A frase é de Kafka, mas a
turbulência e a melancolia que nela cabem são nossas. A frase é esta:
“Existe a meta, mas não existe o caminho”.
Porventura é assim que nos
sentimos. Capazes de identificar o que seria o bem, mas confusos quanto
às possibilidade de alcança-lo. Motivados por uma promessa de felicidade
que cumpra plenamente a existência, mas incertos quanto aos passos a
dar nessa direção. Firmes na teoria, mas embaraçados na prática.
Dispostos inclusive a abdicar de tudo, condescendendo com a expropriação
de nós próprios.Trazemos tatuado na carne o inciso de Dante: a meio do caminho eis que a estrada como que se esfuma, e sentimo-nos a entrar, por uma razão ou por outra, numa “selva obscura”.
Desde a passada quarta-feira, que os cristãos chamam quarta feira de cinzas, até à noite pascal abriu-se para eles um tempo, austero na forma, mas impressionantemente audaz no propósito: ligar de forma mais objetiva, e por certo também mais autêntica, aquilo que creem ser a meta a um exercício concreto e quotidiano, isto é, a um caminho. A Quaresma não tem outro sentido. E se é verdade que ela toca de modo muito diferenciado o conjunto dos cristãos, não deixa de ser uma experiência que se destina a todos. É isso precisamente que o Papa Francisco recorda na sua mensagem anual: “Gostaria de pedir a todos para viverem este tempo de Quaresma como um percurso de formação do coração”.
A tradição cristã, muito sustentada pela liturgia, aponta três vias que perfazem o único caminho de conversão.
A primeira via é a oração. O cristão e chamado a fazer do tempo um templo espiritualizando a globalidade da existência através da oração. A oração é uma disponibilidade à relação que depois se concretiza numa determinada prática. É uma ponte lançada com confiança, muitas vezes no meio da completa escuridão, entre o eu e o Tu, entre o tangível e o Transcendente, entre o homem e Deus. E o orante sabe que tudo nele reza: as suas palavras e o seu silêncio, as expressões vocais mas também as simplesmente corporais, o que ele sabe e o que ele ignora. Não é sem razão que os padres do deserto lembravam que abrir as mãos é já rezar. E São Francisco dizia o mesmo do caminhar a pé. A Quaresma será para os cristãos um tempo de reencontro com a oração.
A segunda via, e que várias tradições religiosas perfilham, é a do jejum. Não se trata propriamente de um interdito alimentar, pois distingue o cristianismo a ausência de normas desse teor. Trata-se de procurar uma moderação que nos chega pela sobriedade. No alimento jogam-se muitas representações simbólicas. Por exemplo, derramamos sangue (quer dizer, vida) para nos alimentarmos das outras criaturas. Ou alimentamo-nos de uma mesa abundante sem pensar na penúria de tantos dos nossos semelhantes. O jejum repõe uma lógica mais fraterna. Ajuda-nos a relativizar as reivindicações do nosso eu e os direitos que temos por adquiridos. Dá-nos consciência das múltiplas formas da nossa voracidade. Introduz sentido crítico nas nossas confortáveis rotinas. E aponta-nos o caminho da renúncia voluntária como meio de crescimento interior.
A terceira via é a da esmola, estrada que os cristãos também condividem com outras confissões. A pergunta que Deus faz a Caim: “onde está o teu irmão?”, ressoa aqui como um programa para atuar a solidariedade e a partilha dos bens. Recorda o Papa Francisco: “A Quaresma é um tempo propício para mostrar este interesse pelo outro, através de um sinal - mesmo pequeno, mas concreto - da nossa participação na humanidade que temos em comum”.
Por P.e Tolentino mendonça
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