Serei para sempre tua avó

O corte na relação entre pais e filhos afeta também os netos. Impotentes, no meio da disputa, as crianças veem, abruptamente, os laços familiares serem cortados. São cada vez mais os avós a pedir à Justiça o direito a conviver com os netos.
barulho das crianças a brincar na rua é o som da tristeza. Há dois verões que o cenário se repete. De manhã, Maria Guerreiro, 60 anos, abre a varanda da casa de praia, a sul de Lisboa, e ouve o riso e entusiasmo das crianças a caminho do areal. E todas as manhãs lembra-se da Rita e do Miguel, os netos que criou e com quem há cinco anos deixou de ter uma relação próxima. Fica uns minutos a digerir a memória. Será que, este ano, vão fazer praia, como tanto gostam? Terão passado de ano? Adormecerão felizes todas as noites? O coração fica apertado. Estremece. As mãos ficam húmidas. Num rompante, passam-lhes as piores imagens pela cabeça. E Maria vai ao baú dos dias felizes buscar os risos das duas crianças. “A princípio evitava abrir a janela para não ter de ouvir os miúdos, porque me lembrava dos meus meninos. Mas fui-me habituando. E este ano, com a ajuda de medicamentos, já começo a lidar melhor com a dor.” Do outro lado da Grande Lisboa, no concelho de Loures, as duas crianças de 10 e 12 anos vão crescendo com a presença diária do pai e dos avós paternos e, ocasionalmente, recebem visitas da mãe. A avó Maria, que tomou conta deles desde que nasceram, que os levou de férias, que demorava horas na praça para lhes trazer alimentos biológicos, que andava com eles às cavalitas pela rua e que desde que eles nasceram planeava a três uma viagem à Disneylandia, é hoje um nome proibido. Quase como se fosse imposto por decreto. “Tenho medo de morrer e de não voltar a estar com eles. A minha vida sem eles não tem significado.”
Casos como o de Maria têm estado a chegar cada vez mais à Justiça. Mas a maioria dos avós que pede para ter contacto com os netos — contra a vontade dos progenitores — fá-lo perante um divórcio e os consequentes conflitos com a regulação das responsabilidades parentais. São situações em que se um progenitor, por exemplo a mãe, impedir o ex-marido de ver os filhos, impede, ao mesmo tempo, o contacto com os avós paternos. A história de Maria é mais profunda, a rutura forçada com os netos é a consequência de um corte de relações com a filha. “Foi uma filha que eu amei mais do que a própria vida. Se me dissessem que ela era feliz se eu me atirasse de uma ponte, eu atirava.”
Depois do divórcio da filha, Rita e Miguel ficaram a viver com os dois progenitores, alternadamente, e nos dias que cabiam à mãe, era Maria quem se ocupava das crianças. O ex-genro ia buscá-los, diretamente, a casa dela. Era a avó quem se levantava de manhã cedo para os vestir, dar o pequeno-almoço e levar à escola. E estava de novo, ao fim do dia, à porta da escola para os ir buscar. “Comprei-lhes roupas a dobrar para terem o mesmo em casa da mãe e em casa do pai e não terem de andar com a trouxa às costas.” E, durante três anos, a avó Maria fez o papel de mãe a dobrar. As crianças estavam habituadas a ela. E ela estava habituada aquela convivência. “Fiz as coisas que uma avó faz com gosto. O meu marido, que não é o avô deles, mas é a pessoa com quem estou casada há 25 anos, era um ‘xoné’ para eles. Fazia-lhes tudo e eles adoravam ir ao colo dele.”
Antes e depois da separação, Maria moldou a vida à da filha e dos netos. Na sua casa, além do quarto de Rita e Miguel, havia também uma sala de brincar, entretanto transformada em quarto de estudo, a pedido da neta que se começou a achar demasiado crescida para brincadeiras de bonecas. Não chegaria a ser usada. Um dia, as crianças não vieram.
A avó recebeu o telefonema a informá-la de que ficavam na casa do pai. Na voz da filha, sentiu algo de diferente que a perturbou. Não sabia se era ela que queria continuar a sua vida com o novo namorado e não havia espaço para os filhos. Ou se era a relação frágil entre as duas a dar novos sinais de agitação. Uma turbulência de emoções, medos e recordações difíceis do passado vieram num simples telefonema. A relação entre Maria e a filha era marcada pela instabilidade. De um lado, uma mãe que alega ter feito tudo por uma filha. Do outro, uma filha amargurada com a educação que recebeu da mãe, ansiosa por espaço. “A minha filha destruiu todos os nossos sonhos.”
Temendo o pior, Maria foi a casa da filha e acabou por chamar a polícia. Conta que tentou entrar dentro da casa — que ajudava a pagar e sustentar — para falar com ela. Na versão da filha, tratou-se de uma entrada forçada no domicílio, agressão, coação, calúnia e injúrias. Cinco acusações arquivadas ao fim de poucos meses.
“Foi um vexame horrível, a polícia não percebia o que se estava a passar e acabaram por dizer para me ir embora, escusava de me humilhar mais.” Não insistiu e deixou-lhe uma carta a dizer que a amava. A partir daí, a relação de mãe e filha e de avó e netos entrou num ponto sem retorno. Maria decidiu recorrer à Justiça para ter direito a visitar os netos, um processo que tem conhecido avanços e recuos há sete anos. Esteve um ano à espera que o caso fosse atribuído a um juiz. E o contacto diário que tinha com os netos passou a ser esporádico, às escondidas, até deixar de existir. Tentou, fora dos tribunais, que a filha a deixasse ficar com Rita e Miguel alguns dias de férias. “Suspeito que cortou relações comigo porque desistiu da guarda partilhada e sabia que eu tinha interesse em ficar com as crianças.”

Direito ou dever dos avós

A relação entre avós e netos sempre esteve dependente da relação entre pais e filhos, com os avós a serem cada vez mais um suporte dos pais que trabalham. Funcionam como um ponto de apoio para ir pôr e buscar à escola, ou mesmo para ficar em casa com os netos nos primeiros meses de vida. Só que com o aumento dos divórcios — e, consequentemente, com as disputas pela regulação das responsabilidades parentais — mais avós se viram privados dos netos. “Este é um problema cada vez mais comum. Vê-se isso no consultório e na jurisprudência”, explica Marta Costa, advogada especialista em Direito de Família.
Os avós que pedem à Justiça para terem o direito de visita aos netos, fazem-no socorrendo-se de um artigo que existe no Código Civil desde 1995 e que estabelece o convívio com os irmãos e ascendentes, neste caso os avós. “Só que este artigo tem sido interpretado de maneira diferente nos tribunais — havendo já casos que chegaram ao Supremo Tribunal de Justiça. A dúvida prende-se com se o que está em causa é o direito dos avós a conviver com os netos ou o direito dos netos a conviver com os avós.” As decisões judiciais vão nos dois sentidos. É um direito que protege os avós? Ou um direito que protege os netos? Depende do juiz e daí dependerá a solução, que obrigará a resolver diversas variáveis. Tem-se em conta a opinião da criança? Obriga-se o menor a ter visitas à força? Aconselha-se terapia à família? “É uma questão muito delicada e complicada de resolver”, sublinha Carlos Céu e Silva, pedopsicólogo, especialista a lidar com ruturas familiares.
ilustração alex gozblau
Quando a rutura familiar se dá, a criança é afastada, por quem detém a sua guarda, do convívio com os restantes membros da família. E aqui começa um ciclo vicioso difícil de quebrar: o menor deixa de conviver com os avós; perde o hábito de os ver; corre o risco de achar que já não gostam dele; cria distância deles enquanto os tribunais decidem. No caso de existir sentença favorável, passaram meses (ou anos) cruciais para o estabelecimento de laços. E, no reencontro, avós e netos são como se fossem estranhos. “O tempo é muito tempo. É perder o viver, o crescimento da infância”, sublinha Carlos Céu e Silva.
Para Ermenilde Castro, 73 anos, os dez anos proibida de ver a neta e a lutar por dias de visita em tribunal foram demasiado. O suficiente para perder a força e desistir. Algo que prometeu ao filho, antes dele ter posto fim à própria vida, nunca fazer. “Um dia antes dele morrer, perguntei-lhe pela menina — sabia que era dia de ele a ver — e ele disse que a mãe não a deixava vir, pedi-lhe para irmos a casa da mãe para a ver.” A tentativa de visita acabou com insultos, agressões e queixas na polícia pelas duas partes. E começou aí a luta da vida de Ermenilde. “A princípio queria o mesmo tempo que o meu filho tinha, de 15 em 15 dias. É uma dor muito grande a morte do meu filho. Às vezes vou na rua e vejo um rapaz com uns sapatos iguais aos que ele tinha, é o suficiente para me ir abaixo.” Para a ex-nora, o assunto está encerrado.
A Justiça deu-lhe duas horas — desde que ia buscar a neta à escola até a levar a casa da mãe — uma vez por mês. Era pouco tempo para quem tinha de correr a atravessar Lisboa, mas nunca se importou. Era melhor que nada. Só que havia sempre um problema no dia combinado para a visita entre avó e neta. Ou era uma consulta, ou era uma aula de ginástica que não estava prevista, ou, afinal, tinha de apresentar o original da sentença e não a cópia para a escola deixar Inês sair na companhia da avó. “Percebi que não havia justiça e que não podia continuar a lutar contra um monstro.”
Também para Ermenilde o verão é uma época difícil. É uma altura em que as melhores memórias acabam sempre por levá-la aos piores momentos. Primeiro perdeu o filho, depois a neta. Hoje, se se cruzarem na rua é normal que Inês não a reconheça. Mas talvez Ermenilde consiga reconhecer-lhe na cara os traços e as feições do filho. “Eu sei que prometi não desistir. Eu sei. Mas cheguei a uma fase da minha vida em que só aquilo, aquela luta, aquela disputa interessa. Eu sei que a menina merece.”

Encontros às escondidas

Antes disso — antes mesmo de existir uma sentença — viu a neta às escondidas. Muitas vezes ao longe, outras vezes através da grade da escola. Sempre a tentar passar despercebida. Maria reconhece estes passos. No momento em que a filha lhe disse que ela não iria mais ver os netos, decidiu que ia procurar todas as formas de contornar aquela decisão. Fosse na Justiça — a tentar perceber quais os direitos que tinha —, fosse tentando ver Rita e Miguel sem que mais ninguém soubesse. “Como fui eu que lhes arranjei a escola onde estavam quando havia guarda partilhada, que ficava ao pé de minha casa, eu conhecia as pessoas, pedia a uma funcionária para me avisar quando eles saíam e onde iam.”
Durante meses, acordava, preparava-se para sair, e ficava sentada na cama à espera que o telefone tocasse. Sempre ansiosa perante a hipótese de ver e conviver com os netos. “Se eles tinham uma visita de estudo a um museu, eu ia a esse museu. Se eles iam brincar para um parque, eu aparecia no parque. Os putos todos já sabiam quem eu era e diziam, mal me viam, lá vem a avó da Rita e do Miguel.” Foi assim durante um ano até o tribunal lhe ter determinado umas horas de visita, de 15 em 15 dias, que em pouco tempo seriam desrespeitados e levariam a nova ação na Justiça.
Os momentos em que via os netos acalmavam-na, deixando-a com a certeza de que estavam bem. Mas era uma tranquilidade de poucos segundos. “As crianças viam-me e ficam logo muito nervosas.” A neta pedia-lhe para ir embora porque tinha medo que o pai aparecesse, o neto, a princípio, ficava mais introvertido. “Não sei o que hei de fazer. Fui a um psicólogo infantil que me explicou que era um problema complicado: se deixo de aparecer podem pensar que os abandonei; mas se apareço ficam desestabilizados.”
É difícil gerir a revolta e a impotência. “O confronto declarado não resolve o conflito. Se se entrar no confronto direto ainda se aumenta mais o fosso. É importante entrar num jogo sedutor e ir buscar outros [parentes ou amigos próximos] para ajudar a atenuar o conflito”, defende Carlos Céu e Silva. E é um momento para reflexão entre ambas as partes: para os avós perceberem o que falhou na educação que deram aos filhos; para os filhos perceberem que as relações humanas não podem ser feitas de que os filhos são sua pertença. “Os filhos não são nossos. São do mundo. Nós somos cuidadores deles. Não somos donos deles. Os pais que pensam o contrário estão a assumir um poder que em termos reais e verdadeiros não o têm.”
A resolução a nível emocional do conflito pode encontrar semelhanças na resolução jurídica. São os adultos que têm direitos sobre as crianças? Ou são os adultos que têm deveres perante as crianças? “Tudo o que diz respeito a menores é decidido perante o superior interesse da criança. É uma decisão dramática. É muito difícil quando a criança diz que não quer ir. A criança não vai obrigada”, explica a advogada Marta Costa.
Por vezes, só resta mesmo deixar passar o tempo. Ainda que com ele se perca a oportunidade única da troca de conhecimento entre gerações, o amor e carinho entre familiares diretos e se crie um corte abrupto e inexplicável com o passado familiar na vida de um ser humano no início da sua formação.
Maria da Conceição, 86 anos, também viu os netos através das grades da escola. Uma zanga por causa de partilhas na família fez com que a filha mais velha cortasse relações consigo. O código civil ainda não tinha o artigo que pode permitir o convívio entre avós e netos, mas a ela também nunca lhe passou pela cabeça pedir tal coisa. “Jamais iria colocar a minha filha em tribunal, lavar a roupa suja da família.” Era humilhante ir à escola e falar com Diana e Nuno separada por uma grade de ferros. E doloroso não ser convidada para as festas de aniversário. E triste passar o Natal sem eles. “Mas eu ia sempre lá vê-los. Às vezes, vinham falar comigo durante todo o intervalo. Outras vezes só queriam ir brincar. E, volta e meia, lá me diziam que era segredo porque a mãe não podia saber.”
Diana e Nuno cresceram sabendo que havia uma avó que se aproximava deles da forma que podia. Foi assim que souberam que a avó ia ser operada, que a tia (irmã mais nova da mãe) tinha casado e que tinham uma prima. Quando entraram na adolescência começaram a ir a casa da avó, primeiro às escondidas, depois dizendo a verdade. “Chegaram a uma altura em que tinham mobilidade e não era possível já a mãe impedi-los.”
É essa a esperança de Ermenilde. Mas a neta acabou de fazer 19 anos, já está na faculdade e ainda não tocou à porta. “E eu também não quero ir procurá-la às redes sociais.” A última vez que se viram, há cinco anos, foi um encontro atribulado. Por ordem do tribunal, conseguiu um lanche de uma hora num centro comercial. Levou os outros netos e um presente que tinha trazido de Praga. “Só me dizia ‘ah, não posso aceitar’. A mãe estava sentada numa mesa ao pé e a miúda estava completamente apavorada.” Mal se esgotaram as horas, foram-se embora. “Sei que a mãe voltou a casar, tem outra filha e outra família. A família do padrasto — que eu não sei quem são — têm acesso à minha neta. E eu não tenho acesso nenhum. A família do pai não tem qualquer convívio com ela.” Tem estado a escrever para ela. “A única coisa de que tenho esperança é, depois de morrer, ela se aproxime dos primos. E todos se deem bem.”

Oportunidade perdida

Quer a Inês venha ou não um dia a procurar a avó e família paterna, terá sempre em vez de memórias um vazio. Perdeu a oportunidade de crescer com mais pessoas que gostavam dela. Perdeu a aprendizagem com outra geração. “Não sou romântico e não acho que todos os avós sejam perfeitos. Não. Há uns mais amargurados. Mas há uma aprendizagem para os dois lados. Os avós ficam mais doces, fazem, muitas vezes, com os netos o que nunca fizeram com os filhos, e recebem os ensinamentos dos netos. E conseguem também passar a sua maturidade e experiência de vida. É muito importante a comunicação entre as duas partes”, frisa Carlos Céu e Silva.
Maria, Ermenilde e Maria da Conceição não só perderam isso como destoam do papel de suporte dos avós na sociedade portuguesa. Em vez de laços, o conflito. E perderam, um pouco, da fé na Humanidade. “Senti necessidade de me proteger. A idade já pesa”, diz Ermenilde. Maria do Céu, a esperançosa, continua a apostar na persistência. Na última conferência em tribunal, antes das férias judiciais, a juíza disse aquilo que ela já sabia. Que era uma avó que tinha tido uma relação forte com os netos. “E depois virou-se para a minha filha e para o meu ex-genro e disse-lhes que a vida dá muitas voltas e, talvez, um dia, eles fossem precisar desta avó.”
Sem querer contrapor ou fazer comentários, filha e ex-genro remetem explicações para a Justiça. “Eles já recusaram terapia, recusaram deixar-me fazer um telefonema, ir comer um gelado com os meninos, ou até ir vê-los à escola. Por isso, a juíza avisou que eles talvez não fossem gostar da sentença, porque ela também lhes disse que se eu ali estava — se o caso tinha chegado até ali — era porque existia uma lei”, conta. A última vez que viu Rita e Miguel foi nova mistura de emoções. A alegria do reencontro esfumou-se com o medo de serem apanhados. “Fui à escola no final do ano letivo e pedi para os ver. Ficaram muito nervosos. O meu neto começou logo a dizer que me reconhecia. E perguntou: o que aconteceu? Fizeste mal ao meu pai ou à minha mãe? A minha neta, com medo, só me dizia: tu não podes estar aqui nesta escola, a minha mãe e o meu pai não deixam.”
Tal como os funcionários da escola dos netos a conheciam, Maria é também agora uma cara familiar no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, onde o caso está prestes a ir a julgamento. Vai usar as dez testemunhas que a lei lhe permite, incluindo família do ex-marido, pessoas que conviveram de perto quando era ela que se levantava cedo para tratar dos netos e levá-los à escola, quando ficava de férias com eles, que viram a alegria das crianças no quarto de brincar montado pela avó. Essa sala — agora de estudo — nunca foi usada, mas a mobília continua nos mesmos sítios. Não passa pela cabeça da avó desmontá-la, nem era capaz. Afinal, está à espera que Rita e Miguel voltem.
A avó Maria tem esperança de que no próximo verão já não sinta o coração apertado e a estremecer quando abrir a janela da casa de verão. E que as mãos não fiquem húmidas. Acredita que, no próximo verão, quando abrir as janelas da casa de praia, vai ouvir os risos dos netos a pedir para irem para o areal.
 

Comentários