1. O
ser humano é um animal indeciso. No animal, os instintos e o mundo ao
qual estão adaptados, ou são adaptados, formam um todo. Como escreveu
Roger Garaudy [1], o animal é um feixe de respostas. O ser humano é um
feixe de perguntas. Não se adapta apenas ao meio, transforma-o. Umas
vezes para bem, outras para mal.
Nunca está em equilíbrio perfeito com a
natureza. A lógica interna do seu mundo em crescimento, construído e
governado pela ciência e pela técnica, leva-nos a pensar e agir como se
todos os nossos problemas pudessem ser resolvidos pela ciência e pela
técnica. Não é verdade. Mas só a estupidez pode dizer mal da
investigação científica e das transformações tecnológicas. A sabedoria
mais elementar descobre as suas espantosas vantagens e os seus
quotidianos limites. É miopia esquecer que nenhuma actividade
clarividente pode dispensar a interrogação filosófica, as linguagens da
beleza e as exigências da ética.
Não é impossível descobrir, por outro
lado, que não estamos apenas em face de problemas e enigmas que mais
cedo ou mais tarde poderão encontrar soluções. Em todos os tempos e
lugares há testemunhos de pessoas que despertaram para o mistério sem nome que resiste a todas definições e classificações, um não sei quê, uma
noite luminosa que tudo envolve e sem a qual tudo se banaliza ou
enlouquece. O fundamental na atitude religiosa é o espírito de atenção,
de releitura constante do mistério do mundo. Isto nada tem a ver com o
irracionalismo, pai da violência, seja em que domínio for. A própria
religião, sem a vigilância ética, pode tornar-se uma abominação.
Dada a complexidade de tudo o que ficou
dito, parece-me que a cooperação entre ciência, ética, religião e
estética pode criar um clima espiritual que nos defende de todos os
simplismos, irmãos de todos os fundamentalismos. Como diz o físico
Antonio Rañada, os fundamentalistas religiosos e os ateus militantes têm
algo em comum: acreditam que a geografia do mundo cabe toda num só
mapa, seja na interpretação intransigente de um livro sagrado ou nos
dados de uma ciência exclusivista e totalizadora.
2. Na organização do
calendário litúrgico, este Domingo celebra o Baptismo de Jesus banhado
num clima de enigmas. Há razões para julgar que lhe assiste alguma base
histórica, apresentada numa interpretação de continuidade e ruptura com o
profetismo do Antigo Testamento.
Não convinha nada que Jesus fosse
baptizado por João que tinha discípulos que sobreviveram ao seu
assassinato e ao de Jesus. Estes poderiam sempre dizer aos seguidores de
Cristo: foi o nosso mestre que baptizou o vosso e não o contrário. De
facto, nos diferentes Evangelhos existe uma vontade de mostrar que Jesus
exaltou a figura de João Baptista e este a de mostrar que não era ele o
messias. Apenas lhe preparava o caminho. A narrativa de S. Lucas é
comovente. Por um lado, faz de Jesus um discípulo de João, por outro,
mostra a ruptura com o seu antigo mestre [2].
O que terá acontecido? João era o
símbolo da necessidade de reformar a religião de Israel, mas ainda na
linha austera dos profetas. A sua pregação não se afastava de um rigor
moralista carregado de ameaças. Jesus teve uma experiência espiritual
que o obrigou a romper com esse mundo. Diz o texto que Jesus baptizado
entrou em oração. O resultado exprime a própria personalidade do
Nazareno: Ele é a terra aberta ao céu e o céu aberto à terra, aberto a
todos os mundos. O Espírito de Deus, ao banhar o seu espírito, declara
que Ele é um filho muito amado. Jesus sai dessa experiência com uma
missão: mostrar que toda a gente, a começar pela mais desclassificada,
sob o ponto de vista religioso, moral e material, é amada por Deus e
chamada a viver do mesmo Espírito: Espírito de Deus, Espírito de Cristo,
Espírito de renovação da Igreja, Espírito de transformação do mundo,
numa imensa pluralidade de carismas e de caminhos. É um Espírito que
solicita a nossa inteligência e a nossa vontade, mas que nunca se impõe à
nossa liberdade.
3. Com este novo ano surgiu um novo jornal online. Chama-se 7Margens.Pretende
preencher uma lacuna. António Marujo e Jorge Wemans explicam o
projecto: a partir de hoje tem à sua disposição informação, notícias,
alertas, opinião e comentário sobre as mais diversas buscas espirituais
que marcam o nosso tempo, desde as acolhidas e promovidas pelas
religiões estabelecidas, até àquelas sem nome protagonizadas por pessoas
de todas as formações.
Em setemargens.com encontrará
tudo isto, editado e orientado por critérios jornalísticos.
Independente de qualquer instituição, religiosa ou outra, setemargens.com rege-se
por princípios profissionais e tem como objetivo tratar informação
relativa ao fenómeno religioso, entendido na maior abrangência possível
do conceito. Deste ponto de vista, é um projeto inédito no mundo que
fala português.
A entrevista a Pedro Abrunhosa a propósito do seu novo disco, Espiritual,
foi uma boa escolha. Recorto uma passagem que tem a ver com o Espírito
deste Domingo e desta crónica: "Vivem-se momentos de ausência de
mistério, momentos de pura fisicalidade, de aparência, muita aparência,
de 'eu sou o que tenho', 'eu sou o que mostro que tenho'. Às vezes nem é
o que tenho, se eu mostrar as pessoas vão deduzir que tenho. Logo, sou
aquilo que mostro. E isso faz com que se viva numa feira de vaidade, que
me faz lembrar muito os vendilhões do templo, faz-me lembrar muito este
abastardamento dos valores humanos, que é uma das falências da
decadência. Os impérios começam a decair exactamente por isso, por uma
certa febre da vaidade da aparência."
Não posso esconder a alegria que este
acontecimento me provocou. Sem pretender constituir uma alternativa ao
que existe na Igreja, vai certamente viajar por paisagens que ela ou
ignora ou faz que ignora. Serão novos olhos a ver o que a cegueira dos
grandes meios de comunicação insiste em ignorar.
Outra carência do nosso catolicismo é a
falta de espírito de interrogação filosófica, sem a qual a teologia
adormece. Em Coimbra, lembrando José Dias da Silva, o Instituto
Universitário Justiça e Paz vai revisitar, a várias vozes, a Doutrina
Social da Igreja e as suas incidências na intervenção política.
Em Lisboa, na Capela do Rato, vários
nomes conhecidos da cultura portuguesa vão interrogar a Filosofia, a
Literatura, a Espiritualidade.
Não sou jornalista, mas desejo que este novo ano nos traga muitas e boas surpresas.
[1] Cf Palavra de Homem, D Quixote, Lisboa, 1975 [2] Lc 3, 15-22
IMISSIO
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