Até há pouco, até
este trânsito epocal que se vem convencionando chamar “revolução
digital”, o todo era a designação que se dava a uma grandeza apenas
hipotética, uma grandeza que se sabia inalcançável.
A revolução digital
transformou o todo (ou, por assim dizer, o infinito) numa quantidade
mensurável e que se pode doravante possuir. Mas não só: o infinito
tornou-se a única medida comercialmente significativa. Se uma
determinada realidade não arrisca apresentar-se em termos de totalidade,
passa imediatamente a estar circunscrita a uma proporção mínima e,
logo, insignificante. Um dos mil exemplos que a transição digital
fornece é o Spotify. Um disco é um repositório de dez ou doze canções. O
Spotify é (em teoria) o repositório de toda a música do mundo. Ora, o
caudal de aplicações, que hoje circulam em turbilhão, busca esse efeito,
que na opinião de alguns é simplesmente tecnológico, mas que segundo
outros tem inevitáveis consequências culturais e antropológicas:
procura-se desativar a ideia de infinito. Recordo o que foi escrito por
Alessandro Barrico num recente ensaio, intitulado “The Game”: “Se
conseguires elevar o todo a unidade de medida, a épico objetivo de
qualquer tarefa e a mercadoria perfeita, fazes uma vítima ilustre: o
infinito. De facto, se puderes abarcar o todo, o infinito não existe.”A revolução digital transformou o todo (ou, por assim dizer, o infinito) numa quantidade mensurável e que se pode doravante possuir
Por coincidência, neste 2019, está a
comemorar-se o segundo centenário do poema ‘O Infinito’, de Giacomo
Leopardi, certamente uma das líricas mais amadas do cânone ocidental, e
que ele escreveu quando tinha vinte anos de idade. Apenas um ano antes,
aquele miúdo macambúzio de Recanati, um lugarejo nos confins do Estado
Pontifício, atreveu-se a escrever a Pietro Giordani, um dos intelectuais
mais famosos daquela época. Contava que tinha visto a primavera, que
tinha ficado soterrado de espanto com a primavera e que sentia, desde
aí, o imperativo de se tornar poeta. Giordani dá-lhe então um conselho
prudente, que Leopardi evidentemente não segue: recomendou-lhe que
escrevesse ainda, durante um período longo, prosa apenas, antes de
enfrentar a poesia. Pouco tempo foi necessário para que Leopardi
chegasse a essa composição fulgurante, essa espécie de milagre verbal
construído por 100 palavras, distribuídas em 15 versos inesquecíveis.
“Sempre cara me foi esta colina deserta,/ e a sebe, que de tantos lados/
me exclui a visão do último horizonte./ Mas sentado aqui, olhando
intermináveis/ espaços para além dela, e sobre-humanos/ silêncios, e a
quietude mais profunda,/ no pensamento eu finjo; então por pouco/ o
coração não se apavora. E o vento/ ouço gemer nas ervas, e àquele/
infinito silêncio esta voz/ vou comparando: e sobrevém-me o eterno,/ e
as estações já mortas, e esta presente/ viva, com o seu ruído… É assim,
que nesta/ imensidão se afoga o meu pensamento:/ E o naufrágio me é doce
neste mar.” O fascínio do poema liga-se provavelmente ao seu carácter
enigmático, acentuado por um balanço sucessivo de contradições que
cartografam o ser do homem no mundo: há uma sebe a impedir o horizonte,
mas o horizonte entra como um dique que se rompe; há um infinito
silêncio descrito, porém, como uma voz; há uma experiência da imensidão
avaliada como um afogamento e um naufrágio que, ao mesmo tempo, se dizem
serem doces... O poema coloca-nos no interior da luta que todos
provamos na carne e na alma, dentro do combate entre a finitude humana e
o infinito entrevisto, isso que não conseguimos domesticar nunca numa
representação, mas que não deixa de constituir um fator determinante do
mistério que somos. Leopardi tem razão. O infinito não é uma mercadoria.
Por Tolentino Mendonça
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