo-se a todas as periferias, não só às sociais mas
também às da sua própria existência, precisamente onde começa a adoração do
Deus sempre maior. (…)
A
família é, naturalmente, o lugar da palavra. A família constitui-se com as
palavras fundamentais do amor, o «sim, quero», que estabelece aliança entre os
esposos para sempre. Na família o bebé abre-se ao sentido das palavras graças
ao carinho e ao sorriso materno e paterno, e encoraja-se a falar. Na família a
palavra vale pela pessoa que a profere e todos têm voz, os pequenos, os jovens,
os adultos e os anciãos. Na família a palavra é digna de confiança porque tem
memória de gestos de carinho e projeta-se em novos e quotidianos gestos de
carinho.
Podemos
sintetizar as nossas reflexões dizendo que a família é o lugar da palavra
porque está centrada no amor. As palavras ditas e escutadas na família não
passam, mas giram sempre em torno do coração, iluminando-o, orientando-o,
animando-o. O conselho paterno, a oração aprendida lendo os lábios maternos, a
confiança fraterna, as histórias dos avós… são palavras que constituem o
pequeno universo centrado em cada coração. (…)
Muitas
vezes os pais angustiam-se quando sentem que os filhos não comungam os seus
valores. O que pode estar certo em determinado nível: a sociedade atual oferece
às pessoas muitas coisas que antes oferecia família (e a escola), e que agora
se adquirem por outros meios. Mas a centralidade da família, o refúgio da porta
que se abre à intimidade, a alegria simples da mesa familiar, o lugar onde uma
pessoa se cura das suas doenças e descansa, onde pode mostrar-se e ser aceite
como é, esses valores continuam vigentes e são vitais para todo o coração
humano.
As
quatro relações que mencionámos constituem a família, são “o valor fundacional”
de todos os demais valores. E podem cultivar-se traduzindo-os em ritos e
costumes aceites por toda a sociedade (como sucedia em ambientes culturais
anteriores), como em contraposição com a sua ausência nesse “lá fora”, que pode
ser deveras fascinante em muitos aspetos, mas que carece do calor destas
relações básicas.
Card.
Jorge Mario Bergoglio (papa Francisco)
Roma,
18.1.2007
In
Arzobispado de Buenos Aires
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