Há mais de 40
anos que o investigador Carlos Neto trabalha com crianças e está
preocupado com o sedentarismo. "Há pais que já não têm prazer em brincar
com os filhos".
A falta de autonomia das crianças é culpa das famílias ou das escolas que também as ocupam demasiado tempo?
Eu
diria que temos de encontrar um conjunto de fatores para explicar o
fenómeno, porque não se pode pôr culpas a ninguém em particular. Veja-se
a cidade de Lisboa e o inferno que é às seis da tarde e às oito da
manhã e a maneira como as famílias têm de se encarregar de distribuir a
vida dos filhos no tempo escolar e para além da escola. Por outro lado,
não há uma política habitacional pensada do ponto de vista de criar uma
mobilidade saudável no crescimento e no desenvolvimento dos jovens. Só
dessa maneira é que se pode compreender o que é que está a acontecer com
o baixo índice de mobilidade que temos em Portugal. Os estudos que
fizemos em 16 países demonstram que ficámos em 14.º lugar. Muito abaixo
dos países escandinavos, onde essa mobilidade é muito elevada, onde têm
uma autonomia muito grande e vivem a natureza e o território da cidade
de forma plena. Em Portugal, e nos países do Mediterrâneo, a situação é
muito complexa, porque há perigos diversos e depois há medos que se
instalaram na cabeça dos pais.
Mas esses perigos não existem também nos países nórdicos?
Eles
têm uma filosofia de organização do tempo e do espaço completamente
diferente. Significa que os nossos jovens e crianças têm muita
dificuldade em ter essa autonomia desde muito cedo, porque encontram
diversos constrangimentos. Desde o trânsito, o fenómeno da urbanização, a
maneira como o tempo escolar e o tempo de trabalho dos pais está
organizado. Por outro lado, ganhou-se um medo enorme de as crianças
andarem autónomas na rua. A rua desapareceu, está em extinção como local
de jogo, de brincadeira, de encontro de amigos. O problema da
socialização é uma das questões mais importantes que se colocam hoje na
nossa juventude e nas culturas de infância. Temos aqui um problema muito
sério que só pode ser resolvido com medidas corajosas e arrojadas do
ponto de vista político.
Isso significa facilitar os transportes, criar espaços verdes?
Espaços
verdes, política habitacional mais adequada à política educativa e
também à gestão do tempo de trabalho dos pais. Está tudo demasiadamente
formatado e as crianças e jovens precisam que isso seja desconstruído
para a vivência do corpo em situações mais espontâneas e mais naturais,
do espaço construído e do espaço natural da cidade. Quando falamos em
índice de mobilidade baixa, isso significa que temos de atuar em várias
frentes para tornar mais sustentável uma vida feliz e com sucesso das
crianças e jovens porque elas merecem. E acima de tudo uma perspetiva de
não repressão do corpo em movimento porque o sedentarismo não é só
físico, é também mental, social e emocional. A investigação científica
tem demonstrado claramente que quem mais faz atividade física, mais
brinca na infância, mais tem relação com os amigos, são crianças que
normalmente têm mais sucesso no futuro, mais rendimento escolar e
obviamente têm um índice de felicidade e de empatia muito maior.
Mas hoje as crianças quase só se relacionam com as outras em atividades organizadas.
Praticamente
está tudo organizado quer do ponto de vista das atividades no meio
escolar quer nas atividade extraescolares. Se isto ainda não bastasse
têm depois uma cultura de ecrã muito agressiva. É muito natural ver
crianças à volta de uma mesa de café e não se falam, estão todas a olhar
para o iPhone. O corpo em movimento é fundamental para todo o
desenvolvimento, não só emocional, também cognitivo, social e emocional.
A escola tem de urgentemente mudar o modelo de funcionamento, quer na
organização curricular quer na forma como as crianças são mais ou menos
participativas. Temos de dar uma espécie de um trambolhão na sala de
aula, no sentido de tornar as aulas mais ativas por parte das crianças.
Falta uma política de brincadeira?
Há
alguns sinais interessantes do Ministério da Educação de tentar que a
vida na escola não seja uma coisa tão formal e tão séria, isto é, de ter
tempos mais disponíveis para expressão dramática, educação física,
música, dança ou um conjunto de atividades que consigam que o corpo
disponibilize maior capacidade expressiva, de empatia, de modo a tornar
os cidadãos mais cultos, com maior capacidade de ética e de cidadania e
portanto não estar apenas centrado nos rankings. Está provado
cientificamente que crianças com maior nível de atividade física e
relacional no recreio aprendem mais na sala de aula. Portanto, não
podemos querer crianças sedentárias ou a ouvir um conhecimento que
muitas vezes não lhes interessa. O ensino não pode ser isto no século
XXI.
Temos que dar uma espécie de trambolhão na sala de aula, para as aulas serem mais ativas
A gestão do tempo da família também tem de mudar?
Temos
de dar um ar fresco a este país, este país não pode estar com esta
depressão enorme em que temos pais e professores esgotados, porque as
crianças reparam em tudo. Há pais que já não têm prazer em brincar com
os filhos, e há professores que já não têm capacidade de perceber a
importância dessa atividade espontânea do que é correr atrás de uma
bola, subir a uma árvore, fazer um jogo de grupo no recreio ou pura e
simplesmente subir o muro e tentar descobrir o que está do lado de lá.
Ou ter locais secretos. Como é que nós promovemos a saúde pública e
mental numa perspetiva de maior cidadania, de maior empreendedorismo e
de maior grau de felicidade? É isso que está em causa quando falamos em
promover o corpo em movimento. Nunca foi tão importante o papel dos pais
e da família na educação dos filhos no que diz respeito à implementação
deste tipo de atividades. Sair com as crianças para a rua e brincar,
desfrutar a natureza. Os pais têm de ter mais tempo disponível para
fazer este tipo de atividades. É inacreditável que hoje se passeiem mais
os cães do que as crianças. Inacreditavelmente faz-se hoje um esforço
inadmissível de tornar os robôs mais humanos e ao mesmo tempo estamos a
robotizar o comportamento humano.
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