O escritor António Alçada Baptista
conta uma história exemplar, na primeira pessoa: «Uma vez eu fui operado e
estava só no hospital com meu pai. Tinha uma dor pegada das unhas dos pés
às pontas dos cabelos e meu pai estava ao pé de mim. Eu tinha já 19 anos, mas
apeteceu-me a sua mão humana e paterna e disse-lhe:
- Deixe-me ver a sua mão.
- Para quê?
- Preciso da sua mão.
Ele sorriu-se e deu-ma, mas
imediatamente começaram a funcionar dentro de si as pesadas estruturas
marialvas e académicas que recusam a um filho de 19 anos a mão terna dum pai.
E, disfarçadamente, começou a retirar a sua mão até que a minha continuou
pedinte, mas só e unilateral.».
«Preciso da tua mão». O conhecimento
de Deus só pode ser um conhecimento vivido, profundamente experimental. Essa é
uma afirmação espantosa que atravessa toda a Revelação Bíblica, tanto do Antigo
como do Novo Testamento. Deus está. O Deus transcendente “vê”,
“escuta”, “compadece-se”, “mostra-se”, “permite o encontro”. Pense-se
no passo fundamental do Livro do Êxodo: «Eu vi, Eu vi a miséria do Meu povo que
está no Egipto, ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores, pois Eu
conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo» ( Ex 3,7). A
Escritura foge assim a definições e constrói uma gramática eminentemente
narrativa. Não conceptualiza: narra, relata, exemplifica. E as imagens que nos
oferece de Deus atestam que Ele está presente.
Com mais razão ainda, o Evangelho de
Jesus desautoriza-nos a persistir em fórmulas obscuras. A viragem que Jesus
introduz é considerar Deus a partir de dentro. Jesus apresenta-Se como o Filho
de Deus. E a relação que mantém com Deus é uma relação filial. Isto é, Jesus
vem dizer que Deus O impregna profundamente a ponto de Ele ser Filho e se
descobrir como tal. Não é apenas um conhecimento especial que Jesus
fornece de Deus. É outra coisa: Deus é a fonte que plasma e ilumina a criatividade
messiânica das Suas palavras e dos Seus gestos (Jo 14,8-11)... De certa
maneira, o programa de Jesus outra coisa não é que esta filiação. Mergulhados
na sua páscoa, somos chamados a viver do seu Espírito, configurados à sua
realidade, atravessados e guiados pela sua luz.
È fundamental percebermos que
a relevância do discurso cristão parte, antes de tudo, da sua essência.
Claro que o papa Francisco ir ao desembarcadouro de Lampedusa, reclamar
corajosamente por políticas mais humanas, deve colher a atenção de todos. Mas
de igual maneira deveria ser escutado quando nos propõe, com límpido
desassombro, uma reflexão sobre a fé.
José Tolentino Mendonça, Semanário Ecclesia, Nº 28 | 11 de julho de
2013
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