Mesmo quando à superfície as águas parecem fluir
distendidas, nem é preciso descer a muitas braças de profundidade para dar-se
conta que trazemos dentro de nós um medo oculto, em contínua combustão: o medo
de falhar.
Vem de muito longe esse medo. Vem de uma cultura que acha que o
fracasso não serve para nada e não vê como ele possa contribuir para
oferecer-nos também uma forma de conhecimento que seja válida. Vem de um
moralismo — e não necessariamente religioso — que tenta por todos os meios
encaixar a vida dentro de um esquema predefinido, sabendo apenas idealizar e
punir, sem compreensão para as travessias, as incertezas e os processos que são
a gramática necessária da maturação. Vem do receio de sermos julgados, expostos
na nossa intrínseca vulnerabilidade, colocados de parte. Tudo isso torna-nos
incapazes de lidar criativamente com o fracasso, de falar dele ou de integrá-lo
de maneira saudável na construção daquilo que somos. Envergonhamo-nos dos
nossos fracassos, vemos neles apenas humilhantes derrotas, quando ganharíamos
em encará-los mais vezes como etapas necessárias de um processo e até como
oportunidades para caminhos interiores que não tínhamos entrevisto. Porque há
muitas coisas piores que o fracasso. E não raro uma delas é o que vem
unanimemente considerado como êxito. A ironia não é só o que nos faz rir, mas
também aquilo que nos faz chorar quando, a dada altura do caminho, percebemos o
preço existencial que a idealização de uma vida bem sucedida nos obriga a
pagar. Um alto preço traduzido em secura, fragmentação, sobre-esforço, exílio
de si mesmo e representação estéril. Jean Lacroix, que escreveu um dos mais
estimulantes tratados que conheço sobre o fracasso, não hesita em defender que
ele é mais produtivo do que o êxito, porque nos obriga a realizar uma
auscultação ampla e profunda da nossa própria vida e a conectarmo-nos a ela.
O fracasso pode ter muitos nomes. Mais importante do
que os nomes, porém, é aprender a interpretar e a trabalhar o quinhão de
fracasso que nos cabe viver
Por isso, repetir o provérbio latino errare humanum
est pode parecer demasiado banal, mas pode ser também o ponto de partida para
analisar, com a serenidade necessária, os nossos passos em falso, as nossas
incertezas e dúvidas, e considerá-los fios indispensáveis do tecido da nossa
existência. O fracasso pode ter muitos nomes. Podemos chamá-lo insucesso,
falhanço, lacuna, erro, imperfeição. Mais importante do que os nomes, porém, é
aprender a interpretar e a trabalhar o quinhão de fracasso que nos cabe viver.
Admitir que o fracasso existe em nós faz-nos sofrer, e não pouco. Mas uma coisa
que quem já viveu o suficiente sabe por experiência é que, quanto menos
investimento fazemos em reconhecê-lo, mais o fracasso, em versão negativa, se
infiltra, se agiganta e nos derruba. O processo paciente de discernimento em
que temos de entrar (e que, certamente em muitas etapas, será um caminho
impaciente e doloroso) não é eventual: mesmo quando fugimos dele por muito
tempo, a sua necessidade impõe-se como condição do verdadeiro autoconhecimento.
Charles Dickens escreveu que “cada fracasso ensina-nos algo que precisamos
aprender”. O filósofo Ortega y Gasset, na mesma linha, colocava-o entre as
categorias vitais da nossa experiência humana recorrendo à metáfora do nadador
em dificuldade: “Naufragar não é afogar-se. O pobre humano, sentindo-se a
submergir no abismo, agita os braços para manter-se à superfície. Esta agitação
dos braços com que reage à possibilidade da sua perda... é já a salvação”. E,
sobre o fracasso, há aquele imperativo do poema de Samuel Beckett, que merece
ser recordado: “Tenta outra vez. Fracassa outra vez. Fracassa melhor.”
Pe. José Tolentino Mendonça
EXPRESSO
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