A oração do “Pai nosso” devia sobressaltar-nos.
Habituámo-nos tanto a conviver com o “Pai nosso”, que corremos o risco
de lhe atenuar o sentido. Como lembrava Oscar Wilde, a repetição pode
ser uma coisa muito antiespiritual. Mas os primeiros que ouviram Jesus
dizer “Abbá” sentiram o oposto disso, pois reconheceram-se diante de um
facto singular e novo: havia Alguém que chamava “Pai” a Deus. Outros
ouvintes terão certamente julgado isso escandaloso, um modo
inaceitável de rezar. Porquê? Porque é mais fácil ver Deus a partir de
fora. Deus grande, transcendente, poderoso, libertador, mas sempre
observado a partir da exterioridade. A viragem que Jesus de Nazaré
introduz é considerar Deus a partir de dentro. Jesus apresenta-Se como o
Filho de Deus. E a relação que mantém com Deus é uma relação filial.
Isto é, Jesus vem dizer que Deus O impregna profundamente a ponto de
Ele ser Filho e se descobrir como tal. Repare-se na intensidade do
testemunho que Jesus dá: «Disse-lhe Filipe: «Senhor, mostra-nos o Pai, e
isso nos basta!» Jesus disse-lhe: «Há tanto tempo que estou convosco,
e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que
me dizes, então, ‘mostra-nos o Pai’? Não crês que Eu estou no Pai e o
Pai está em mim?As coisas que Eu vos digo não as manifesto por mim
mesmo: é o Pai, que, estando em mim, realiza as suas obras. Crede-me:
Eu estou no Pai e o Pai está em mim» (Jo 14,8-11).
Não é apenas um conhecimento especial que Jesus fornece
de Deus. Ele não é um profeta, um legislador, um intermediário. É
outra coisa: Deus é a sua imago, a fonte extraordinária e
íntima que plasma e ilumina a criatividade messiânica das Suas palavras,
dos Seus gestos...
De certa maneira, o programa de Jesus é esta
filiação, este entrosamento filial. Tal como muitas vezes fazemos
coisas e não sabemos bem porquê, - é por causa da imagem do Pai que
trazemos dentro de nós e com a qual estamos a dialogar. Ora, Jesus faz
isto com o próprio Deus. Tudo Nele era marcado por esta consciência da
Sua filiação. Ele podia realmente chamar a Deus “Abbá”, recuperando o
tratamento que uma criança dá ao seu pai, tratando-o por “papá”, por
“paizinho”. Não por uma dependência infantil, mas por um exercício
amadurecido e provado de relação filial. Quando Jesus diz “Pai nosso”,
“Abbá nosso” , Jesus quer dizer que Deus é o Deus de todas as horas,
Aquele em quem se pode confiar, como uma criança confia no pai sem
qualquer tipo de reservas, sem qualquer tipo de escondimento, de uma
maneira absoluta, e com uma abertura total. Deus é Aquele a quem
podemos pedir “Preciso da tua mão”, “Dá-me a tua mão” e saber que Ele a
estende, que Ele cuida, acompanha, protege, faz-se tudo para nós.
Dizer “Abbá” implica que eu também me queira colocar com a simplicidade
de uma criança diante de Deus. Que eu queira configurar-me àquilo que o
salmo canta: «Senhor, o meu coração não é orgulhoso, nem os meus olhos
são altivos; não corro atrás de grandezas ou de coisas superiores a
mim. Pelo contrário, estou sossegado e tranquilo, como criança saciada
ao colo da mãe; a minha alma é como uma criança saciada!» (Sl 131,1-2).
Quanta intranquilidade, irritabilidade, dispersão provêm de não termos
a alma da criança saciada de Pai, deixando-nos enredar no labirinto
das substituições sempre provisórias e insuficientes.
Ele desejou que chamássemos “Pai nosso” ao seu próprio Pai
O Batismo não nos torna adeptos, simpatizantes, servos
ou militantes de Jesus. Nem nos faz descobrir Jesus apenas como uma
personalidade extraordinária que marcou a história para sempre,
fixando-nos numa admiração de espectadores em relação a Ele. Para
retomarmos uma das mais belas expressões do Novo Testamento, que é
utilizada na Carta aos Hebreus, podemos dizer que o Batismo nos torna
companheiros de Jesus Cristo («De facto, tornamo-nos companheiros de
Cristo», Heb 3,14).
E somos companheiros porquê? Ainda citando a Carta aos
Hebreus: somos seus companheiros porque Ele não se envergonhou de nos
chamar Seus irmãos (Ele «não se envergonha de lhes chamar irmãos,
dizendo: Anunciarei o teu nome aos meus irmãos» Heb 2, 11-12). Jesus
quando falava de Deus nunca dizia o “nosso Pai”. Com frequência fala,
sim, de Deus como “o Meu Pai”, ou então “o Pai do Céu”. Mas, ao
ensinar o “Pai nosso” aos discípulos, Jesus diz “Pai nosso”, como que a
querer explicitar o mistério de comunhão que nos traz unidos a Ele. Ao
rezarmos o “Pai nosso”, estamos realmente a participar de Cristo. O
Seu ser, o Seu caminho, o Seu estilo tornam-se os nossos, porque o “Seu
Pai” é o “nosso Pai”. Isto é, partilha connosco a sua arquitetura
vital e interior, a sua ossatura interna, Aquele para o qual Ele
continuamente se volta. Diz o prólogo do Evangelho de João: «aos que
nele creem nele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo
1,12). E como escreve Santo Agostinho, no seu comentário ao Pater,
«Jesus quis que chamássemos nosso Pai ao seu próprio Pai». De facto,
Jesus não nos transmite fórmulas, Jesus introduz-nos numa dimensão
existencial e prática, dá-nos acesso à uma experiência. Jesus não nos dá
um saber. Dá-nos o sabor de Deus. Um saborear.
Percebemos, a esta luz, melhor algumas passagens
fundamentais dos escritos de São Paulo. Primeiro em Romanos: «Todos os
que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus. Com
efeito, não recebeste um espírito de escravos, para recair no temor, mas
recebeste um Espírito de filhos adotivos, pelo qual chamamos “Abbá,
Pai”. O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que
somos filhos de Deus e se somos filhos, somos também herdeiros.
Herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com Ele para
também com Ele sermos glorificados» (Rom 8,15-17).
Este primeiro passo ajuda-nos a perceber como se passa
do “meu pai” para o “Pai nosso”. Essa deslocação é uma consequência
pascal. Mergulhados na Páscoa de Jesus, somos chamados a viver do Seu
Espírito, configurados à Sua realidade. Não permanecemos servos, nem
escravos, mas tornarmo-nos verdadeiramente filhos de Deus e agirmos no
mundo como tal («brilhais como astros no mundo», assevera a Carta aos
Filipenses 2,15). Porque não há outra maneira de ser cristão. Não há
outra maneira de tornar o Reino presente no mundo, se não for a partir
de dentro, impregnados, transfigurados por Deus, vivendo de Deus e de
Deus só. Não há outra maneira.
Na mesma sequência de pensamento, escreve Paulo aos
Gálatas: «Quando chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o Seu Filho,
nascido de uma mulher para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que
recebêssemos a adoção filial. E porque sois filhos, enviou Deus aos
nossos corações o Espírito de Seu Filho, que clama ‘Abbá, Pai’, de modo
que já não és escravo, mas filho e se és filho és também herdeiro,
graças a Deus» (Gal 4,4-7). Que maravilha escondem as palavras “Pai
nosso”. Escondem o mistério da nossa filiação em Cristo. Fomos feitos
filhos no Filho de Deus. Entramos por Jesus no mistério do próprio
Deus, no coração da Trindade Santíssima. Os nossos nomes estão escritos
no coração de Deus. É Cristo que nos ajuda a dizer “Pai Nosso”.
Sozinhos não éramos capazes de rezar, não saberíamos dizer que Deus é
nosso Pai. Não saberíamos... Foi o que Jesus nos veio revelar. Todo o
cristão é uma consequência de Cristo e não há oração cristã que não
reclame uma origem e uma chave cristológica fundamentais. É por que
Jesus nos carregou nos seus ombros de Bom Pastor, correu ao nosso
encontro, não desistiu de nos reencontrar… É por que Jesus se pregou no
corpo da nossa ignorância e da nossa fragilidade… É por que Jesus
suportou sobre si o peso dos nossos pesos… que nos revelou quem éramos.
Na nossa fragilidade não teríamos força, nem sabedoria para dizer que
Deus é nosso Pai. É exatamente por que Jesus se amarrou a nós, que
podemos rezar “Pai nosso”. E por isso o “Pai nosso” é também o contrário
da solidão. É Jesus quem nos faz descobrir, em todo o tempo, o
mistério do amor de Deus. Se, por vezes, ao rezar o “Pai nosso” a nossa
voz é débil, o nosso ânimo titubeante, e a nossa prece é um sofrido
murmúrio, acreditar que Ele está connosco dá-nos a força necessária.
Somos uma coisa só
Lapidares na sua clareza são as palavras de São
Cipriano sobre o Pai-Nosso: «Não dizemos “Meu Pai, que estais nos céus”
e de igual maneira “Dá-me hoje o pão de cada dia”. E nenhum de nós
pede que venha perdoada apenas a sua ofensa, nem pede que só ele seja
poupado à tentação ou liberto do mal. A nossa oração é pública e
comunitária, e quando rezamos, rezamos por todo o povo, não apenas pelo
indivíduo, por que todos formamos uma coisa só».
Comovedores são igualmente os termos usados por Santo
Agostinho: «”Pai-Nosso”, quanta bondade! Di-lo o imperador e di-lo o
mendigo, declara-o o patrão e declara-o o criado, afirmam-no
juntos…Compreendem assim que são irmãos, desde o momento em que têm o
mesmo Pai, um só Pai».
E, no mesmo registo, se alinha a meditação
contemporânea do poeta Charles Péguy: «É necessário salvar-se
conjuntamente, precisamos de chegar juntos ao Paraíso, precisamos
apresentarmo-nos juntos no Paraíso. É necessário pensar nos outros, é
necessário doar-se aos outros. O que é que Deus nos dirá, se chegarmos
ao Paraíso sem os outros?».
Ora todos estes trechos, de São Cipriano a Péguy,
antes de se estenderem a cada um de nós, adaptam-se a Jesus. Ele foi
exatamente Aquele que não se quis salvar sozinho, mas com os outros.
Quis doar-se, não quis entrar sozinho na Glória. Quando entrou no
Paraíso fê-lo como Primogénito, isto é, como cabeça, como primeiro,
como protótipo. Como se diz na Epístola aos Romanos: «Ele é o
primogénito de muitos irmãos» (Rom 8,29). Ao recitar o “Pai nosso”
somos chamados a viver uma aventura que Jesus quis que fosse assim:
partir da nossa experiência humana e comum, do nosso viver ferido para
descobri-Lo companheiro como Ele foi companheiro dos discípulos de
Emaús naquele entardecer, que é ainda o nosso.
José Tolentino Mendonça
In Pai-nosso que estais na terra, ed. Paulinas
In Pai-nosso que estais na terra, ed. Paulinas
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