Lembro-me de que, em Paris, à entrada de um
alfarrabista para os lados de Notre-Dame, vi copiado o início do poema que Walt
Whitman dedicou “a um estranho”. E os versos de arranque dizem o seguinte:
“Estranho que por mim passas! não sabes com que/ desejo ardente meus olhos te
fitam.”
Os estranhos somos nós, os leitores, os possíveis leitores ou os que
não chegamos a sê-lo, pois tantas vezes passamos ignorando o que os livros nos
dedicam e a longa espera, mesmo se falhada, que fazem por nós. Falar de
indústria a propósito dos livros é um palreio escasso, quando não absurdo. Nos
livros interessa não a sua materialidade mas a pré-história que a contamina. Um
livro é um enigma como as pirâmides do Egito. É um laboratório em combustão.
Uma saída de emergência. Um clube de socorro a náufragos. Um intercomunicador
entre silêncios. Um lança-chamas. Um abrigo de floresta. Um trilho mais adiante.
Será que sabemos o que é um livro? T. S. Eliot
trabalhou oito anos como empregado bancário no Lloyds, em Londres. Passava os
dias no gabinete subterrâneo que lhe estava atribuído, sentindo o tempo inteiro
os passos dos transeuntes sobre a sua cabeça. Duas esterlinas e dez xelins eram
o seu soldo. Cumpria um horário das 9h15 às 17h e, numa das primeiras cartas
que dali escreve à mãe, dizia-se feliz por poder dedicar-se à poesia no tempo
restante. Mas à medida que os anos passavam era como se lhe faltasse o ar.
Apanhava o comboio para a City, vestido de escuro, com o guarda-chuva pendurado
no braço, o cabelo impecável, com o risco a meio, enfileirado atrás de uma
multidão trajando de maneira igual. No livro “Terra Devastada” deixará este
registo: “Cidade irreal/ Sob o nevoeiro castanho de uma madrugada de inverno,/
Uma multidão fluía sobre a Ponte de Londres, tantos,/ Eu não pensava que a
morte tivesse destruído tantos.”
O poeta Philip Larkin trabalhou como bibliotecário
praticamente toda a vida, pois percebeu que não conseguiria subsistir apenas da
escrita, por muito que o desejasse. Depois da jornada laboral permanecia em
casa, evitando saídas que o dispersassem. Jantava, lavava a louça e colocava-se
a escrever.
Com a Segunda Guerra Mundial a rebentar, Graham Greene
vivia desesperado. Precisava de tempo para completar aquele que dizia ser o seu
melhor romance, “O Poder e a Glória”. Mas, ao mesmo tempo, temia morrer e
deixar a família desprotegida do ponto de vista económico. Decidiu-se então a
escrever um desses thrillers velozes que garantiam uma boa remuneração.
Fechava-se a manhã inteira num quarto alugado a escrever o thriller e à tarde
regressava a casa para escrever “O Poder e a Glória”.
Em 1951, quando os médicos lhe disseram que teria
apenas mais quatro anos de vida, Flannery O’Connor voltou com a mãe à sua terra
natal, a uma velha granja de família chamada Andaluzia. Ela sabia que durante a
tarde estaria exausta e febril, como se estivesse debaixo de um estado gripal,
e à noite teria a cabeça vazia e rasa como um prato. Nesses quatro anos só lhe
restavam as manhãs. Acordava às seis, tomava café com a mãe enquanto ouviam na
rádio as previsões meteorológicas, ia à missa às sete da manhã na igreja mais
próxima e, depois, até ao meio-dia escrevia sozinha no seu quarto.
A estrofe final do poema de Walt Whitman sempre me
pareceu um retrato exato da responsabilidade que os escritores sentem para com
os leitores, esses estranhos a quem dedicam o melhor da sua vida: “Eu sou quem
existe para/ pensar em ti, quando fico sozinho/ ou de noite acordo,/ Eu sou
quem deve esperar, seguro de voltar a/ encontrar-te,/ Eu sou quem deve cuidar
de te não perder para/ sempre.”
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