“O Cristianismo não é uma ideologia, é uma pessoa”

Austen Ivereigh é jornalista e biógrafo do Papa Francisco. Publicou há pouco "Francisco, o Grande Reformador" e já tem novo livro a caminho: "Pastor Ferido – A luta do Papa Francisco para converter a Igreja Católica". Numa entrevista ao Igreja Viva, à Rede Mundial de Oração pelo Papa e ao Ponto SJ falou dos desafios do actual pontificado, dos escândalos que assolam a Igreja e do futuro do cristianismo.


Quais são os principais desafios que se colocam à Igreja de hoje na Europa?
Eu diria que o principal desafio é a credibilidade. Depois de tantos escândalos e de tanta distância da Igreja da população em geral, o grande problema é mesmo essa distância, essa falta de compreensão e empatia que podemos resumir na palavra credibilidade. É uma palavra que o Papa Francisco usa muito, relacionando-a com a evangelização: não podemos evangelizar se não formos credíveis. No fundo, a credibilidade advém da síntese da integridade, da oferta do Evangelho. Acho que recuperar a essência do Evangelho é a tarefa principal da Igreja de hoje.

Como é que se posiciona o Cristianismo na actual realidade europeia, marcada pelo secularismo? Muitas vezes parece que a Europa está a rejeitar a herança cristã…
Acho que para o Papa, e é o discernimento que ele faz, este é o momento de voltar a recuperar o que era a Igreja nos primeiros séculos, o cristianismo que também acontecia num contexto de secularização, de paganismo. Não era uma instituição forte, com muita influência política, mas podia evangelizar pela força do testemunho, sobretudo no que diz respeito à misericórdia de Deus. Acho que esta é a grande tarefa da Igreja, sobretudo num contexto de secularização, a de ter essa força de testemunho! Isto implica sobretudo cristãos que tenham tido um encontro muito pessoal com Jesus Cristo. Esta é a grande análise que fez a Igreja Latino-Americana na Conferência Geral de Aparecida, em 2007: num contexto de liquidez, de fragmentação, quando os mecanismos de transmissão da fé estão quebrados – como a lei, a cultura e a família, que são os mecanismos de transmissão tradicionais – a evangelização depende da experiência de testemunho pessoal vivido pelos cristãos.

E esse é um caminho fácil? É possível recuperar essa identidade judaico-cristã da Europa?
Eu acho que isso, como objectivo da Igreja é um mito, é um falso caminho. Se a Igreja está focada em recuperar terreno – sobretudo espaço e poder de influência, que em si mesmos não têm nada a ver com o Evangelho – é uma distração que também faz a Igreja vulnerável aos encantos dos populistas como Salvini, em Itália, Putin, na Rússia e Trump, nos EUA, que se oferecem precisamente para proteger uma identidade judaico-cristã, mas que não é autêntica. O Papa pensa que este não é o momento para recuperar alguma coisa, mas sim para olhar para diante e focar-se no essencial.


Como é que a Igreja pode aprender num espaço público tão plural a não ser só mais uma voz e como é que a Igreja dentro de si mesma pode aprender a ser mais espaço público? Ou seja, a lidar melhor com a pluralidade dentro da própria Igreja?
A tarefa da Igreja é a de criar uma nova cultura dos elementos fragmentados que existem. E tem que o fazer através de um caminho de humildade e não a partir do poder, mas sim da oferta gratuita. A grande vantagem da secularização e do pluralismo é que estes dão oportunidade à Igreja de recuperar a gratuidade da oferta cristã. Nesse sentido é uma grande oportunidade! Estamos perante uma questão de foco: se estamos a lamentar-nos, a olhar para o passado e a tentar recuperar-nos, este é um falso caminho. A tarefa é a de ouvir o convite do Espírito Santo neste momento para a Igreja: como é que ela deve mudar ou reformar-se para oferecer o Cristianismo neste contexto? “A cultura do encontro” é a grande frase do Papa e consiste em criar uma cultura onde as pessoas de raças, religiões e crenças diferentes podem coexistir com respeito mútuo. Não é só tolerância, é uma tentativa de ter juntos elementos contrastantes num tipo de síntese que pode oferecer algo de novo para todos, algo que não é de nenhuma identidade em particular mas que pode ser uma expressão de todos. Acho que o papel da Igreja, dos cristãos, é fundamental nisso. Acho que se os cristãos não o fizerem, ninguém o vai fazer.

Mas como é que a Igreja – onde, de alguma forma, a polarização que se sente no espaço público também é nela sentida – pode “desentrincheirar-se” dentro de si própria?
Estou totalmente de acordo, acho que a polarização dentro da Igreja neste momento é uma das muitas coisas que abala a sua credibilidade. A Igreja não pode ser factor de união na sociedade se estiver dividida. Isto quer dizer que a cultura do encontro tem de começar dentro da Igreja. Como é que se pode fazer isso? Pelo mesmo método, no sentido em que temos que a aprender a escutarmo-nos uns aos outros, a entender que por trás da crença, da pessoa ao meu lado, há um valor. Todos acreditam em valores: temos que entender qual é o valor do outro e respeitar esse valor ao mesmo tempo que podemos estar em profundo desacordo com ele. Isto tanto entre os católicos ou entre católicos e não-católicos!

Nesse sentido, acha que perdemos por às vezes termos um discurso um pouco mais fechado, mais hermético, que nos impede de ouvir e de escutar o outro? Mesmo dentro da Igreja?
Sim, sim. Eu acho que está cada vez pior! Acho que os católicos estão cada vez mais tentados pela identidade. Isto é normal numa situação de mudança, de turbulência. É normal que as pessoas procurem certeza, psicologicamente, é perfeitamente compreensível! O problema é que, muitas vezes, tentamos construir essa identidade com base em coisas que, no final, não podem conferir essa identidade. Nesse sentido estamos a falar de ídolos. A tarefa da Igreja é a de oferecer a verdadeira identidade, que é Jesus Cristo. Mas para que Jesus Cristo seja a nossa identidade, temos que aceitar um certo nível de dúvida e de incerteza. Porque, no fim de contas, o Cristianismo não é uma ideologia, é uma pessoa. O convite aos ideólogos, estejam dentro ou fora da Igreja, é o de abandonarem esse tipo de certeza e acreditarem na verdadeira certeza que é Jesus. Mas isto não é fácil! Sobretudo porque acho que muitos muitos sacerdotes jovens, muitos jovens católicos comprometidos estão muito atraídos pelo fundamentalismo, pelo tradicionalismo, e estão a construir uma imagem da Igreja que não é real. Como se a Igreja fosse uma rocha fora do tempo, flutuando no espaço, completamente imutável. Não, isto não é a Igreja. Isto é Deus. Deus sim, é imutável! Mas a Igreja tem de mudar constantemente, tem que se reformar constantemente para poder evangelizar nos tempos que estão a mudar.

Há uma confusão entre Deus e a Igreja?
Há uma tendência de idolatrar a Igreja precisamente por ser uma instituição tão grande, tão forte. Como instituição é admirável! É admirável pelo facto de ter sobrevivido tanto tempo, por ter essa presença no mundo. Eu também já passei por tempos em que pensei que a Igreja, como instituição, era capaz de salvar a sociedade. Mas a ideia do Concílio Vaticano II da Igreja como povo de Deus é muito real! Porque de facto a instituição é algo muito forte mas, no dia seguinte, pode perder essa influência, como estamos a ver agora com a crise dos abusos sexuais. É incrível ver como era, por exemplo, a Igreja em Boston, nos EUA, ou do Québec, no Canadá, nos anos 60 e 70, e como é agora… A transição é dramática! A questão é se a Igreja será mais capaz de evangelizar neste contexto ou naquele último. Eu acho que esta humildade forçada da Igreja oferece mais oportunidades de encontro com o Jesus Cristo do Evangelho do que uma instituição forte na sociedade civil com muito êxito. Mas isto é difícil de aceitar, porque é mais fácil acreditar numa instituição forte do que num salvador débil, ou um salvador disposto a assumir a debilidade da condição humana.

De que modo vê a presença e a possível integração das comunidades islâmicas no contexto desta Europa secularizada? Logo o Austen, que vem de um país onde a presença do Islão é tão forte.
Sim, é forte. É interessante ver a diferença entre católicos sobre isto. Pensemos em países como a Polónia ou a Hungria, que dizem que não podem aceitar os migrantes islâmicos porque são um país cristão, são uma nação cristã, e por isso têm que fechar as portas… Mas depois o Papa Francisco vai a Lesbos, na Grécia, visita um campo de refugiados e volta a Roma com quem? Com doze refugiados, todos muçulmanos. Eles já tinham os documentos preparados, foi por causa disso, também podiam ter sido cristãos a voltar com ele. Mas o importante é que para o Papa isso não importava! Os refugiados são pessoas necessitadas e os países cristãos têm de abrir as portas aos necessitados. Isto não quer dizer que não tenhamos o direito de regular o nível de imigração – aliás, isso é claro na Doutrina Social da Igreja, os países podem fazê-lo, sobretudo porque também têm a obrigação de integrar os que chegam e um país só tem uma certa capacidade de integrar – mas, quando estamos a falar de refugiados de guerra, para mim uma prova da identidade verdadeira de um país cristão é ser capaz de abrir as portas para receber essas pessoas necessitadas, não importa quem são. Por isso a questão da imigração, que para o Papa Francisco é fundamental, é o maior desafio neste momento para as sociedades cristãs em geral. Se somos cristãos ou não, a resposta a essa pergunta depende de como respondemos às necessidades dos refugiados!

A França, por exemplo, tem grandes comunidades islâmicas. Como é possível essa convivência? Como é que se pode viver de uma forma pacífica? Há uma integração efectiva dessas comunidades?
Sim, é possível, há muitos modelos diferentes. O meu país, Inglaterra, é diferente de França, e Espanha e Portugal têm outro modelo. Acho que cada cultura tem de encontrar a sua forma de integrar o que vem de fora! Uma coisa fundamental é a justiça, o acesso à educação e ao trabalho. Mas também é preciso aceitar as coisas novas que os estrangeiros trazem e eles também têm que respeitar os costumes e tradições do país que os recebe. Normalmente a experiência em geral do mundo da imigração é muito positiva! Os imigrantes em geral formam uma nova identidade que não é totalmente a que já tinham, mas também não é completamente a do país onde estão, é uma coisa nova. A imigração, em geral, é muito antiga, faz parte da humanidade. Os grandes êxitos económicos, sociais e culturais do mundo são de países que têm acolhido os imigrantes.

Haverá excepções, naturalmente, mas isto não é exclusivo das comunidades islâmicas. Qualquer imigrante pode, ou não, adaptar-se.
Sim, exactamente. O Islão em si mesmo não coloca nenhum obstáculo à integração como tal. É interessante que o Papa está muito focado, neste momento, no mundo islâmico: já foi em Janeiro aos Emirados Árabes Unidos e vai agora a Marrocos. É notável que ele tenha a urgência de criar, com o mundo islâmico, pontes de diálogo onde podem reunir-se contra os fundamentalistas, os que procuram dividir usando a religião. É importante que os líderes religiosos formem uma aliança contra o fundamentalismo e também a favor da liberdade religiosa que, no fim de contas, é a liberdade básica da democracia. Sem a liberdade religiosa – que pode beneficiar muita gente não religiosa – não temos democracia, não temos pluralismo. O direito de construir uma nova sociedade em torno de valores fundamentais é o valor da liberdade religiosa.

Muitas vezes há quase uma ideia da privatização da religião. Que contributo é que nós também podemos dar para que a presença da religião no espaço público seja por um lado efectiva, respeitando a pluralidade, mas que não nos faça renunciar de uma forma quase temerosa a essa presença? Isto é, sem cairmos na tentação de acharmos que a religião é só uma coisa que se confina ao espaço privado?
Não podemos aceitar a visão da religião que tem o liberalismo ou o secularismo, que dizem que a religião é um assunto privado. Não, é um assunto necessariamente público, precisamente porque tem uma visão do ser humano e da sociedade! Então não podemos aceitar a narrativa secularista nesse sentido. Ao mesmo tempo, temos que aceitar a realidade do pluralismo e que o facto de sermos cristãos católicos numa sociedade com uma tradição cristã não nos dá nenhum direito em especial. Temos de oferecer o que temos com os mesmos termos, com a mesma linguagem, com os mesmos métodos de todas as pessoas que participam numa democracia plural. Também acho que é importante reconhecer que num tema como o aborto, por exemplo, ou mesmo a eutanásia, temos que prosseguir com estas batalhas porque são fundamentais, mas vamos perdê-las. Em geral, temos perdido essas batalhas! O problema de quando a Igreja intervém nestas questões, a percepção que há é a de que a Igreja vai procurando impor os seus valores, o que pode produzir uma contra-reacção. Para mim é muito importante que a nossa mensagem sobre a vida seja apresentada não como uma lei, não como um pressuposto, mas como Evangelho. Parece-me que o convite à Igreja neste momento é o de compreender como oferecer a boa notícia da vida, não como uma restrição dos direitos das pessoas, mas como uma oferta que nos vai libertar a todos.

Estamos a falar de uma mudança de linguagem?
É uma mudança de linguagem, de estilo, de enfoque. A imagem que tenho é a de um católico muito zangado e muito frustrado quando estão a falar deste tema. Estão a falar de legalizar uma coisa ética muito importante para ele e a sua indignação acontece porque ele sente-se uma vítima disto! Temos de aprender a não sermos vítimas neste contexto porque a vitimização, como diz o Papa, é uma forma de vingança, é uma forma de expressarmos a nossa impotência! Somos impotentes num sentido: a Igreja como tal é incapaz de impor, de exigir. Temos de aceitar isso e aprender uma linguagem de humildade, de oferta e de testemunho credível também à base de acções, não só de palavras. Dito isto, acho que pelo menos a Europa está a fazer isso. Quando olho para os bispos, acho que eles em geral comunicam isso com humildade. Há algumas excepções, mas acho que estamos a aprender isso.

Mas houve uma viragem em concreto com o Papa Francisco? Já que falamos de gestos concretos, como a viagem aos Emirados Árabes ou a Marrocos, as celebrações ecuménicas um pouco por todo o lado… Há uma viragem aqui no modo de estar da Igreja?
Há uma viragem em termos de moral, de lei e de política. Parece que o Papa tem tentado, sobretudo nos Estados Unidos, mudar a direcção da Igreja para que ela seja menos focada na lei, no direito e no Estado, e mais focada na evangelização da sociedade. Lembro-me de um bispo que agora é cardeal, nos Estados Unidos, uma vez contar que na sua diocese todos os jovens católicos eram militantes anti-aborto, mas não podiam falar da fé nem do porquê da Igreja ser anti-aborto. O grande risco é de converter a Igreja num instrumento das guerras culturais e políticas! Dessa forma podem ganhar-se batalhas de vez em quando, mas perde-se a guerra no sentido de as pessoas estarem cada vez menos convencidas de uma Igreja que se apoia esse tipo de discurso. Não estou a dizer que a Igreja não devia participar nestes debates públicos: deve, deve, deve! A mensagem pró-vida é uma mensagem do Evangelho e tem que ser pronunciada com muita paixão. Deve é evitar usar a linguagem, as atitudes e presunções das campanhas políticas, que não são próprias da Igreja. Nesse sentido parece-me que o Papa Francisco tem feito um desenvolvimento muito importante que Bento XVI já queria fazer, já falava muito nisso. É uma nova linguagem de humildade, de misericórdia, de oferta humilde… e não de imposição indignada!

Na Laudato Si’ o Papa Francisco socorre-se de um movimento que vem dos Estados Unidos, o movimento da ética consistente da vida humana, o olhar para a vida humana em todo o seu o seu desenvolvimento. No fundo não centra a luta pela vida na questão do aborto e da eutanásia, que são evidentemente importantes, mas liga-a também às questões do urbanismo ou da ecologia. Essa parece-me que foi várias vezes uma das nossas dificuldades: perceber que a defesa da vida também se faz quando se luta contra uma legislação que dificulta a vida às mulheres grávidas, por exemplo. Ou quando se luta por uma organização do espaço urbano que facilite a vida às famílias. Não se pode aprovar uma legislação que “desgrace” a vida às famílias e a seguir ir para uma manifestação contra o aborto. Não é muito coerente, pois não?
Acho que coerência é a palavra-chave. Daí a ecologia integral! Parece-me que é uma grande visão, uma renovação da oferta católica social, para mim magnífica! É interessante que na questão ecológica Bento XVI deu-se conta da consciência maior sobre a Ecologia. Ele queria conversar com essa consciência ecológica ocidental e por isso perguntava aos ecologistas: “a vocês importa-vos a ecologia, porque não vos importa a vida do não nascido”?. Parecia-me fantástico este diálogo! O problema era haver tantos católicos a quem importava a questão do aborto, mas não importava a questão ecológica. A esse diálogo faltava credibilidade por essa razão. Então chega Francisco e diz àqueles mais pró-vida e anti-aborto nos Estados Unidos: “se a vós importa o não-nascido, tem que vos importar também a natureza humana que se está a desenvolver”. Porque é a mesma lógica, é a mesma fé! Claro que alguns sectores de opinião dos EUA muito agarrados ao modelo do capitalismo americano não gostaram nada disto, diziam que o Papa era marxista e tudo (risos). Não! Falamos simplesmente da credibilidade da integridade da mensagem evangélica. Isto é muito importante para a credibilidade evangelizadora da Igreja, sobretudo em relação aos jovens. Vejo que os jovens entendem isto de imediato. Se é possível falar da mensagem pró-vida num contexto maior ecológico, entendem de imediato.

Um dos temas que está muito na ordem do dia é a questão dos abusos sexuais. Quais são os grandes desafios que esta crise e este pecado nos trazem? Como é que a Igreja pode lidar com os aspectos comunicacionais deste tema? O que é que esta questão exige em termos de conversão da própria Igreja na sua maneira de estar e de prestar contas ao mundo?
Acho que para o Papa Francisco o ano passado foi um momento de conversão pessoal, sobretudo com a crise do Chile. Antes disso ele considerava via esta questão como um aspecto de uma série de prioridades. No fundo concebia o fenómeno como sendo um tipo de pecado, um tipo terrível, mas focado na pessoa individual que comete os abusos. Depois do Chile começou a ver esta questão num sentido muito mais amplo, como um abuso de poder. De poder e de consciência que também tem uma dimensão sexual, mas que é muito mais do que isso. No fundo é uma perversão do poder! Nesse sentido é diabólico, é satânico, já que toma o ministério do sacerdócio, que foi criado por Jesus para servir a humanidade, e em vez de servir o povo de Deus serve-se do povo de Deus, explora-o. É uma perversão terrível e que implica também a instituição, por isso falo do clericalismo como estando na base de tudo isto. O clericalismo é um modelo da Igreja que no fundo é abusivo. Estes escândalos e estas revelações que temos vivido, sobretudo neste ano de 2018, para o Papa têm uma finalidade: o Espírito Santo quer que a Igreja veja e enfrente as consequências do clericalismo. E temos de não ter medo disso! Estas informações sobre o passado são terríveis, mas temos que enfrentá-las, admiti-las e confessá-las. Temos que ser convertidos pela sua realização porque, no fundo, a conversão nas nossas vidas só se produz a partir da raiz do problema, é uma metanóia, uma transformação do coração. A Igreja como instituição não é punitiva, jurídica. Não se pode erradicar este mal simplesmente mudando o bispo! Não, o que se exige é uma conversão, uma conversão do coração. Por isso é que neste encontro agora em Roma todos os dias começavam com a escuta de um testemunho de uma vítima de abusos. Foi uma coisa muito, muito forte. Todos os que estavam lá, inclusive aqueles que vinham de algumas partes do mundo em que pensavam que não ter nenhum problema deste género, estavam convertidos. E, no final, o convite é o de uma conversão, para usarmos a linguagem de Aparecida, uma conversão pastoral! A Igreja tem que ser convertida: de uma instituição focada em si mesma, auto-referencial, jurídica, moralista, orgulhosa, dogmática que usa o poder, para uma instituição do povo de Deus, humilde, que oferece o Evangelho no contexto que temos falado do pluralismo. Isto quer dizer que estamos a viver tempos muito, muito difíceis, turbulentos, mas o convite do Espírito Santo é de aceitarmos que em tudo isso há uma graça de conversão que, se formos capazes de aceitar, é algo muito grande. Porque a Igreja, assim, vai ser mais uma Igreja de Jesus Cristo e do Evangelho do que é agora.

Acredita que vai existir essa conversão do coração e essa conversão pastoral?
No processo de conversão há sempre uma resistência forte em todo o lado. Precisamente porque se o Espírito Santo é o autor do convite, o Papa é como o director espiritual da Igreja. A Igreja tem os seus exercícios espirituais e o Papa é o director espiritual dando conselhos, advertindo sobre as tentações e convidando a Igreja a aceitar essa graça. Mas já se sabe que vai haver muita resistência… E há, há muita resistência, muita crítica, muita turbulência! Eu não posso dizer o que vai acontecer, mas em geral diria que isto é a Igreja, ponto um. E depois é a Igreja de Jesus Cristo, ponto dois. Terceiro ponto: é evidente que este é o convite do Espírito Santo, por isso acho que, no fim, haverá essa conversão.

Tivemos a cimeira sobre os abusos há pouco tempo. Aqui em Portugal temos um órgão de comunicação que decidiu começar uma investigação sobre os abusos no país. Que conselhos daria à Igreja em Portugal para comunicar estes casos e lidar com eles?
A tarefa de comunicação nesta questão não é fácil. A maioria destes casos são do passado, a revelação é muito posterior aos eventos. Tento sempre contar uma história de conversão no sentido de a Igreja, antes dos anos 80, ter níveis muito altos de abuso sexual, totalmente inaceitáveis… Geralmente entre os 4 e os 8% de sacerdotes eram acusados em algum momento! Refiro-me ao decurso de muitas décadas. Mas, depois dos anos 90, quando a Igreja começa a confrontar-se com tudo isto, muda! E depois de 2000, sobretudo, os níveis de abuso na Igreja no mundo ocidental estão num nível muito, muito baixo, pelo menos muito mais baixo do que noutras instituições. Temos de comunicar este facto ao mesmo tempo que dizemos que a revelação do passado tem que afectar o presente! E, além disso, as feridas das vítimas são de agora, não são do passado. É muito difícil comunicar estas duas coisas ao mesmo tempo, mas acho que é este o desafio… E também o de oferecer uma visão dessa conversão sobre a qual falava! O problema é que na sociedade e nos meios de comunicação, quando se começa a falar de conversão espiritual, soa sempre a um desvio da conversa, porque o mundo e a sociedade em geral só compreendem as medidas jurídicas. A sociedade em geral – e precisamos de nos perguntar porque é que nos vêem assim – vê a Igreja como uma empresa. E, se é uma empresa, tem actuado mal: o que se deve fazer é mudar os líderes, desencadear uma investigação ou livrarmo-nos das pessoas más? Então livramo-nos dessas pessoas, chamamos o FBI e está feito!… Mas a Igreja não é assim… Então como é que se pode comunicar que a Igreja não é uma empresa? A mudança é resultante do efeito da graça e da misericórdia, isto são desafios comunicacionais nada fáceis.

Até que ponto é ético estar a desenterrar o passado de uma pessoa que já não se pode defender e contra a qual não há provas plausíveis? Ou seja, até que ponto é ético fazê-lo se a notícia já não poderá entrar no domínio do interesse público?
Acho que é ético revelar as acções do passado que criaram vítimas e que não foram bem geridas pelos bispos. Isto parece-me ser do interesse público. Mas acho que temos de ter muito, muito cuidado ao falar de pessoas acusadas se essas acusações não são demonstradas, provadas! Estou um bocado incomodado com algumas acções da Igreja americana nesse sentido. A reacção de muitos bispos tem sido de medo em relação às revelações dos abusos: para mostrarem que são transparentes publicam todos os nomes dos sacerdotes acusados… Bom, com acusações credíveis, mas não provadas. Parece-me muito bom publicar os números e as estatísticas, mas os nomes… Na Igreja, no Código de Direito Canónico, há uma coisa que se chama “bona fama”. É um direito que forma a base da sociedade ocidental, é muito importante não esquecer isso. A maioria das acusações feitas pelas vítimas é verdadeira, mais de 90% das acusações são verdade. E as vítimas têm de ser sempre escutadas e ouvidas. Mas… Há uma minoria que é falsa, isto está provado! Ou por razões de dinheiro, ou simplesmente por memórias falsas. E por isso não podemos renunciar ao princípio básico e jurídico ocidental que é o de presumir a inocência de alguém até que seja demonstrado algo em contrário. Mas isto não pode ser uma desculpa para não ouvir as vítimas, claro! As vítimas têm de ser sempre escutadas, têm de ser sempre prioridade, isto é muito importante. Mas isso não implica necessariamente aceitar as recomendações das organizações das vítimas quando elas falam das mudanças que querem que a Igreja faça, porque a mim parece-me que a maioria dessas recomendações vem desse modelo corporativo que não é aplicável à Igreja.

Usou há bocado uma expressão muito bonita, a do Papa Francisco como director espiritual que está em exercício. Daquilo que percebe da acção do Papa Francisco, onde é que nota a presença dos exercícios espirituais de Santo Inácio mais marcados na sua acção?
Eu diria que é muito difícil separá-lo dos exercícios (risos)! É um homem totalmente imbuído dos exercícios, para quem o discernimento é uma coisa muito natural. Vou dar um exemplo: na manhã em que o Arcebispo Viganó publicou a sua denúncia sobre o Papa, na conferência de imprensa a bordo do avião proveniente de Dublin fizeram uma pergunta a Francisco sobre isso e ele disse que não ia responder. Disse aos jornalistas para fazerem o trabalho deles! Um jesuíta depois perguntou-lhe porque é que tinha respondido assim e ele disse que tinha sido uma emoção desse momento. Acho que ele responde várias vezes com muita espontaneidade, a gente nem sabe quão pouco preparado o Papa está neste sentido… Ele responde com a emoção dos acontecimentos. Outro exemplo tem a ver com o momento em que o Papa esteve com os Rohingya, a polémica que houve com a nomenclatura do povo. Mais uma vez o Papa disse que nesse momento teve uma emoção. No fundo é esta a ideia dos exercícios, a de sentirmos essas emoções! E o Papa é um homem com uma sensibilidade incrível. Depois há também o discernimento… Os jesuítas argentinos que conheço têm uma capacidade de ver os disfarces, as aparências do diabo a léguas, mesmo quando disfarçadas de coisas que parecem lindas, muito ortodoxas e religiosas. O Papa tem uma capacidade incrível de ver isso de muito longe! Escrever sobre este Papa e sobre este pontificado é sempre fascinante, sobretudo na sua reacção à oposição. A forma como ele responde acho que tem muito a ver com os exercícios, até as decisões que ele por vezes toma – de não responder ou responder depois de certa maneira – é por não querer entrar no círculo mimético do Diabo. Respondendo a um mau espírito há sempre a possibilidade de entrar no mesmo jogo dele. E ele tem dito várias vezes que com o diabo não se brinca!

Talvez esta seja uma das acusações ou desconfianças que há relativamente ao Papa, que ele tem quase como que uma confiança demasiado ingénua na capacidade de a Igreja viver o discernimento. Acha que existe esse perigo ou acha que é preciso é que a Igreja seja mais madura e aprenda realmente a viver em discernimento?
Não há dúvida de que muitos ensinamentos e acções deste Papa dependem do discernimento e dependem da criação de uma cultura de discernimento na Igreja. Estou a pensar sobretudo no capítulo VIII da Amoris Laetitia. É óbvio que a Igreja não está preparada para isso! Mas, em parte, acho que é este o papel do líder, do Papa: tem de avançar e mostrar o caminho. É interessante ver quantas coisas estão a acontecer desde o início deste Pontificado. Diria que a Igreja já tem aprendido a discernir de uma forma que era inconcebível há uns anos. Um exemplo grande seria o do Sínodo. O Sínodo dos Bispos, em Roma, agora é um mecanismo de discernimento eclesial, apostólico, corporativo, uma coisa extraordinária! E isso tem mudado a Igreja, acredito mesmo nisso. A Igreja agora tem a capacidade de reformar-se, de responder às exigências dos tempos modernos exactamente como queria o Concílio Vaticano II e exactamente como acontecia já nos primeiros séculos do Cristianismo. Acho que este vai ser visto como o grande contributo deste Pontificado para a história da Igreja. Não serão as reformas da Cúria ou do Vaticano, por mais importantes que sejam – o ensino da Ecologia é importantíssimo! –, mas o que terá mais impacto a longo prazo será isso: produzir mecanismos de discernimento eclesial através da sinodalidade.

E como é que liga isso ao recuperar do primado da consciência?
Há uma linha na Amoris Laetitia que diz: “não é a nossa função substituir consciências, mas sim formá-las”. Não é papel da Igreja substituir a consciência, mas sim de formar ou educar a consciência. Muitas pessoas leram isso e pensaram: “ah, finalmente!”. Precisamos de cristãos maduros, pessoas de fé, e não de crianças que estão à espera das decisões, que não são capazes de pensar por si e recebem ordens de cima. E a consciência não é, como pensam muitos americanos, uma possibilidade de não aplicar a lei, de evitar a lei. É sobre como aplicar a lei neste contexto e nesta situação! De tal forma que estejamos abertos à graça de Deus: o que é que Deus me pede neste contexto, dentro das minhas limitações? A ideia de consciência é muito importante, só se lhe pode obedecer no contexto real, das pessoas na vida real. Não é uma coisa abstracta, isto é mesmo muito importante! A conversão pastoral consiste em criar espaços para que a Igreja possa melhorar, para que a graça de Deus possa entrar nas situações das pessoas reais. Uma vez perguntei a um jesuíta sobre o porquê de tanta resistência a este Pontificado e ele disse-me que a resposta era simples: o Papa está a ampliar o acesso à graça de Deus, por isso há tanta resistência.

Uma das preocupações de Bento XVI prendia-se com o risco do desaparecimento da fé na Europa, tanto é que todas as suas viagens em 2010 foram ao continente europeu. Persiste esse risco?
Não. Acredito que a fé na Europa é uma coisa muito, muito importante. Temos que ter cuidado ao pensar que a fé na Europa é a Igreja. Isso simplesmente não é verdade! Neste momento a maior parte dos católicos, quase 50% a nível mundial, vive na América-Latina. A contribuição da Europa para a Igreja universal está sempre a diminuir. Isto não significa que a Igreja e a fé na Europa não sejam importantes… são! Mas eu acho que para o Papa a Europa já não é capaz de evangelizar-se a si mesma, porque a tecnocracia e o individualismo têm chegado a tal ponto que a Europa só pode ser evangelizada a partir de fora. Ou seja, desde a periferia, desde a América-Latina, mas também desde a religiosidade popular europeia. E o Papa está muito convencido disso. Estas reservas de religiosidade popular têm elementos de renovação da Igreja europeia. Mas não vamos recuperar o cristianismo na Europa com muitas visitas Papais aos estados europeus… (risos). Não! É a religiosidade popular e a imigração que têm essa capacidade de renovar a Igreja, daí o ênfase do Papa nas periferias. Alguns europeus dizem que para o Papa a Europa não importa. Não, não, importa muito! Precisamente por importar é que ele tem preferido ir às periferias.
Porque a partir daí acha que também pode dar um sinal à Europa…
Porque evangeliza-se desde sempre a partir da periferia. Isto é o Evangelho! É em Jesus que começa isto, porque é nos lugares de sofrimento e de necessidade que encontramos Jesus… isto é o Evangelho! E a Europa é demasiado rica, demasiado prepotente, demasiado convencida da sua bondade…. Isto cria uma resistência ao Evangelho muito grande.



Voltando à questão ecuménica: ainda há caminho a percorrer com a Comunhão Anglicana e as Igrejas da Reforma?
Para o Papa Francisco acho que o diálogo ecuménico – o diálogo ecuménico-teológico como tal – tem conseguido o seu propósito. Não absoluto, mas também não é o momento disso! Digamos que os teólogos podem sentar-se e chegar a acordos muito bonitos (risos). Mas, na prática, as instituições ficam divididas. Para o Papa, o desafio é o de aceitar que é o Espírito Santo que faz a união: a união cristã é o fruto da acção do Espírito Santo. Como se podem criar processos que abrem as Igrejas a essa acção? Em geral, a mensagem do Papa e a sua acção para com as outras Igrejas tem sido a de os convidar primeiro à amizade, a relações pessoais, que são muito importantes para ele. Depois, em segundo lugar convida-as a fazerem em conjunto obras de misericórdia, porque a misericórdia não requer um acordo teológico! É uma acção que demonstra a verdade do Evangelho! Se as Igrejas aprendem a estar juntas, a testemunhar juntas e fazer acções concretas juntas, o Espírito Santo fará o resto.

Há pouco dizia que a Igreja necessita de se adaptar e de mudar em relação aos dias de hoje. As novas tecnologias e formas de comunicação devem ser encaradas como aliadas da evangelização? É possível inovar sem pôr em causa a doutrina?
O Papa Francisco tem trabalhado bastante sobre a questão da tecnologia. O Papa Bento XVI também o fez, no sentido de a tecnologia requerer um discernimento. A tecnologia tem muito potencial, sobretudo no que diz respeito a aproximar as pessoas de forma muito rápida! Isto tem muitas coisas boas, muitas vantagens, mas também muitos riscos. A capacidade de desacordo é muito maior. Eu sei disso porque tenho uma conta no Twitter (risos)! Sei bem quão fácil é entrar de imediato numa batalha feroz baseada numa coisa não muito importante (risos)! Temos que aprender a utilizar a tecnologia com muita discrição, com discernimento. Sem dúvida que é uma aliada, sem dúvida que é uma oportunidade! A globalização que é fruto da tecnologia – ou talvez a tecnologia seja fruto da globalização – é uma grande oportunidade para sermos mais próximos, vizinhos até. O problema é que com as mudanças rápidas creio que se cria um certo medo: muitas vezes as pessoas querem construir fronteiras para proteger-se. O papel da Igreja neste sentido tem de ser o de não termos medo das mudanças, de não termos medo da tecnologia. Tudo é uma oportunidade, tudo é um dom! Mas temos de o usar com discrição, com discernimento e com atenção à rapidez, que é importante. Pode ser um grande inimigo… Nós, seres humanos, não somos construídos para coisas rápidas. Uma tarefa essencial é a de criar espaços de pertença, de identidade, com laços de fraternidade, que sejam capazes de fornecer uma identidade e segurança, precisamente neste mundo turbulento de mudança! Para mim esta é uma tarefa grande para a Igreja, a de criar essas comunidades e laços de fraternidade e confiança neste mundo rápido, tecnocrático e tecnológico.

DACS / RMOP / Ponto Sj (texto) | João Pedro Quesado (fotos)

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