"Construir a casa sobre a rocha": um comentário sobre a Carta Pastoral do Arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga
Na
sequência das indicações do Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Amoris
Laetitia, a Arquidiocese de Braga publicou uma
Carta Pastoral, intitulada Construir a Casa sobre a Rocha, com propostas
bastante desenvolvidas, relativamente à vida concreta das famílias e à sua
relação com a vida eclesial, com um longo anexo recheado de sugestões práticas
pormenorizadas, para a aplicação das ideias gerais da Exortação papal,
respeitantes ao “processo de acompanhamento, discernimento e integração de
pessoas divorciadas em nova união civil”.
Após uma primeira leitura geral, o
texto provoca em mim o breve comentário que apresento, também ainda genérico,
pois um trabalho sobre o pormenor do texto exigirá mais tempo e mais espaço.
1. Antes de
tudo, saúda-se esta Carta Pastoral, que ajuda, por um lado, a desfazer a
eventual ideia de que as sugestões da Amoris Laetitia não chegariam a ter
consequências práticas na vida dos casais concretos e, por outro lado, a
esclarecer alguns pontos em que o debate internacional – sobretudo jornalístico
– tinha ajudado a confundir, por vezes deturpando o texto papal. Ao mesmo
tempo, saúda-se a qualidade do texto, pela sua clareza, profundidade, pormenor
e, nalguns pontos, até originalidade pastoral. Será, sem dúvida, um dos textos
emblemáticos na sequência da tão debatida Exortação. E, se for aplicado,
permitirá um trabalho consistente com as famílias cristãs, em várias
circunstâncias que não só aquelas que levantam maiores dificuldades.
2. No debate
em torno da Amoris Laetitia, um dos tópicos que me parece mais importante
manifesta-se na acusação de que esta Exortação Apostólica contribuía para a
desvalorização do Matrimónio como sacramento e, consequentemente, a família
como realidade fundamental. Alguns consideraram que se introduziu um tom
facilitista, que levaria à banalização da relação esponsal e parental, com
grave prejuízo para uma realidade fundamental à Humanidade e à Igreja. Não
creio, é evidente, que
a Exortação do Papa Francisco possa ser lida nesse
sentido. Pelo contrário. A sua própria existência já revela a importância
central que a Igreja atribui à família – o que já vinha sendo acentuado por
Papas anteriores. E, do ponto de vista doutrinal, nada se altera em relação ao
Matrimónio.
Esta Carta Pastoral reforça o tom. Reconhecendo os problemas
reais
que marcam o quotidiano das famílias contemporâneas – como outros
marcaram outros tempos – nunca se desvia da afirmação da sua grandeza
e dos
recursos para a superação das dificuldades. Seguindo muito de perto a Exortação
papal, que cita muitas vezes, esta Carta é uma permanente afirmação e confirmação
do valor imenso da família e das respectivas relações como núcleo da vida
eclesial, e de modo nenhum envereda por uma leitura facilitista dos
compromissos, que são e continuarão a ser compromissos para toda a vida.
3. É claro
que não podemos ignorar o contexto socio-cultural contemporâneo. Ao tornar-se
mais habitual e mais fácil – por vezes até mais banal – a prática da separação
dos casais, não pode contar-se com o contexto social como “travão” ou impedimento
do fracasso de muitas relações, como acontecia em épocas passadas. Não cabe
aqui discutir se as pessoas nessas épocas eram mais ou menos felizes que agora
– como também não se pode concluir, de modo genérico, que agora sejam mais
felizes do que antes. As circunstâncias são simplesmente outras, e isso ninguém
pode ignorar, muito menos a comunidade eclesial, que tem por missão viver
atenta aos sinais dos tempos.
Dessas alterações resultou, inevitavelmente, que seja
necessário intensificar a preparação da vida matrimonial, muito mais do que
noutras épocas. Se valorizamos a família, se defendemos a perenidade do
compromisso esponsal e parental
e a sua importância para a realização do
humano, então é preciso investir na sua preparação, pois essa modalidade de
compromisso não é favorecida,
em geral, pela sociedade atual. O nível de
maturidade que uma relação deste género exige, o conjunto de desafios que
coloca, não podem ser dados como adquiridos pelo puro crescimento e
envelhecimento das pessoas – caso contrário haveria hoje menos problemas, pois
as pessoas até se casam mais tarde. É claro que não
é preciso ser especialista
comprovado por diplomas para constituir uma família; mas não tenhamos ilusões:
exigem-se muitas competências relacionais, em que muitos de nós somos
atualmente deficitários. E não temos o suporte social que compense, de algum
modo, esse défice. Muitos fracassos posteriores devem-se, antes de tudo, a uma
preparação superficial ou ausente a todos os níveis, incluindo aspectos
práticos, afectivos e psíquicos. Saúda-se, por isso, que a Carta comece,
precisamente, pelo incentivo a essa preparação. Feita com seriedade irá,
certamente, evitar muitos dos desfechos dramáticos em que hoje somos
envolvidos.
4. Acontecendo
o inesperado – sim, porque para uma família crista a separação terá que ser
sempre inesperada... – há então que analisar as situações. Aí entra o processo
de discernimento que esta Carta desenvolve de forma intensiva. Isso pode
passar, em primeiro lugar, por avaliar a existência ou não de nulidade no matrimónio
(o que pode suceder em mais casos do que pensamos); não sendo o caso, há que
avaliar muitas circunstâncias, quer as que levaram à ruptura, quer aquelas
em
que, entretanto, vivem as pessoas separadas. É aí que não é suficiente uma lei
geral e cega, mesmo que ela sirva sempre de orientação fundamental, para evitar
relativismos ou uma dupla moral, como bem refere o texto.
O modo exaustivo como é apresentado o percurso de
discernimento não permite, aqui, uma análise em pormenor. Limito-me a salientar
alguns aspectos que me parecem importantes.
Antes de tudo, e de modo geral, trata- -se de um percurso
muito exigente. Temos que admitir que um casal que
o percorra, mesmo com
limitações, atingirá um nível de conhecimento de si mesmo e de experiência
espiritual e reflexão sobre a sua fé que a maioria dos cristãos não possui.
Nesse sentido, um casal que depois deste trajecto experimente uma reinserção na
vida eclesial, não o fará de ânimo leve nem sem um grande benefício pessoal e
relacional. Não se trata, pois, de fazer uma espécie de “curso livre” para
obter um certificado que lhe permita aceder a dimensões da vida eclesial que
estariam vedadas. É algo muito mais profundo, com benefício para toda a
comunidade eclesial, que também deverá ser envolvida no processo.
O percurso exige muita humildade
e capacidade de escuta. A
oração é
o nervo condutor, como atitude de escuta da vontade de Deus. Mas isso
não implica que se evite a mediação da Igreja, em pessoas concretas. Um dos
aspectos importantes deste processo
de discernimento é precisamente o
acompanhamento de pessoas indicadas pela Igreja, para que não se resvale para
subjectivismos problemáticos, ainda que seja a dois. Todo o trajecto se inspira
muito na dinâmica de discernimento inspirada em Santo Inácio, que tem dado
muitos frutos, em circunstâncias muito variadas.
5. Por
último, e como “reparo”, diria o seguinte: assim como se espera que, na
sequência deste documento, se criem equipas para acompanhamento de casais no
discernimento da sua situação eclesial; assim como já há equipas e movimentos
dedicados à preparação para o matrimónio; assim como já vai havendo formas de
acompanhamento dos casais, sobretudo dos mais jovens – será importante criar um
dinamismo, com pessoas competentes e especializadas, que ajude casais em fase
de crise, para eventualmente se evitar a ruptura definitiva. A mediação
familiar terá que ser uma prática corrente, precisamente para conseguir que
sejam cada vez menos os casais cristãos que se separam. A separação é e será
sempre um drama indesejável. A melhor pastoral é aquela que age antes do
desfecho. O resto será sempre excepcional.
Pelo Professor Doutor João Duque
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