Subitamente, o inesperado chegou; o imprevisível veio e ficou.
Dá-se-lhe o nome quarentena, e eu também não enjeito a palavra (como se pode ler no subtítulo desta nota); mas «quarentena» é já um nome conhecido que serve — como provavelmente servem todos os nomes — para indicar o desconhecido. Esse nome, de resto, além de designar o que nos está a acontecer face ao desconhecido, já se instituiu ele próprio, no seu sentido médico (originalmente para designar 42 dias de isolamento), por analogia com uma conhecida prática litúrgica de restrições. «Quarentena» provém de quaresma. Por uma terrível ironia da história, desta vez a quaresma cristã coincide com uma quarentena mundial (não digo «ecuménica»).
E esta coincidência seria irrelevante se uma tal quarentena — que ocorre pela primeira vez na história — não significasse, em si mesma, a existência de um risco, também ele mundial, de propagação mortífera de uma epidemia.
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Ou então este desconhecido talvez não seja assim tão inesperado e imprevisível como nos querem fazer crer; talvez seja apenas inesperado e imprevisível para um Ocidente que, desde o seu início, oculta ou denega a condição mesma de toda a vida humana. É essa condição que de novo, e primeiramente, requer ser pensada, condição a que esse mesmo Ocidente chamou «trágica» e que irrompe agora com uma violência planetária inaudita, incluindo em países europeus ditos «muito desenvolvidos».
A luta íntima entre a vida e a morte, que forma o nosso metabolismo silencioso, faz-se ouvir e ver como um facto exterior iniludível. A luta necessária entre a vida e a morte, que constitui a realidade quotidiana para milhões de outros seres humanos, faz-se ouvir e ver no âmago do dito Ocidente inteiramente exposto à inescapável contingência (e aos seus vários «planos de contingência»).
A «tragédia físico-química a que se chama a Vida», para recordar Pessoa, ei-la que não é um interior que dominamos nem um exterior que nos seja estranho. A tragédia não é agora um filme longínquo da história que vemos desfilar no «teatro das operações». Ela é a nossa estranheza íntima — e até parece ter sido necessária a quarentena para experienciá-la como condição existencial de toda a vida humana.
E se o que importa agora — nesta tragédia em suspenso — é, sem dúvida, salvar vidas, entretanto que consequências, para aqueles que sobreviverão, podem e devem ser tiradas depois de a quarentena passar? E, enquanto não passa, o que pensar?
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Se a quaresma passa (e passará), desconhecemos em contrapartida a duração desta quarentena — e é por isso mesmo que, apesar de tudo, a começar pelos milhões de desempregados e de despedimentos que virão, e, sobretudo, apesar de tanta morte, ela, a quarentena, é uma chance para pensarmos a vida em comum. Para «os sem Deus», como nos chamava Nietzsche, resta-nos pelo menos um elemento de comparação entre esta quarentena e a quaresma: que este período sirva para confrontar as nossas vidas com a condição da vida humana, a qual só se revela (como ensina a Páscoa, a tragédia cristã) no confronto com a morte. Que este período sirva para nos prepararmos para o impreparável.
A suspensão, a pausa ou o intervalo não se manifestam hoje como meras modalidades temporais necessárias para relançar, cada vez mais longe e mais frenético, o imperativo da produtividade (que modela o capitalismo como última figura da pleonexia, isto é, o (querer) «ter mais», mas que já constituía para Tucídides a causa da ruína de Atenas…). Aquelas são antes modalidades — e não sabemos por quanto tempo — nas quais experienciamos o próprio tempo (ou o que é próprio do tempo). Afinal o tempo não é um continuum, não provém de um horizonte de possibilidades: não é antecipável ou programável. Afinal, no tempo — ou, melhor, na sua partícula elementar, o instante, que também já é algo subtraído ao contínuo temporal — o possível confina com o impossível, o todo da existência confina com nada ou com um outro todo exterior ao todo dos possíveis pensáveis em que vivíamos. A civilização ocidental (quer dizer, se dúvidas houvesse, mundial), a civilização construída, metafísica ou religiosamente, sobre a possibilidade de vivermos fora do tempo, eis que ela se vê obrigada a parar, provavelmente como nunca o tinha feito, pelo menos a uma escala tão global, dentro do tempo. Mas eis, sobretudo, que essa paragem (forçada) no interior do tempo não revela, de todo, a tal intemporalidade que, de modos muito diferenciados, a metafísica e as religiões postularam ou prometeram.
Afinal, quando somos obrigados a estar inteiramente no tempo, sentimos e percebemos que o tempo vem sempre (de) fora de tempo, do tempo histórico e de qualquer tempo já dado: afinal a experiência mais elementar que os humanos podem fazer do tempo é a sua ex-temporaneidade. Experiência do homem que se encontra «todo no interior do momento», esquecendo-se de si mesmo: com estes termos, Hölderlin procurou descrever o instante trágico; pela minha parte, direi que o «extemporâneo» designa a manifestação primordial do tempo. Toda a contemporaneidade é precedida pela extemporaneidade do instante. Não somos aí projetados para fora do tempo: entramos no tempo e abrimo-nos ao seu fora, à sua vinda ou à sua iminência.
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A experiência de uma suspensão coletiva do tempo não é, evidentemente, nova; porém, para a geração em que me foi dado nascer, trata-se certamente de uma experiência insólita: por exemplo, nunca vivemos essa suspensão numa efervescência coletiva (numa revolução) ou num terror coletivo (numa guerra); e a última pandemia (a da gripe A, em 2009), por muito virulenta que tenha sido em certas regiões do planeta, não obrigou a população mundial, e tão-pouco a europeia, a estar de quarentena e por tempo indeterminado.
Que se revela então com esta suspensão coletiva do tempo?
Que o que temos em comum é mais vital do que o que nos distingue. Eis o que nos é requerido pensar: neste estado de exceção a que estamos sujeitos, revela-se a condição de todos — sem exceção. E tal é verdadeiramente excecional: podemos perceber que partilhamos uma igualdade inata. O sinal mais evidente disto é que todos temos de respeitar a mesma quarentena.
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E todos temos de respeitá-la porque nenhum de nós é, por princípio ou por condição vital, imune à pandemia. Podemos ser mais ou menos imunes ao coronavírus (consoante a idade, o facto de termos ou não doenças crónicas, de sermos ou não profissionais da saúde, de possuirmos ou não um sistema imunitário forte…); mas ninguém, pelo facto mesmo de ser humano, poderá ser totalmente imune à infecção, mesmo que esta seja assintomática.
Nenhum de nós, por outras palavras, poderá descarregar sobre outrem a carga de mortalidade que pesa sobre si. O vírus é transmissível, mas o peso da mortalidade é pessoal e intransmissível.
Sem dúvida, e de um modo que não posso mostrar aqui, tanto a experiência artística como a experiência amorosa são formas, absolutamente paradoxais, de transmissibilidade desse intransmissível. Por exemplo, é esse mesmo peso pessoal que, não sendo transmissível, partilhamos estranhamente nesse limite da vida em que perdemos um ser amado — e alguém nos soletra a palavra «pêsames», estando no fundo a pedir-nos: pesa-me… E talvez seja isso, ainda isso, que perdura numa extraordinária frase de Santo Agostinho, Pondus meum amor meus, «O meu peso é o meu amor» (Confissões, XIII, 9).
Resta que nenhum de nós pode, efetivamente, descarregar sobre o outro o peso da sua mortalidade. Ora, por um novo paradoxo, é uma tal impossibilidade que constitui a nossa vida em comum; é ela que nos constitui enquanto comunidade humana. Co-munis significa justamente o ato de partilhar (ou de repartir) a carga (munus designando a «carga», originariamente no sentido de um cargo, de um «presente», na aceção de dom, de favor ou de graça concedida… Munus já nos aparece, em si mesmo, como algo simultaneamente pesado e ligeiro).
Tudo bem pesado, é caso para dizê-lo, se i-mune é aquela ou aquele que está isento de uma carga, então o que a quarentena mundial mostra — e mostra à população mundial — é literalmente o comum dos mortais. A saber, que cada um de nós se constitui como o co-munis da morte: como ser portador de um peso intransmissível e universal, ser que assume e realiza a sua carga humana, ser que se encarrega da sua vida e da sua morte, ser, em suma, jamais imune ao peso da mortalidade. A nossa igualdade inata revela-se perante a morte. A humanidade é a comunidade que partilha — mas não transmite entre si — a mortalidade. É a comunidade sem imunidade (total): a co-munidade!
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Na verdade, este peso não é algo que possamos partilhar como quem participa numa substância ou essência comum. O peso da mortalidade é o peso da vida humana que todos temos em comum e que — simultaneamente — cada um só pode experienciar em separado (ou por si mesmo). Esse peso propicia-nos assim a experiência de uma impossível união substancial ou comunhão. Impossível comunhão com um corpo divino, portanto, com um corpo são e salvo, quer dizer, afinal, um corpo dotado de inteira imunidade. Se um dia for verdadeiramente possível a vida em comum, se a humanidade chegar a assumir-se como comunidade dos mortais, então é porque sobre ela já não irá pairar, seja de que forma for, um corpo imune. Se um dia for realmente possível instituirmo-nos como comunidade política, então é porque esta já não será determinada por nenhuma forma de comunidade religiosa. «O que os põe [aos humanos] em comum, a sua comensurabilidade, é justamente a sua incomensurabilidade. Tudo o que eles têm em comum é a sua distinção, é tudo o que faz com que cada um se mantenha indistinto em si. O que nós temos em comum é rigorosamente o que nos separa. […] Os singulares partilham [partagent] a sua singularidade, que os divide [partage] por sua vez.» (Jean-Luc Nancy, «Un sujet?»).
O comum dos mortais é a singularidade (im-partilhável) da morte.
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Escrevi, há pouco, «sem imunidade (total)» porque para haver vida, no sentido estrito de sobrevivência, tem de haver uma relativa imunidade. E portanto a possibilidade da vida em comum radica-se sempre numa relativa «coimunidade» (retomo o termo de Sloterdijk); mas o fantasma da coimunidade absoluta — impedindo a instituição da comunidade política, da comunidade dos seres inatamente iguais — é o mal coletivo do Ocidente. Quer isto dizer que — durante esta suspensão — podemos percepcionar que todo o nosso passado político se jogou, assim como todo o nosso futuro político se jogará, na tensão interna da co(i)munidade, a qual não é nem a imunidade total (a não-vida), nem a ausência de imunidade (a morte).
A civilização ocidental ergueu-se sobre a possibilidade de o próprio descarregar (katharein) a sua mortalidade sobre o outro (estranho ou estrangeiro). E é na descarga (katharsis) da mortalidade própria (ou do próprio) que reside, provavelmente, a possibilidade do mal.
Ora, uma pandemia, decerto, não nos traz o bem; mas — pela mais aterradora experiência — desmente a política que não cuida da vida em comum. Esta pandemia põe a nu a humanidade enquanto co-munidade: seres que essencialmente — sem essência — partilham a sua vulnerabilidade ou infetibilidade.
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Pois o que se revela, por fim, na quarentena não é apenas o comum (dos mortais) enquanto condição existencial dos humanos; é ainda a necessidade do público como aquele serviço que é capaz de fazer jus a essa mesma condição. O «público» — o acessível a todos em igualdade de circunstâncias — corresponde, politicamente, à condição ontológica da vida humana. E o primeiro serviço público dessa correspondência, na vida de cada um, é necessariamente o serviço de saúde (que cuida logo do nosso nascimento e, mesmo antes, da nossa gestação). Quando a humanidade se sente a este ponto ameaçada ou atingida mortalmente com uma infeção, então revela-se que a saúde deve (ou devia) ser um serviço público. Se toda a humanidade se sente atualmente afetada e potencialmente infetada pela mesma coisa ou causa comum, então revela-se a injustiça de a saúde ser um empreendimento privado.
A pandemia põe a nu a falência ética e sanitária de um sistema económico-financeiro — o capitalismo — que só pode tratar a saúde (também a saúde) como uma mercadoria e, em todos os sentidos da palavra, uma salvação privada.
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Por um último paradoxo, assumir o peso da vida humana torna-nos leves. Só assumindo todo o peso da humanidade é que poderemos chegar à maior leveza. Então, a mortalidade própria tende a não pesar nada: porque o munus da vida é recebido — acolhido — não como um fardo, mas como um incompreensível dom, uma inexcedível graça… Como um presente: o tempo — o instante que não vem de nós (e é de mais para nós…).
Nietzsche, ainda: «A vida tornou-se-me ligeira, a mais ligeira, quando exigiu de mim o mais pesado.» (Ecce Homo, «Porque sou tão perspicaz?», § 10).
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Claro que, para os sobreviventes, é sempre possível atravessar a quarentena como se fosse uma simples paragem: angustiada, decerto, imprevista, mas apenas uma paragem. Porém, se a experiência da quarentena mundial a isso se reduzir, então seria como se esta suspensão do tempo de nada fosse e o futuro próximo fosse tudo. Seria ocultar ou denegar, mais uma vez, que cada um de nós — sem exceção — é o comum dos mortais.
Leio e levanto os olhos para uma rua de Lisboa deserta e silenciosa:
«E todos, todos pensam que o que se passou até agora foi nada ou pouco, enquanto o futuro próximo é tudo: e daí esta pressa, esta gritaria, este ensurdecerem-se e evidenciarem-se! Todos querem ser os primeiros neste futuro e, todavia, a morte e o silêncio mortal são unicamente o que é certo e comum a todos neste futuro! Como é estranho que o que é unicamente certo e comum a todos quase não tenha poder sobre os homens e que eles estejam o mais longe possível de se sentir como a irmandade da morte! Torna-me feliz ver que os homens não querem de modo algum ter o pensamento da morte! Gostaria de poder contribuir para lhes fazer o pensamento da vida cem vezes mais digno de ser pensado.» (F. Nietzsche, A Gaia Ciência, § 278)
Nesta quarentena, pelo menos para a minha geração, estamos pela primeira vez o mais próximo possível de nos sentirmos como «a irmandade da morte». Por isso mesmo, é-nos dado a pensar, existencialmente, no comum e, politicamente, no serviço público. É-nos exigido cuidar da vida em comum, a começar pela saúde pública.
Será que vamos ser dignos, doravante, do «pensamento da vida»?
Dá-se-lhe o nome quarentena, e eu também não enjeito a palavra (como se pode ler no subtítulo desta nota); mas «quarentena» é já um nome conhecido que serve — como provavelmente servem todos os nomes — para indicar o desconhecido. Esse nome, de resto, além de designar o que nos está a acontecer face ao desconhecido, já se instituiu ele próprio, no seu sentido médico (originalmente para designar 42 dias de isolamento), por analogia com uma conhecida prática litúrgica de restrições. «Quarentena» provém de quaresma. Por uma terrível ironia da história, desta vez a quaresma cristã coincide com uma quarentena mundial (não digo «ecuménica»).
E esta coincidência seria irrelevante se uma tal quarentena — que ocorre pela primeira vez na história — não significasse, em si mesma, a existência de um risco, também ele mundial, de propagação mortífera de uma epidemia.
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Ou então este desconhecido talvez não seja assim tão inesperado e imprevisível como nos querem fazer crer; talvez seja apenas inesperado e imprevisível para um Ocidente que, desde o seu início, oculta ou denega a condição mesma de toda a vida humana. É essa condição que de novo, e primeiramente, requer ser pensada, condição a que esse mesmo Ocidente chamou «trágica» e que irrompe agora com uma violência planetária inaudita, incluindo em países europeus ditos «muito desenvolvidos».
A luta íntima entre a vida e a morte, que forma o nosso metabolismo silencioso, faz-se ouvir e ver como um facto exterior iniludível. A luta necessária entre a vida e a morte, que constitui a realidade quotidiana para milhões de outros seres humanos, faz-se ouvir e ver no âmago do dito Ocidente inteiramente exposto à inescapável contingência (e aos seus vários «planos de contingência»).
A «tragédia físico-química a que se chama a Vida», para recordar Pessoa, ei-la que não é um interior que dominamos nem um exterior que nos seja estranho. A tragédia não é agora um filme longínquo da história que vemos desfilar no «teatro das operações». Ela é a nossa estranheza íntima — e até parece ter sido necessária a quarentena para experienciá-la como condição existencial de toda a vida humana.
E se o que importa agora — nesta tragédia em suspenso — é, sem dúvida, salvar vidas, entretanto que consequências, para aqueles que sobreviverão, podem e devem ser tiradas depois de a quarentena passar? E, enquanto não passa, o que pensar?
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Se a quaresma passa (e passará), desconhecemos em contrapartida a duração desta quarentena — e é por isso mesmo que, apesar de tudo, a começar pelos milhões de desempregados e de despedimentos que virão, e, sobretudo, apesar de tanta morte, ela, a quarentena, é uma chance para pensarmos a vida em comum. Para «os sem Deus», como nos chamava Nietzsche, resta-nos pelo menos um elemento de comparação entre esta quarentena e a quaresma: que este período sirva para confrontar as nossas vidas com a condição da vida humana, a qual só se revela (como ensina a Páscoa, a tragédia cristã) no confronto com a morte. Que este período sirva para nos prepararmos para o impreparável.
A suspensão, a pausa ou o intervalo não se manifestam hoje como meras modalidades temporais necessárias para relançar, cada vez mais longe e mais frenético, o imperativo da produtividade (que modela o capitalismo como última figura da pleonexia, isto é, o (querer) «ter mais», mas que já constituía para Tucídides a causa da ruína de Atenas…). Aquelas são antes modalidades — e não sabemos por quanto tempo — nas quais experienciamos o próprio tempo (ou o que é próprio do tempo). Afinal o tempo não é um continuum, não provém de um horizonte de possibilidades: não é antecipável ou programável. Afinal, no tempo — ou, melhor, na sua partícula elementar, o instante, que também já é algo subtraído ao contínuo temporal — o possível confina com o impossível, o todo da existência confina com nada ou com um outro todo exterior ao todo dos possíveis pensáveis em que vivíamos. A civilização ocidental (quer dizer, se dúvidas houvesse, mundial), a civilização construída, metafísica ou religiosamente, sobre a possibilidade de vivermos fora do tempo, eis que ela se vê obrigada a parar, provavelmente como nunca o tinha feito, pelo menos a uma escala tão global, dentro do tempo. Mas eis, sobretudo, que essa paragem (forçada) no interior do tempo não revela, de todo, a tal intemporalidade que, de modos muito diferenciados, a metafísica e as religiões postularam ou prometeram.
Afinal, quando somos obrigados a estar inteiramente no tempo, sentimos e percebemos que o tempo vem sempre (de) fora de tempo, do tempo histórico e de qualquer tempo já dado: afinal a experiência mais elementar que os humanos podem fazer do tempo é a sua ex-temporaneidade. Experiência do homem que se encontra «todo no interior do momento», esquecendo-se de si mesmo: com estes termos, Hölderlin procurou descrever o instante trágico; pela minha parte, direi que o «extemporâneo» designa a manifestação primordial do tempo. Toda a contemporaneidade é precedida pela extemporaneidade do instante. Não somos aí projetados para fora do tempo: entramos no tempo e abrimo-nos ao seu fora, à sua vinda ou à sua iminência.
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A experiência de uma suspensão coletiva do tempo não é, evidentemente, nova; porém, para a geração em que me foi dado nascer, trata-se certamente de uma experiência insólita: por exemplo, nunca vivemos essa suspensão numa efervescência coletiva (numa revolução) ou num terror coletivo (numa guerra); e a última pandemia (a da gripe A, em 2009), por muito virulenta que tenha sido em certas regiões do planeta, não obrigou a população mundial, e tão-pouco a europeia, a estar de quarentena e por tempo indeterminado.
Que se revela então com esta suspensão coletiva do tempo?
Que o que temos em comum é mais vital do que o que nos distingue. Eis o que nos é requerido pensar: neste estado de exceção a que estamos sujeitos, revela-se a condição de todos — sem exceção. E tal é verdadeiramente excecional: podemos perceber que partilhamos uma igualdade inata. O sinal mais evidente disto é que todos temos de respeitar a mesma quarentena.
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E todos temos de respeitá-la porque nenhum de nós é, por princípio ou por condição vital, imune à pandemia. Podemos ser mais ou menos imunes ao coronavírus (consoante a idade, o facto de termos ou não doenças crónicas, de sermos ou não profissionais da saúde, de possuirmos ou não um sistema imunitário forte…); mas ninguém, pelo facto mesmo de ser humano, poderá ser totalmente imune à infecção, mesmo que esta seja assintomática.
Nenhum de nós, por outras palavras, poderá descarregar sobre outrem a carga de mortalidade que pesa sobre si. O vírus é transmissível, mas o peso da mortalidade é pessoal e intransmissível.
Sem dúvida, e de um modo que não posso mostrar aqui, tanto a experiência artística como a experiência amorosa são formas, absolutamente paradoxais, de transmissibilidade desse intransmissível. Por exemplo, é esse mesmo peso pessoal que, não sendo transmissível, partilhamos estranhamente nesse limite da vida em que perdemos um ser amado — e alguém nos soletra a palavra «pêsames», estando no fundo a pedir-nos: pesa-me… E talvez seja isso, ainda isso, que perdura numa extraordinária frase de Santo Agostinho, Pondus meum amor meus, «O meu peso é o meu amor» (Confissões, XIII, 9).
Resta que nenhum de nós pode, efetivamente, descarregar sobre o outro o peso da sua mortalidade. Ora, por um novo paradoxo, é uma tal impossibilidade que constitui a nossa vida em comum; é ela que nos constitui enquanto comunidade humana. Co-munis significa justamente o ato de partilhar (ou de repartir) a carga (munus designando a «carga», originariamente no sentido de um cargo, de um «presente», na aceção de dom, de favor ou de graça concedida… Munus já nos aparece, em si mesmo, como algo simultaneamente pesado e ligeiro).
Tudo bem pesado, é caso para dizê-lo, se i-mune é aquela ou aquele que está isento de uma carga, então o que a quarentena mundial mostra — e mostra à população mundial — é literalmente o comum dos mortais. A saber, que cada um de nós se constitui como o co-munis da morte: como ser portador de um peso intransmissível e universal, ser que assume e realiza a sua carga humana, ser que se encarrega da sua vida e da sua morte, ser, em suma, jamais imune ao peso da mortalidade. A nossa igualdade inata revela-se perante a morte. A humanidade é a comunidade que partilha — mas não transmite entre si — a mortalidade. É a comunidade sem imunidade (total): a co-munidade!
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Na verdade, este peso não é algo que possamos partilhar como quem participa numa substância ou essência comum. O peso da mortalidade é o peso da vida humana que todos temos em comum e que — simultaneamente — cada um só pode experienciar em separado (ou por si mesmo). Esse peso propicia-nos assim a experiência de uma impossível união substancial ou comunhão. Impossível comunhão com um corpo divino, portanto, com um corpo são e salvo, quer dizer, afinal, um corpo dotado de inteira imunidade. Se um dia for verdadeiramente possível a vida em comum, se a humanidade chegar a assumir-se como comunidade dos mortais, então é porque sobre ela já não irá pairar, seja de que forma for, um corpo imune. Se um dia for realmente possível instituirmo-nos como comunidade política, então é porque esta já não será determinada por nenhuma forma de comunidade religiosa. «O que os põe [aos humanos] em comum, a sua comensurabilidade, é justamente a sua incomensurabilidade. Tudo o que eles têm em comum é a sua distinção, é tudo o que faz com que cada um se mantenha indistinto em si. O que nós temos em comum é rigorosamente o que nos separa. […] Os singulares partilham [partagent] a sua singularidade, que os divide [partage] por sua vez.» (Jean-Luc Nancy, «Un sujet?»).
O comum dos mortais é a singularidade (im-partilhável) da morte.
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Escrevi, há pouco, «sem imunidade (total)» porque para haver vida, no sentido estrito de sobrevivência, tem de haver uma relativa imunidade. E portanto a possibilidade da vida em comum radica-se sempre numa relativa «coimunidade» (retomo o termo de Sloterdijk); mas o fantasma da coimunidade absoluta — impedindo a instituição da comunidade política, da comunidade dos seres inatamente iguais — é o mal coletivo do Ocidente. Quer isto dizer que — durante esta suspensão — podemos percepcionar que todo o nosso passado político se jogou, assim como todo o nosso futuro político se jogará, na tensão interna da co(i)munidade, a qual não é nem a imunidade total (a não-vida), nem a ausência de imunidade (a morte).
A civilização ocidental ergueu-se sobre a possibilidade de o próprio descarregar (katharein) a sua mortalidade sobre o outro (estranho ou estrangeiro). E é na descarga (katharsis) da mortalidade própria (ou do próprio) que reside, provavelmente, a possibilidade do mal.
Ora, uma pandemia, decerto, não nos traz o bem; mas — pela mais aterradora experiência — desmente a política que não cuida da vida em comum. Esta pandemia põe a nu a humanidade enquanto co-munidade: seres que essencialmente — sem essência — partilham a sua vulnerabilidade ou infetibilidade.
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Pois o que se revela, por fim, na quarentena não é apenas o comum (dos mortais) enquanto condição existencial dos humanos; é ainda a necessidade do público como aquele serviço que é capaz de fazer jus a essa mesma condição. O «público» — o acessível a todos em igualdade de circunstâncias — corresponde, politicamente, à condição ontológica da vida humana. E o primeiro serviço público dessa correspondência, na vida de cada um, é necessariamente o serviço de saúde (que cuida logo do nosso nascimento e, mesmo antes, da nossa gestação). Quando a humanidade se sente a este ponto ameaçada ou atingida mortalmente com uma infeção, então revela-se que a saúde deve (ou devia) ser um serviço público. Se toda a humanidade se sente atualmente afetada e potencialmente infetada pela mesma coisa ou causa comum, então revela-se a injustiça de a saúde ser um empreendimento privado.
A pandemia põe a nu a falência ética e sanitária de um sistema económico-financeiro — o capitalismo — que só pode tratar a saúde (também a saúde) como uma mercadoria e, em todos os sentidos da palavra, uma salvação privada.
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Por um último paradoxo, assumir o peso da vida humana torna-nos leves. Só assumindo todo o peso da humanidade é que poderemos chegar à maior leveza. Então, a mortalidade própria tende a não pesar nada: porque o munus da vida é recebido — acolhido — não como um fardo, mas como um incompreensível dom, uma inexcedível graça… Como um presente: o tempo — o instante que não vem de nós (e é de mais para nós…).
Nietzsche, ainda: «A vida tornou-se-me ligeira, a mais ligeira, quando exigiu de mim o mais pesado.» (Ecce Homo, «Porque sou tão perspicaz?», § 10).
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Claro que, para os sobreviventes, é sempre possível atravessar a quarentena como se fosse uma simples paragem: angustiada, decerto, imprevista, mas apenas uma paragem. Porém, se a experiência da quarentena mundial a isso se reduzir, então seria como se esta suspensão do tempo de nada fosse e o futuro próximo fosse tudo. Seria ocultar ou denegar, mais uma vez, que cada um de nós — sem exceção — é o comum dos mortais.
Leio e levanto os olhos para uma rua de Lisboa deserta e silenciosa:
«E todos, todos pensam que o que se passou até agora foi nada ou pouco, enquanto o futuro próximo é tudo: e daí esta pressa, esta gritaria, este ensurdecerem-se e evidenciarem-se! Todos querem ser os primeiros neste futuro e, todavia, a morte e o silêncio mortal são unicamente o que é certo e comum a todos neste futuro! Como é estranho que o que é unicamente certo e comum a todos quase não tenha poder sobre os homens e que eles estejam o mais longe possível de se sentir como a irmandade da morte! Torna-me feliz ver que os homens não querem de modo algum ter o pensamento da morte! Gostaria de poder contribuir para lhes fazer o pensamento da vida cem vezes mais digno de ser pensado.» (F. Nietzsche, A Gaia Ciência, § 278)
Nesta quarentena, pelo menos para a minha geração, estamos pela primeira vez o mais próximo possível de nos sentirmos como «a irmandade da morte». Por isso mesmo, é-nos dado a pensar, existencialmente, no comum e, politicamente, no serviço público. É-nos exigido cuidar da vida em comum, a começar pela saúde pública.
Será que vamos ser dignos, doravante, do «pensamento da vida»?
Tomás Maia
Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes
Imagem: krasnevsky/Bigstock.com
Publicado em 24.03.2020
SNPC
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