O regime tecnológico que hoje vigora baralha-nos ainda mais,
porque nos transmite a ilusão de que nada falha. A memória de um vulgar
computador embaraça-nos se comparada com a sucessão dos nossos esquecimentos,
lapsos, inexatidões.
Onde em nós reconhecemos perdas e quebras de eficácia,
constatamos na técnica atual precisamente o contrário: uma capacidade inumana
de acumulação de dados, de registos e pegadas que, tantos anos depois,
continuam intactas numa praia que o oceano não cancela. Os computadores não
precisam de ser consolados, nós sim, e ganhamos em falar disso.
O que é próprio da
consolação é fazer-nos próximos dos outros — e de nós mesmos — sem mais, sem a
pretensão de nada, amparando simplesmente, com a nossa presença, a travessia
das horas abissais, ajudando aí a carregar o peso que ciclicamente faz
desmoronar a vida. Acompanhar a solidão dos outros e a nossa: é isso que
cum-solatio também significa, mesmo se consolador e consolado saibam que
nenhuma consolação restaura a perda e o luto de certas travessias ou resolve a
dilaceração das feridas que mais nos rasgam. De facto, vamo-nos dando conta,
estrada fora, que aquilo de que somos capazes, e que precisamos entender como
programa existencial, não é tanto ir contra as contingências que nos sitiam
inevitavelmente, mas viver com elas, aceitando a tarefa de construir uma
humilde sabedoria integradora dos contrastes. Esta coisa a que chamamos vida
requer de nós a força de não soçobrar ao crepúsculo só porque não vemos logo,
ou não vemos como, de tamanha escuridão possam irromper os improváveis traços
da aurora. Teremos de reaprender a arte de consolar, rompendo com esta
narcisista cultura da indiferença, que tende a universalizar-se como padrão
para as relações humanas, e que só conhece duas lógicas cegas: a distração e a
compensação, que vem sempre, de uma forma ou de outra, tarifada. Teremos talvez
de estabelecer uma nova relação com a palavra e o silêncio, com o que nos é
familiar e desconhecido, com a exterioridade e o nosso mundo interno
acreditando mais na força reparadora das coisas simples, dos gestos
quotidianos, dos tráficos minúsculos que melhor espelham a nossa humanidade e
que, porventura, não encaramos ainda como uma reserva de sentido. É um erro
pensarmos que, afundados numa provação, deixamos de contar para os outros e um
desligamento ontológico nos isola, implodindo os laços. Não vemos que o mesmo
sofrimento que nos fere também nos torna mestres em relação à vida e
permite-nos dizer com outra propriedade o que é que nos dá e retira vida, o que
é que a nutre, o que é que a apaga. A partilha da provação pode ser
incrivelmente fecunda.
Um exercício que
devemos repetir mais vezes é recordar (voltar a trazer ao coração,
literalmente) os lugares onde experimentamos consolação. Esses lugares, amiúde
inesperados, guardam um precioso ensinamento. Se quisesse eu próprio falar de
um lugar de consolação recente na minha vida teria de referir o campo de
concentração de Westerbork, na Holanda, onde estive em peregrinação o verão
passado. Foi nesse epicentro da dor que, ao lado de milhares de outros mártires
do século XX, esteve prisioneira Etty Hillesum. Recordo-me de passar um par de
horas, deitado sobre a erva, a escutar o vento. Apenas isso. Mas senti uma
comunhão profunda com o grito e o perdão que se pode ler quer nos escritos de
Etty, quer no destino silencioso de tantas vidas. E, sem que as pudesse deter,
as lágrimas lavaram-me o rosto várias vezes. As vezes necessárias para que
ficasse limpo.
José Tolentino Mendonça
Comentários
Enviar um comentário