Neste variado património de reflexão insere-se, entre os séculos XX e XXI, a figura de Michael Paul Gallagher (1939-2015), literato e teólogo irlandês, jesuíta de maneiras afáveis, que fez da sua vida um diálogo constante com pessoas distantes da fé – ateias, agnósticas, diversamente crentes –, dedicando ao tema da não-crença um consistente “corpus” de escritos, muitos dos quais traduzidos em português: “Livres para acreditar” (Tenacitas), “A surpreendente novidade de Cristo” (Apostolado da Oração), “Mapas da fé” (Frente e Verso), “Prolongamento” (Apostolado da Oração). O conjunto destas e outras obras, sem esquecer os numerosos artigos especializados, testemunha a sua sensibilidade profunda em relação à vivência interior daqueles que não creem em Deus, que não experimentam a liberdade necessária para chegar à descoberta do Outro, e que, ainda mais importante, refutam a mensagem de libertação e de vida contida no Evangelho, exprimida pela pessoa de Jesus Cristo.
Em Gallagher, até nos anos mais difíceis da doença (lutou três vezes contra um tumor) e nos últimos meses de vida, a atividade académica e o ministério sacerdotal são dedicados à busca de uma relação pessoal, juntamente com um diálogo, com os não-crentes. Nesta ótica, a própria reflexão teológica sobre a não-crença é entendida como ligada a uma teologia do diálogo, através da qual este representa um instrumento de ancoração à realidade, de descoberta da riqueza derivante do debate inter-humano e de ajuda no viver mais as próprias convicções. Esta sensibilidade é fruto de um crescimento humano intelectual ocorrido na sequência, no período da maturação, de sistematizações que, apesar de conservarem a sua peculiaridade, revelam uma continuidade cultural pelo menos em três níveis. Por um lado, o pensamento de Gallagher que se atém à não-crença deriva, ainda que de modo não exclusivo, do influxo do pensamento de Newman; por outro, é possível constatar uma continuidade com orientações de Rahner e com algumas aproximações metodológicas de Bernard Lonergan; depois, se é verdade que toda a teologia é contextual, englobando na categoria do contexto, além das experiências de vida, também o conjunto das influências do pensamento, pode afirmar-se que as perspetivas teológicas de Gallagher sobre a não-crença resultam de um entretecer entre vivência e reflexão, entre a vida comum e a elaboração teórica.
Com efeito, nascido e crescido na Irlanda, uma nação ao tempo ainda bem radicada no catolicismo romano, Gallagher conhece o ateísmo nos inícios dos anos 60, quando, então com 21 anos, a estudar literatura, frequente um ano de intercâmbio académico na Universidade de Caen. A experiência francesa, no meio de uma sociedade e de uma cultura profundamente secularizadas, não representa, todavia, para ele um choque. Ao contrário, determina uma mudança espiritual e intelectual na sua compreensão da vida crente, bem como do próprio cristianismo, até ao momento lidos em chave «puritana e monástica», como ele mesmo escreveu. Os contactos com estudantes, amigos e conhecidos agnósticos ajudam-no não só a descobrir novas pistas de anúncio evangélico, como também a amadurecer uma consciência da complexidade do real e de pertença, enquanto homem e crente, no mundo. Graças ao período francês, o teólogo jesuíta individua os maiores impedimentos à fé em Deus no plano da liberdade espiritual, mais do que no da concetualização da verdade.
Esta abertura de espírito perante os desafios do mundo condu-lo a empreender, entre os anos 70 e 80, duas experiências que marcam posteriormente a sua perceção da existência cristã e da não crença.
Estadias na Índia e na América Latina, no quotidiano partilhado com os doentes, os pobres, os marginalizados e aqueles cuja dignidade era violada e pisada, ajudam-no no crescimento interior e a desenvolver duas novas visões. Em relação à fé, Gallagher toma consciência da carga libertadora e transformadora da história humana, exercida pelo cristianismo: mais do que «ópio do povo», segundo o adágio do marxismo ateu, a fé cristã apresenta-se-lhe inequivocamente como «salvação do povo». Sobre a não-crença, ele amadurece a convicção de que a fé em Deus pode ter como principal obstáculo o estilo de vida crente, mais do que modelos de pensamento ou ideologias políticas: é o testemunho exemplar da parte do crente que determina a abertura à proposta de fé. Neste sentido, segundo Gallagher, a fé não propõe uma recusa da razão ou uma fuga das responsabilidades civis, mas responsabiliza o ser humano, tornando-o consciente e livre. Mais precisamente, Gallagher experimenta a fé em Deus como verdade que abraça e transforma a liberdade humana.
Nos mais de 40 anos de ensino universitário, emerge, todavia, nele uma nova intuição, desta vez de carácter mais marcadamente teológico. Durante a docência (primeiro de literatura, em Dublin, depois da teologia fundamental, em Roma), o teólogo irlandês interroga o vazio espiritual – de que, além disso, colhe a essência cultural – que torna Deus irreal, supérfluas as perguntas de sentido e a religião, num Ocidente secularizado e tecnocrático, quase totalmente privado de referências à transcendência.
Do seu ponto de vista, compreender a crise da fé nas sociedades contemporâneas precisa de uma análise precisa, especialmente na perspetiva da história da cultura, do contexto no qual nascem e evoluem orientações específicas da não-crença. Por outras palavras, enquanto atento conhecedor da “Kulturwissenschaft”, Gallagher está convicto de que o contexto cultural da não-crença exige um estudo atento das dinâmicas históricas, a par com um discernimento dos aspetos constitutivos das várias direções de pensamento: está aqui em jogo a consideração da dialética entre cristianismo e modernidade. Uma modernidade que ele reconhece ser atravessada por uma série de transformações de natureza cosmológica, antropológica e filosófica, as quais incidiram notavelmente sobre a visão cristã da realidade, em particular na sua teorização das relações entre Deus, o universo e o ser humano. Esquematizando ao máximo a avaliação do teólogo irlandês, ele vê um nexo causal entre a revolução cultural moderna e a afirmação da não-crença. Partindo de um estudo sobre o tema da recusa de Deus (primeiro do ponto de vista filosófico-político no século XVIII, depois do científico e existencial nos séculos XIX e XX), Gallagher vai considerar o ateísmo numa dimensão que supera a simples negação intelectual da existência de Deus. Ele lê o ateísmo como problema da interioridade da pessoa, vendo-o radicado, por um lado, em atitudes espiritualmente limitadas e limitantes (superstição, superficialidade, soberba, desconfiança, suspeita, etc.), e, por outro, em reações espirituais (portanto, para além da dimensão meramente psicológica) diante do escândalo do mal e do não-sentido do sofrimento.
Fica claro que a não-crença de que Gallagher trata não é representada pela corrente contemporânea denominada “Novo ateísmo”, para a qual teve sempre palavras de crítica severa e de ironia desconstrutiva, condenando-lhe o cientismo fundamentalista, o ódio ideológico em relação às tradições religiosas (entendidas como fontes de irracionalidade e de violência), a banalização da ideia de Deus. Juntamente com esta forma de não-crença fútil, fundada no dogmatismo cientista, o teólogo jesuíta denuncia com vigor uma outra que define como «de mercado», ou seja, uma não-crença superficial e não-pensada. É a um ateísmo militante, pensado e consciente do trágico desaparecimento de Deus do horizonte axiológico do mundo moderno, que Gallagher reserva as considerações mais aguçadas. Através de um perspetiva filosófica, na frase de Nietzsche «Deus morreu», o teólogo irlandês divisa quer o grito de protesto contra as formas banais de não-crença, quer a constatação do definitivo crepúsculo dos valores transcendentes sobre os quais se fundou a civilização ocidental.
Partindo desses pressupostos, Gallagher especifica categorias de definições do ateísmo que servem para a elaboração das suas respostas sob o perfil teológico.
Quanto às definições, ele distingue três tipologias de ateísmo: filosófico, teológico e cultural. Se o ateísmo filosófico é de ordem gnoseológica, porque fundado na negação teórica da existência de Deus, o teológico é de tipo relacional, enquanto consiste na ausência de um reconhecimento, e, portanto, de uma abertura confiante do eu humano ao Tu divino da Revelação. O ateísmo cultural, por seu lado, é representado por uma hostilidade quanto à imaginação humana, ou melhor, à faculdade que permite colher a presença de Deus na vida, através da luz da fé. O que acomuna estas definições no seu conjunto é a convicção de que a fé em Deus, para Gallagher, não pode ser, em caso algum, reduzida a uma teoria mais ou menos refinada – a afirmar ou a rejeitar – sobre a causa originária do todo.
Quanto às respostas que podem brotar de uma reflexão teológica sobre o ateísmo, consistem essencialmente, segundo o jesuíta, no testemunho e no compromisso cultural.
No plano do testemunho, Gallagher sustém que a fé pode ser vivida de modo autêntico ao incarnar o Evangelho no serviço ao próximo. O laço entre anúncio e estilo de vida permite a redescoberta da fé enquanto experiência profunda, capaz de envolver o ser humano com todas as suas faculdades. Cultivar a dimensão espiritual revela-se determinante para chegar a quantos, distantes da fé e mergulhados numa não-crença privada de convicções, percecionam um vazio interior e um desejo de transcendência. Apesar da fragilidade que a condição humana comporta, o crente pode assim manifestar a abertura à maravilha da exist~encia na relação com o próximo e com Deus.
No âmbito cultural, as perspetivas teológicas de Gallagher convidam a apreciar em sentido positivo as interrogações que derivam do debate com a não-crença, acolhendo-lhe os desafios. A não-crença, à luz da sua reflexão teológica, pode representar para o crente uma ocasião e um estímulo para a purificação da sua maneira de crer, de pensar e de pertencer à comunidade eclesial, e uma solicitação, para a inteligência crente, a interrogar-se sobre o significado da existência, e a escutar as perguntas que brotam do coração humano, certamente partilhadas por crentes e não crentes.
O que emerge, conclusivamente, na reflexão de Gallagher, perante a negação moderna e contemporânea de Deus, é uma verdadeira “cogitatio” teológica, na qual a existência de Deus não é uma problemática abstrata, mas uma experiência de vida. Ao não-crente, que entende a fé como pura abstração irreal e desencarnada, artifício supersticioso ou forma de diminuição do pensamento, o teólogo irlandês apresenta com simplicidade a fé como viagem livre e partilhada, em busca de um Deus sábio e amoroso, «de rosto humano».
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Michael Paul Gallagher | D.R.
Publicado em 16.06.2020
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